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A elaboração do conceito de empresa para extensão do âmbito do direito comercial

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A elaboração do conceito de empresa para extensão do âmbito do direito comercial

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20/09/2023

SUMÁRIO: Unidade e universalidade do direito comercial. Interpretação dos vários ramos do Direito. Tribunais de comércio. O Código Comercial francês. Atos do comércio. A emprêsa. A teoria de VIVANTE. O estabelecimento como base da emprêsa. O Cód. Comercial português Doutrina alemã. A economia capitalística e as sociedades por ações. Influência do direito público na administração e direção da emprêsa. O exemplo italiano. Unificação do direito das obrigações. Emprêsa e empresários. A reunião de Paris em 1954. Conclusões.

Direito dos mercadores

Direito consuetudinário por excelência, o direito dos mercadores se observou em quase todo o continente europeu e nos seus mares circundantes, com uniformidade tal que mais parecia direito internacional. Era o mesmo nas cidades, nas feiras, nos mercados, nas praças, nos portos das diversas regiões atingidas pelos que efetuavam o tráfico mercantil.

Tempo chegou, no entanto, e o reparo foi de FREMERY, em que o direito comercial perdeu o caráter de unidade e de universalidade, que, para o jurisconsulto, constituiu seu interêsse e grandeza. As suas instituições, por efeito dessa prática generalizada, chegaram, por isso mesmo, a chamar a atenção dos doutôres em direito civil do décimo quinto e do décimo sexto séculos. Encontraram os civilistas, naquelas instituições, alento novo para o espírito de comentário que os animava: “e como viam no Digesto o fundamento de tôda a ciência jurídica, foram nelas buscar as mais singulares derivações para a resolução das questões que se propunham”. Por isso, “o movimento que imprimiram nessa direção se prolongou; e, até nossos dias, se encontram jurisconsultos, de resto muito sábios, mas inteiramente estranhos às tradições comerciais, a proferir decisões bizarras, indo, dessarte, colocar no Digesto a interpretação de convenções, cuja primeira idéia não se formou senão seiscentos anos depois de JUSTINIANO”.

Essa mesma influência, advertiu o antigo tratadista de direito mercantil, se fêz, no décimo sétimo século, exercer nas diversas legislações dos vários povos da Europa, cada uma a aproveitar-se pouco a pouco dos usos inventados e praticados pelos comerciantes, umas de uma e outras de outra maneira; e foi assim que depois de cem anos, “o verdadeiro direito comercial, obra lenta e sucessiva da unanimidade dos comerciantes, cuja fontes se encontram nos monumento esparsos de seu costume, se dividiu ela pedaços pelos legisladores das diversas nações e que, em lugar de um direito comercial simples, grande, universal, como o comércio, que o produziu, se tem o direito comercial francês, o direito comercial inglês, o direito comercial espanhol”.1

Esta velha página reflete, em verdade, a interpenetração dos vários ramos do Direito, de molde a evidenciar que, quanto mais os homens investidos do poder de legislar separam as leis, elas por si mesmas se ajuntam por efeito dos eventos sociais, econômicos e políticos, mercê da origem unitária do Direito e de seu objetivo de assegurar as condições de vida e desenvolvimento dos indivíduos e das sociedades que êles compõem.

Direito comercial

Desde que o direito comercial, assim nacionalizado, consuetudinàriamente se formou como direito profissional e de classe, esta se sentiu na necessidade de criar tribunais próprios; mas, instituído; na época do corporativismo medievo, não se pode dizer que tivessem sido tribunais judiciários.

Os tribunais consulares daqueles tempos se organizaram a fim de assegurar a disciplina e a polícia do comércio, no âmbito das respectivas corporações. As relações privadas dos membros destas entre si ou com seus comissários e prepostos

Desde que, todavia, as corporações tiveram acrescido seu poderio econômico e político o sua órbita de ação excessivamente alargada, elas, naturalmente, extravasaram e seu poder jurisdicional sobremodo se aumentou, de modo a alcançar os litígios entre os seus membros e os dêstes com terceiros, de onde os conflitos de jurisdição de que a História dá notícia e alguns dos quais se tornaram célebres.

Veio disso a necessidade de determinar-se o que constituía a matéria de comércio, da competência exclusiva dos tribunais consulares, a fim de se ditarem normas excludentes dos conflitos de jurisdição.

Cód. Civil e o Cód. do Comércio em 1807 francês

Promulgados, em 1803 o Cód. Civil e o Cód. do Comércio em 1807, em França, neste se cuidou, em seu livro quarto, o da jurisdição comercial, de precisar as normas disciplinadoras dos tribunais de comércio.

Entraram na competência dêsses tribunais as relações entre negociantes, comerciantes e banqueiros, as entre sócios por questões relativas às sociedades de comércio e as atinentes a atos de comércio entre tôdas as pessoas.

Para êste último efeito, tratou o Código no art. 632, de enumerar os atos de comércio, pela lei assim reputados, entre êles incluindo “toute entreprise de manufactures, de comissian, de transport par terre ou par eau” e “toute entreprise de fournitures, d’agence, bureaux d’affaires, établissements de ventes à l’encan, de spectacles publics“.

A despeito de que o texto houvesse referido as empresas submetidas à competência dos tribunais do comércio, dois princípios, desde logo, se firmaram. Primeiro, o de que aquêles tribunais não poderiam conhecer senão de empresas comerciais; e, segundo, o de que não conheceriam senão do que fôsse comercial em tais emprêsas. Assentou-se, então, ao que escreveu o BARRO LOCRÉ, que tôda empresa adquiria seu caráter de acôrdo com o fim para que se organizava. Se ela se destina à exploração de terras, é agrícola; se se propõe a fazer descobertas ou ao desenvolvimento das ciências e das artes, é científica; se organiza para a exploração de rendas públicas, é financeira. De qualquer modo, será emprêsa comercial desde que tenha o comércio por objeto e essa denominação se lhe ajustará sempre que os atos e operações necessários para seu objeto sejam atos de comércio.2

Que eram, pois, essas entreprises ou as emprêsas do mesmo naipe, que, no Brasil, o art. 19 do dec. nº 737, de 25 de novembro de 1850, houve como mercancia?

Porque o dispositivo francês não focalizou a entreprise em sentido geral, mas enumerou diversas empresas como atos de comércio, os tratadistas examinaram o problema por êste prisma.. Assim, por exemplo, J. M. PARDESSUS, tratando das entreprises de manufactures, divisou no enunciado, em primeiro lugar, a convenção por via da qual uma das partes se obriga a executar a obra, que pela outra lhe é encomendada, com matéria fornecida, mediante retribuição estipulada, ou, em falta de avença, determinada por peritos. Seria, por tal prisma, o contrato de empreitada. Mas, em segundo lugar, a qualificação se dava ao ato de uma ou mais pessoas associadas reunirem num lugar, chamado manufacture, fabrique, ou atelier, pessoas cujo trabalho, com o emprego de certos processos ou máquinas, mudavam as substâncias ou davam forma ou elaboravam ou aperfeiçoavam certas matérias.3

Tinha-se, nesta última hipótese, a indústria fabril ou manufatureira.

Adotando o contexto francês, o Código do Comércio da Bélgica, na segunda alínea do art. 2º, reputou ato de comércio “toute entreprise de manufacture ou d’usines“, e fez o acréscimo destas últimas palavras a fim de afastar dúvidas. Disse-o NAMUR. Disse-o, acrescendo que as emprêsas de manufaturas têm por objeto a transformação das coisas, especialmente das matérias-primas, em objetos de nova espécie. Elas constituem atos de comércio, sem distinguir se o empresário reúne os trabalhadores em manufatura, fábrica, atelier, etc., ou se os faz trabalhar em domicílio. Pouco importa, igualmente, que ele forneça as coisas sôbre que exerça seu trabalho ou que se limite a transformá-las. Num e noutro caso, êle especula sôbre os salários dos operários e esta circunstância basta para que sua indústria seja comercial.4

Poder-se-ia, pois, com tais elementos, sem esfôrço maior, concluir que a empresa se teria, e se tem, na organização do capital e do trabalho para os fins denunciados na enumeração do Código francês e da lei brasileira.

A um e outro caberia, no entanto, a crítica judiciosa de ALBERT WAHL, ao revelar a inadvertência do texto francês: ou bem êle empregou a palavra entreprise sem mesmo ter em conta que ela não possuía o mesmo significado que acte; ou bem êle confundiu o comerciante com o indivíduo que pratica um ato de comércio. Assim, entre as emprêsas figura a entreprise de fournitures, isto é, de ventesmobilières, quando certamente a venda de móveis para fim especulativo constitui, mesmo isoladamente, ato de especulação. De qualquer modo, a linguagem do Código é viciosa: emprêsa não é ato.5

Como quer que seja, em França, como no Brasil, a entreprise, como a emprêsa, era o instrumento da atividade mercantil ou industrial: o magasin, como a loja; o fonds de commerce, como o estabelecimento comercial; a usine, como a fábrica, etc.

Cód. de Comércio da Itália

O Cód. de Comércio da Itália, seguindo as linhas do Código francês, por igual reputou, e foi no art. 3º, atos de comércio as emprêsas que enumerou.

Em face dêle, construiu CESARE VIVANTE a teoria da emprêsa. Teve-a como o organismo econômico a recolher e pôr em obra os fatôres necessários para a obtenção de produtos destinados à troca, a risco do empresário. A combinação daqueles vários fatôres – natureza, capital e trabalho – que, associando-se, produzem resultados que, divididos, seriam impossíveis de se obterem, e o risco assumido pelo empresário a fim de obter nova riqueza, são os dois requisitos necessários da emprêsa.

Considerou o comercialista exímio indiferente a posição jurídica do empresário. Tanto pode ser pessoa natural, pessoa jurídica, o empresário, pouco importa: o que decide do caráter comercial da emprêsa é a existência de organismo autônomo, que tenha os caracteres da emprêsa. Não teve como comerciais as indústrias do Estado. Nem as exercitadas pelo particular para próprio uso e consumo, como fábricas de armas, de cartas-postais de valores, por ser requisito essencial da emprêsa o trabalho para o interêsse de terceiros.6

Conceito de empresa

Se o conceito de empresa emerge da organização dos meios naturais, do capital e do trabalho, assim para o exercício do comércio como da indústria, meios materiais reunidos em determinado local para a exploração condizente com caráter de continuidade, não faltaram os que houveram a emprêsa como expressão sinônima do próprio empresário, pessoa natural ou pessoa jurídica. Tanto se depara se a emprêsa individual, como a emprêsa social.

Resulta dêsse entendimento que a emprêsa tem como base o estabelecimento, seja o comercial, seja o industrial. Nêle é que ela repousa. Tanto que nesse estabelecimento, genèricamente considerado, se de organismo econômico, que se movimente para o fim mercantil ou industrial para que se constituiu, ai está a emprêsa. Apresentar-se-iam, então, como dois circulo, concêntricos fechados pela mesma circunferência. Assim é na emprêsa individual ou mesmo na, emprêsa social que explora um só estabelecimento. A emprêsa é nesse caso o estabelecimento e o estabelecimento é a emprêsa.

Mas, de outro lado, a emprêsa é próprio empresário, ou seja, a firma individual ou social exploradora do estabelecimento e responsável por seus riscos. Não impede isso que a emprêsa se constitua e diversos estabelecimentos concêntricos, e, de certo modo, hierárquicos, como a matriz e as várias sucursais e filiais. Mas, em casos tais, a linha circunférica é sempre a contornante extrema, em que se depara o empresário ou seja, o comerciante, individual ou social, Nessa linha, o empresário se confunde com a emprêsa. Ou se confundem, ou um dêles sobeja …

Não é outra a diretriz seguinte pelo Cód. Comercial português. Houve êste, no art. 230, por comerciais as emprêsas singulares ou coletivas, que se propuserem transformar, por meio de fábricas ou manufaturas, matérias-primas, empregando, para isso, ou só operários, ou operários e máquinas; fornecer, em épocas diferentes, gêneros, quer a particulares, quer ao Estado, mediante preço convencionado; agenciar negócios ou leilões por vontade, de outrem em escritório aberto ao público e mediante salário estipulado; explorar quaisquer espetáculos públicos; editar, publicar ou vender obras científicas, literárias ou artísticas; edificar ou construir casas para outrem com materiais subministrados pelo empresário; transportar, regular e permanentemente, por água ou por terra, quaisquer animais, alfaias ou mercadorias de outrem.

A propósito do texto, doutrinou LUÍS DA CUNHA GONÇALVES ser a empresa organização capitalista de diversos fatôres econômicos, tendo por fim exercitar determinado ramo de negócio de modo estável e sistemático, regular e permanente; e diz-se empresário a própria entidade singular ou coletiva que tem por fim exercitar as operações relativas ao objeto da emprêsa, de modo contínuo, e, por isso, profissional. Dêsse modo, emprêsa singular seria sinônimo de comerciante em nome individual e emprêsa coletiva seria fato perfeitamente idêntico ao da sociedade comercial.7

Já então é de há muito se havia emprestado à palavra emprêsa sentido com que antes se não sonhara. Foi na Alemanha. Publicando, em 1865, em Heidelberg, o seu “Das Deutsche Handelsrecht”, logo nas primeiras páginas do 1º volume, assentou WILHELM ENDEMANN nova concepção do que fôsse ser a Geschaeft, vocábulo que exprime o que se reputa emprêsa.

Reconhecendo à emprêsa como primeiro objetivo o de servir a seu proprietário como fonte de lucro e, ao mesmo passo, de produção, pareceu-lhe, no entanto, que outro e mais alto eram seu conceito e sua função.

Conforme doutrinou o tratadista germânico de tanto renome, “segundo o conceito do comércio, a emprêsa tem vida própria. O proprietário, ou principal, é, em verdade, o corpo e a alma da emprêsa; mas nem sempre. A emprêsa tem caráter próprio e fadário independente do arbítrio do proprietário. É que a, ela, não à pessoa do principal, os colaboradores, e mesmo o próprio chefe, dedicam suas fôrças. A emprêsa forma o comerciante; mas a recíproca não é verdadeira. A emprêsa é o verdadeiro sustentáculo de seu crédito. A importância da emprêsa, como componente da atividade produtora, deixa no fundo ou na penumbra a figura física do proprietário”.

Ademais, prosseguia a exposição da nova teoria, a emprêsa não é apenas complexo arbitrário de coisas, mas “organismo da vida econômica, sobreposto à pessoa física e assegurado em sua missão sociedade humana”.

Daí chegou a conclusões mais altas, reputando a emprêsa subjetividade jurídica como instituição independente de seu criador; e, como tal, a verdadeira base do direito comercial. O pessoal transfunde-se em órgão da empresa, a que o principal preside e representa, de talante que sua retirada não perturba as relações jurídicas em nome dela contraídas. Por isso, a responsabilidade dela é limitada às dívidas comerciais e não pelas dívidas particulares do privado, de modo a falência da emprêsa não abranger seu patrimônio particular.

Reconheceu tal teoria, dessarte, a personalidade jurídica da emprêsa, a erguer-se à sombra da personalidade de seu fundador ou proprietário, mas desenvolvendo-se com pujança bastante para envolvê-la e, afinal, sufocá-la e sobrepujá-la, tomando-lhe o lugar.

Logrou a teoria assim concebida opositor de grandes méritos. Foi PAUL LABAND. Contraditou-a êste vigorosamente. Não lhe parecera que, em verdade, pudesse a emprêsa conceituar-se, na ordem mercantil, quanto na jurídica, por aquela forma. Ao cabo de argumentos vivazes, veio o contraditor a concluir que a subjetividade da emprêsa pela doutrina endemanniana defendida, atentava principalmente contra a integridade do conceito da própria personalidade.

Assinalaram-se, então, o alfa e o ômega, entre os quais se desenvolveram concepções intermediárias, sem embargo das que se ostentavam num e noutro pólo.

Fora de contenda é que o conceito de emprêsa veio a formar-se, com os característicos que ora se lhe atribuem, mercê do desenvolvimento da chamada economia capitalística, em que os grandes empreendimentos industriais que abalaram o mundo se realizaram por via de sociedades anônimas ou por ações. Desde que, nestas, o elemento pessoal pròpriamente dito cedeu em prol do capitalístico, facilitado nela agilidade da transferência das ações, ao portador, em regra, perdeu-se, de certo modo, a noção do empresário, ou, melhor, do proprietário do negócio, salvo, bem entendido, no caso da existência de acionistas preponderantes, de sobejo conhecidos.

Em casos tais, por bem compreensível mimetismo, desaparecido o caráter personalístico que daria realce às figuras dos empresários, não se deu por conta que a propriedade das emprêsas pertencia a sociedades anônimas, dotadas de personalidade jurídica, para confundi-las como se fôssem elas as emprêsas e estas dotadas daquela mesma personalidade ou, como outros preferem dizer, de superpersonalidade.

Quando a emprêsa seja de caráter individual, por tratar-se de negócio criado, mantido e explorado pelo próprio comerciante ou industrial que a criou e a desenvolveu, o empresário está presente sempre e sua personalidade física ou natural tudo suplanta e domina. É o que já se chamou de grande industrial. Por igual, quando, mesmo tratando-se de sociedade anônima, seja o detentor da generalidade das ações, como acionista preponderante, senhor do negócio. Eis outra hipótese em que o predomínio do empresário, como figura central, é manifesto.

Mas nem sempre é assim. Na maioria dos casos, a emprêsa, ou seja, a organização econômica, técnica e jurídica, da universalidade de bens, destinada ao objetivo mercantil ou industrial de sua finalidade, explorada, por sociedades e notadamente por sociedades anônimas, em que os diretores e acionistas se sucedem, se apresenta por si mesma, como se não tivesse empresários. Ela então se investe na personalidade jurídica das sociedades e cria o problema que está a desafiar a doutrina e a legislação.

E a teoria de WILHELM ENDEMANN sobrenada e cintila como interrogação à espera de resposta.

Sempre se entendeu que os estabelecimentos mercantis e industriais de qualquer natureza, montados por comerciantes ou industriais sob firma individual ou sob a forma societária, tinham por objetivo fundamental o interesse exclusivo daqueles ou dos componentes das sociedades. Não mais do que isso. Dai o dispositivo de todos os Códigos e leis, permissivo da dissolução das sociedades, por via judicial, diante da impossibilidade de sobreviverem por não poderem preencher o intuito e fim social.

Atentou-se, porém, para a circunstância de que as sociedades mercantis ou industriais, como os comerciantes individuais, se, de um lado, carecem, e, necessàriamente, de colaboradores para a consecução de seus objetivos, de outro, exercitam função econômica do interêsse geral da sociedade, desempenhando papel relevante, que não pode ser visto e examinado pelo prisma do interesse particular.

Terá sido por isso que a lei alemã de 20 de janeiro de 1934 instituiu e regulamentou a comunidade da empresa, editando o princípio de que nesta trabalham em comum o empresário como chefe, os empregados como pessoal, para a realização dos fins da emprêsa e para o bem comum do povo e do Estado.

Estabelecida essa comunidade, sob a égide do Estado, as relações de trabalho entre o empresário e o pessoal, que até então eram de natureza privada, caíram sob o domínio do direito público. Assim foi na Alemanha. Por igual na Itália, em que a Carta del Lavoro, enxertada ao depois no Cód. Civil de 1942, estabeleceu os princípios tutelares do trabalho em tôdas as formas de organização e de execução, intelectual, técnico e manual. Em França, criaram-se os Comités d’entreprises, importando na interferência mais direta do pessoal na vida, ou seja, na direção e na administração das emprêsas. Êsses institutos e princípios ganharam generalização em não poucos países, como no Brasil, em que a situação da emprêsa se modificou extraordinàriamente com o reconhecimento do contrato coletivo do trabalho e a organização, em 1932, dos primeiros órgãos da Justiça do Trabalho. Desde que os textos constitucionais brasileiros, a contar da Constituição de 1934, cuidando de promover o amparo da produção e estabelecer as condições do trabalho, na cidade e nos campos, tendo em vista a proteção social do trabalhador e os interêsses econômicos do trabalhador, estabeleceram as linhas mestras da legislação do trabalho, incluindo-se nelas, em 1946, o princípio da participação obrigatória e direta do trabalhador nos lucros da emprêsa, não se transmudou com tudo isso a fisionomia da emprêsa, de molda a dar-se-lhe novo conceito?

Surgida no âmbito do direito comercial, invadida por princípios outros que não os que naquele a disciplinavam, não veio a empresa, na Itália, a ser a célula de organização do próprio Estado?

Tendo assumido proporções tais, não se alargou tanto o conceito da empresa, de molde a ter dominado, em profundidade e em amplitude, o inteiro conceito do direito comercial?

Autonomia do direito comercial

Quando, na Itália, se deliberou elaborar o seu atual Cód. Civil, “facendo superare anzitutto la distinzione tra diritto civile e diritto commerciale“, decretou-se o desaparecimento da autonomia do direito comercial. Condenou-se o Código do Comércio, porque o caráter profissional, que era uma das causas originárias do direito comercial, não era mais característica dêste, quando o fascismo enquadrou totalitàriamente na organização corporativa a produção e a economia nacional. Os estados profissionais e a empresa constituíram o ponto saliente, não apenas dos institutos que tradicionalmente se diziam comerciais, mas ainda dos institutos próprios da economia agrícola que tradicionalmente formava na matéria do direito civil. A unificação da disciplina da emprêsa acarretaria a unificação da disciplina geral das obrigações, extinguindo a distinção entre obrigações civis e obrigações comerciais.

Resolveu, atendendo a tais considerações de DINO GRANDI, o Conselho de Ministros, que o novo Cód. Civil teria um livro “Dell’Impresa e dei Lavoro”, em que, além dos estados profissionais e sujeitos à ordem corporativa, se disciplinaria a emprêsa com as normas e os institutos especiais da emprêsa agrícola e das emprêsas industrial, comercial, bancária assecurativa. Ademais, a emprêsa corporativa; mas, sobretudo, a organização social da emprêsa, com a disciplina dos vários tipos de sociedades, que cessariam representar os tipos especiais das sociedades comerciais, de molde a converterem-se em tipos gerais de sociedades.

Se assim se planejou, assim integralmente não se fêz.

Por mais que desejasse a comissão elaboradora do Cód. Civil cumprir as resoluções do Conselho de Ministros, não via ela como conservar no livro quinto o proposto título “Dell’Impresa e del Lavoro”. Lembrando-se quiçá do aforismo fundido pelos velhos jurisconsultos romanos, de que taberna sine tabernario esse non potesto, e na impossibilidade de dar à impresa o papel e a preeminência que não podia deixar de ser do imprenditore, suprimiu do titulo a expressão, “Dell’Impresa”, permanecendo sòmente a que hoje ostenta – a “Del Lavoro”.

Não dissimulou de todo o ministro DINO GRANDI na Relazione, ou seja, na exposição de motivos do Cód. Civil, o desapontamento que causou o ter ficado na penumbra a emprêsa, que se pretendera erigir em ponto de cristalização do novo direito italiano.

“O Código”, diz a Relazione, “não dá a definição da emprêsa; mas a sua noção resulta da definição do empresário. É empresário quem exercita profissionalmente atividade econômica organizada a fim de produção ou da troca de bens e serviços (art. 2.082). A emprêsa é, pois, em sentido instrumental, a organização do trabalho que dá lugar à atividade profissional do empresário; e, em sentido funcional, a atividade profissional organizada pelo empresário”.

“Se, concluiu a exposição ministerial, segundo o Cód. do Comércio, o conceito de emprêsa se continha no quadro restrito da atividade industrial, o novo Código considera a emprêsa como forma de organização típica da moderna economia, seja no setor agrícola, seja no industrial, comercial, bancário ou assecurativo”.

Resultou disso inequivocamente não ter a emprêsa, em face do Cód. Civil Italiano, a subjetividade que se timbrou em conferir-lhe, porque essa subjetividade é do empresário, ou seja, do que exercita a atividade profissional, como explorador da universalidade de bens, que constitui a emprêsa. Ou é assim, ou emprêsa e empresário são expressões absolutamente sinônimas. Se se atribuísse subjetividade à emprêsa, não a teria o empresário. Um dêsses sujeitos de direito seria demasiado, estaria a sobejar; e a que sobrou foi, precisamente, a emprêsa.

Não há muito tempo, cinco anos no máximo, exibiu-se fita cinematográfica americana que alcançou extraordinário sucesso. Intitulava-se “Rebeca, a mulher inesquecível”. No desenrolar dos quadros falados daquela fita, muito se falava naquela dama. Todos a relembravam a cada instante. Exaltavam-lhe a beleza física, a par da beleza de espírito e de coração. Os espectadores aguardavam, de momento em momento, a aparição da mulher falada, amada e até desejada. Ela não transitou uma vez sequer diante das máquinas de projeção; mas ficou na retina de todos, e como visão imaginária e consoladora. Era a mulher inesquecível…

Assim aconteceu com a emprêsa. É a fórmula apregoada, proclamada, desejada pelos inovadores do Direito moderno, embevecidos com a palavra inesquecível

Pois não é?

Celebrou-se em Paris, em dias de maio de 1954, sob os auspícios da Sociedade de Legislação Comparada, o “Colloque International sur le Droit Privé et le Droit Social”, que estudou o problema do Droit de t’Entreprise et Droit Social. Co-participaram daquele colóquio os mais notáveis juristas franceses e alguns estrangeiros: JOSEPH HAMEL, da Faculdade de Direito de Paris; GEORGE FRIEDEL, da Faculdade de Direito de Nancy; ESMEIN, da Faculdade de Direito de Paris; HOUIN, da Faculdade de Direito de Rennes; SOLA CAÑIZARES, diretor do Instituto de Direito Comparado de Barcelona; DERNIS, advogado agregado ao Tribunal de Comércio do Sena; JUAFFRET, da Faculdade de Direito de Aix-en-Provence; ZWALHEN, da Faculdade de Direito de Lausane; MEIJIRS, da Faculdade de Direito de Leida; WALDEMAR ARECHA, da Faculdade de Direito de Buenos Aires; HAMSON, do Trinity College de Cambridge; LAGARDE, da Faculdade de Direito de Paris; GEORGES RIPERT da Faculdade de Direito de Paris; DAINOW, do Lousiana State Law Institute, e LAWSON, da Universidade de Oxford.

O questionário, submetido àquele colóquio, foi precisamente sôbre a existência e natureza da emprêsa, vida interna da emprêsa e relações da emprêsa com terceiros.

A questão primacial era a de saber se o direito comercial francês poderia acomodar-se com definição de emprêsa como esta: “A emprêsa é agrupamento organizado de pessoas que combinam, em comum, seus capitais ou seus esforços para atividade econômica destinada a proporcionar a uns e outros remuneração justa? Se é certo que a emprêsa é essencialmente comunidade de pessoas (os “prestadores de capitais” e os “trabalhadores”), é necessário excluir, de seus elementos constitutivos, os bens (locais, meios de produção, etc.); ou são de se considerarem êsses bens como objetos de propriedades postos à disposição da emprêsa, a fim de preencher sua missão econômica? Pode-se conceber que os primeiros participantes da emprêsa redijam, de acôrdo, o “contrato da emprêsa”, ou, melhor, os estatutos da instituição, impondo êstes estatutos a quem quer que adira à emprêsa e para ela leve seus capitais, ou seu trabalho, prevendo em que condições os estatutos poderão ser modificados? A existência jurídica da emprêsa simplificará a solução dos problemas que podem originar essas modificações, de molde a afetar o empresário, indivíduo ou sociedade (cf. art. 23, § 7°, do Cód. do Trabalho, que mantêm o pessoal na emprêsa, sem embargo da mudança de pessoa do empresário), a liquidação e a falência? Em que medida poderá a noção de emprêsa servir de critério da nacionalidade das sociedades?

“Não comporta êste relatório sequer o resumo das exposições e debates de tão interessante temário, que se encontra na “Revue Internationale de Droit Comparé”, ano VI, nº 3, de julho a setembro de 1954. Findos os debates, coube ao Prof. HAMEL resumir as conclusões, o que lhe pareceu impossível. Advertiu, todavia, o jurista exímio que se poderia, ao cabo de discussão tão rica e em que se viram nascer muitas idéias, fixar certos pontos sôbre que cada um poderia refletir, não sem salientar que alguns dos intervenientes nela tivessem dito: “Vous proposez la notion d’entreprise; cela ne présent pas d’intérêt pratique“.

Será realmente assim?

Atacou GEORGES RIPERT a noção, de emprêsa, dizendo que ela se liga à noção de fundo de comércio, ajuntando que, no dia em que se disser que o comerciante não é mais responsável senão pelo seu fundo de comércio, a noção de emprêsa se tornará inútil?

Ao sentir de JOSEPH HAMEL, no fundo de comércio de propriedade individual com êle se confunde a noção de emprêsa. E no caso de exploração do fundo de comércio por sociedades? Haverá, além da personalidade jurídica da sociedade, a personalidade jurídica da emprêsa?

Foi êsse exatamente o problema que os redatores do Cód. Civil italiano resolveram, atribuindo o senhorio e posse da emprêsa ao empresário, ou seja, em última análise, ao comerciante ou industrial, pessoa natural ou pessoa jurídica, tanto quanto ao empresário agrícola.

Código Civil, direito civil e o direito comercial

É evidente que, reunindo no Código Civil o direito civil e o direito comercial, o legislador italiano quis em uma só palavra compreender o sujeito da atividade econômica no âmbito civil e no âmbito comercial. Tal o empresário.

Pretendeu a douta comissão organizadora dêste Congresso que se tratasse elaboração do conceito de emprêsa para extensão do âmbito do direito comercial.

Ora, para alargar êsse âmbito, ter-se-á que invadir o âmbito do direito civil, de molde a trazer para aquêle o agricultor, o pecuarista, o que explore a propriedade imóvel, a fim de retalhá-la e revendê-la em lotes, com intuito de lucro e isso até profissionalmente, etc.

Será, para êsse escopo, de mister atribuir à emprêsa conceito tal que possa e envolver aquelas atividades econômicas.

Já me preocupou o problema. Tendo preparado projeto de lei de falência, apresentado à Câmara dos Deputados, em 1950, pelo então deputado PLÍNIO BARRETO, em 1951 reiterado pelo deputado HERBERT LEVY, projeto que ainda não desceu da Comissão de Constituição e Justiça para o plenário, nêle incluí dispositivo, que assim justifiquei:

“Muito se tem debatido a propósito da falência civil, ou seja, da conveniência de aplicar-se o instituto caracterìsticamente comercial ao não comerciante. Toma o projeto, e isso mesmo com alguma timidez, a iniciativa de ampliar a falência ao não comerciante.”

“Por via dêle, pode incidir nela a pessoa natural ou jurídica que, explorando a atividade, econômica não mercantil, como a imobiliária e a agrícola para êsse escopo inscreva sua firma individual ou arquive o seu contrato social no Registro do Comércio, submetendo-se, nesse caso, a todos os dispositivos legais peculiares ao comerciante”.

Com dispositivo de tal porte tentou-se facilitar aos exploradores de atividade não mercantil o inscreverem-se entre os comerciantes. A obrigatoriedade do preceito poderia ser mal recebida entre os agricultores: daí a faculdade que se lhes outorgou.

Alargar-se-á, de certo modo, por essa forma, o âmbito do direito comercial. Mas ainda se poderá fazer mais, independentemente do conceito de emprêsa; tão variável e incerto, com aquêle mesmo objetivo. E vem a ser quanto à exploração de atividade econômica não comercial por sociedades.

Já o dec. lei nº 2.627, de 26 de setembro de 1940, no parág. único do art. 2°, estabeleceu que,

“Qualquer que seja o objeto, a sociedade anônima ou companhia é mercantil e rege-se pelas leis e usos do comércio”.

A exploração da agricultura, da pecuária, ou de propriedades imobiliárias, que, por exigir capitais avultados, adotar a forma da sociedade anônima, comercializar-se-á, para todos os efeitos, a falência inclusive.

Pelo estatuído no art. 1.364 do Código Civil,

“Quando as sociedades civis revestirem as formas estabelecidas nas leis comerciais, entre as quais se inclui a das sociedades anônimas, obedecerão aos respectivos preceitos, no em que não contrariem os dêste Código; mas serão inscritas no registro civil, e será civil o seu fôro”.

Não haverá mais, para a satisfação da tese que me foi proposta, do que derrogar o Cód. Civil nesse ponto e substituir aquêle texto por êste:

“Quando as sociedades civis revestirem as formas estabelecidas nas leis comerciais, elas se reputarão sociedades mercantis, obedecerão aos respectivos preceitos e se regerão pelas leis e usos do comércio”.

Sobre o autor

VALDEMAR FERREMA – Professor de Direito Comercial da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo

___________________

Notas:

* N. da R.: Relatório apresentado ao IV Congresso Jurídico Nacional, realizada em São Paulo, em janeiro de 1955.

1 A. FREMERY, “Etudes da Droit commercial”, Paris, 1833, ed. Alex-Globlet, pág. 18.

2 BARON LOCRÉ, “Esprit du Code de Commerce”, Paris MDCCCXIII, ed. Imprimerie Doublet, tomo VIII, pág. 284.

3 J. M. PARDESSUS, “Cours de Droit Commercial”, Bruxelas, 1842, tomo I, ed. da Société Belge de Librairie Hauman & Cie., página 20, nº 30.

4 P. NAMUR, “Le Code de Commerce Belge Revisé”, Bruxelas, 1884, tomo I, 2ª ed., Bruy-lant-Cristophe & Cie., página 50, nº 62.

5 ALBERT WAHL, “Précis Théorique et Pratique de Droit Commercial”, Paris, 1922, ed. Recueil Sirey, pág. 30, nº 76.

6 CESARE VIVANTE, “Trattato di Diritto Commerciale”, Milão, 1922, 5ª, ed., Cassa Editrice Dottor Francesco Vallardi, vol. I, pág. 100, número 61.

7 LUÍS DA CUNHA GONÇALVES, “Comentários ao Código Comercial Português”, Lisbôa, 1914, vol. I, pág. 581, nº 323.

Sobre o autor

Meroveu de Mendonça, desembargador do Tribunal de Justiça de Alagoas.

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