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CLÁSSICOS FORENSE
REVISTA FORENSE
Aspectos do problema da prova penal, de Roberto Lira
Revista Forense
06/12/2023
SUMÁRIO: 1. Prova. 2. Incumbência, oportunidade, matéria e sede da prova. 3. Objeto e finalidade da prova. 4. Meios de prova. 5. Modos de prova. 6. Oferta e procura da prova. 7. Tomada da prova. 8. Validade da prova. 9. Juízo. 10. Meios de juízo. 11. Interpretação e avaliação da prova. 12. Conclusão. Perspectivas.
1. Prova
Estudei a pré-história e a história da prova penal em conferência escrita para o Congresso do Ministério Público em Salvador, depois desenvolvida para a inauguração do Instituto de Criminologia da Universidade de Minas Gerais e para a Sociedad de Ciencias Criminales y Medicina Legal de Tucumán, Argentina.
Vêde “Revista Brasileira de Criminologia e Direito Penal”, ns. 1 e 2, de 1954. Aí encontrarão os atuais companheiros de estudos, não só a descrição do passado e do presente, como a previsão do futuro, isto é, o período exclusivamente científico da prova penal, em tôdas as fases.
Num curso de criminologia aplicada, minha tarefa é mais restrita e mais direta.
Prova… Esta palavra tem muitas acepções, desde a transcendência moral da expiação, da provação, a alta indagação filosófica e científica, até a que resolve a dúvida aritmética, a que nos sujeita ao jugo do alfaiate ou do compositor tipográfico, a que imola a virgindade do vinho ao regalo do provador.
Nesta Casa não preciso lembrar o mais complexo estudantil – a prova.
Mas, a etimologia do vocábulo – prova – oferece sugestões ao criminologista. O criminalista, não, êste cuida de coisas mais superficiais. Entre os verbetes que distribui aos pesquisadores de nosso Instituto está êste – prova – para mergulho etimológica e semântico.
Não desdenhem e, muito menos, estranhem esta iniciativa. O rendimento de tais investigações, aparentemente impróprias, não está apenas na emulação pedagógica multidisciplinar, mas na imprevista riqueza, tanto vale dizer timo, de retrospectos e perspectivas.
Vêde o fonema peculato. O estudioso, vencendo a ignorância que o fêz admirar-se da promiscuidade no berço de coisas hoje tão diferentes – peculato, pecuária – recebe, ao mesmo tempo, lições de história, economia política, direito, etc.
Nossos pesquisadores aprendem, assim, nessa simultaneidade intensa e querida, nos sete mares, dos desconhecimentos, e não dos conhecimentos humanos, como dizia ANATOLE FRANCE.
Já agora perguntamos. Que há de comum entre prova e probidade?
Será que, da própria etimologia, nasce o clamor ético ao agente e ao paciente, aos críticos e aos intérpretes da prova?
Na resposta, como em tudo, vamos encontrar interêsse criminológico. A questão é saber procurar, colhêr e identificar.
Prova viria de probare, donde também probabilis.
Prova, probabilidade, verossimilhança. TITO LÍVIO ressalvou, porém – e com que profético realismo! – a probabile mendacium, a mentira com aparência de verdade. Causa, para CÍCERO, era, também, a probabilis ratio.
Um mundo de associações e aplicações emerge das raízes, algumas tocantes para os nervos de alunos e candidatos: provar, aprovar, reprovar. Reprovado quer dizer réprobo.
Certas glosas explicam o segundo elemento de prober por imputatio mali ou crimen proiectum.
Probrum tanto pode ser a reprovação, quanto o ato reprovável, isto é, o ato contra a honra, às vêzes stuprum.
2. Incumbência, oportunidade e sede da prova
O vigente Cód. de Proc. Penal, em cuja elaboração tive algumas responsabilidades, modificou até o conceito de libelo. O formulário caducou. “E, sendo necessário, provarei…” Não.
Em primeiro lugar, a prova, então, já está feita e, em segundo, a incumbência constitui, agora, condomínio. O cabecel é o juiz. Vêde as exposições de motivos e outros dados no livro “Interpretação autêntica das leis penais em vigor”, de J. NICANOR DE ALMEIDA.
Provar ali seria, pois, demonstrar, e encontramos mais um elemento para a insaciável e inexaurível semântica da palavra.
O Cód. de Proc. Penal incumbe a prova da alegação a quem a fizer, mas faculta ao juiz, no curso da instrução ou antes de proferir sentença, diligências, para dirimir dúvida sôbre ponto relevante. E o diagnóstico da relevância pertence ao. próprio juiz. Antes da denúncia, não! O juiz não é coadjuvante da parte para a propositura da ação. Seu papel é, então, administrativo.
Varia muito a disciplina da prova, conforme a oportunidade, a matéria e a sede.
A lei processual penal discrimina (não se trata de exemplificação) as diligências na fase policial. Não as deixa a arbítrio da respectiva autoridade e, se esta, no prazo legal, não pôde habilitar o órgão competente ao exercício da ação penal, a êle cumpre mais do que pronunciar-se, passando, pràticamente, a promover, indicando diligências para cumprimento da autoridade policial. Esta já não estará presidindo ao inquérito. Nem se compreenderia isto, com o procedimento sub judice.
Por outro lado, se, ainda depois de ordenado o arquivamento do inquérito, a autoridade policial poderá proceder a novas pesquisas, se de outras provas tiver notícia, com maioria de razões poderá valer-se do art. 10, § 2°, e indicar outras diligências sacrificadas pela angústia do tempo ou sòmente frutuosas depois do início da ação. Com a flexibilidade adquirida pela instrução criminal, em regra só há verdadeira necessidade de baixa dos autos para integrar requisito da denúncia. Mesmo quanta a êstes cabem aditamentos e retificações (art. 569). Do equívoco em vigor resultam pretextos para a passividade do Ministério Público, órgão por natureza dinâmico e diretamente responsável pelo movimento, pelo rumo e pela medida da reação social.
Não é êste o lugar para motivar a referência à medida, diante do preceito que permite ao juiz julgar ultra petitum.
O Ministério Público descarrega sôbre a Polícia a culpa da própria inércia ou incapacidade.
E a Polícia desaperta para a esquerda. A esquerda é o enderêço mais querido de todos os desapertos oficiais. O pior é que, em vez de torturar a imaginação e de eletrificar os subalternos – e, quando o faz, não evita o desespêro – investe contra o suspeito, às vêzes nem sequer indiciado. E se não é indiciado, a lei não autoriza tratamento outro do que o reservado à testemunha, ou ao ofendido.
Esgotadas as diligências expressamente prescritas pela lei, conforme o caso, os autos deverão ser enviados a Juízo, onde o promotor público traçará rumos e aventará meios.
Isto não exclui a punição, de negligências e inépcias, tanto das autoridades policiais quanto dos membros do Ministério Público. E punição pelos seus chefes, e não por juízes arvorados em procuradores gerais, chefes ou corregedores da Polícia, para advertências, repreensões e censuras públicas que o ilícito disciplinar não comporta.
Não me refiro aos crimes, pois, quanto a êstes, os juízes têm o dever não de punir, de plano, por meios e formas ilegítimas, mas de requisitar a ação pública (art. 40).
Os magistrados já encontram muito o que fazer contra os servidores sujeitos à sua ação, como se não bastasse a necessidade de milagres de operosidade e espírito público para despachar o expediente e presidir às assentadas e audiências.
O juiz, ao contrário da parte, não tem imunidades para injuriar e difamar. Êle não discute a causa, como parte ou seu procurador. Entendo que também o Ministério Público não é, a rigor, parte.
Não falo em calúnia, em relação à qual nem o paroxismo passional da defesa exclui o crime.
Que perdoem a êstes cabelos brancos conquistados na luta, em várias frentes, pelos mesmos ideais.
Quando leio ofensas de juízes ou promotores contra a Polícia, penso numa espécie de agentes provocadores. E admiro a resistência pessoal e cívica das vítimas, ainda culpadas.
Quando as sofrem, como acusados logo condenados e executados pelo acusador ilegítimo no pelourinho das manchetes corvejantes da imprensa, devem pensar os policiais nas dores físicas ou morais, nos prejuízos de tôda ordem que, por sua vez, infligem a simples indiciados ou suspeitos, quando não inocentes.
Quanto à matéria, é importante considerar o esbôço de juizado de instrução em relação ao processo contravencional, sem prejuízo, é claro, de elisão em juízo, ex officio ou a requerimento, da presunção que sempre milita em favor da autoridade.
O que eu aceito e prego há, precisamente, 30 anos – conferência no Conselho Brasileiro de Higiene Social – é a consagração do processo monitório. Eis a solução para a infinidade de casos miúdos que oprimem a administração da Justiça criminal (ou anticriminal, como se prefere dizer hoje), prejudicando a defesa social.
As legislações modernas conhecem dois remédios para esta funesta congestão, que não se limita à impunidade dos pequenos ilícitos e consome tempo escasso
para os mais graves reclamos da tutela penal. Tais remédios são a oblação penal e o processo por decreto. A oblação voluntária, reservada à infração sòmente punível com pena pecuniária, pode ser, a meu ver, estendida por uma espécie de comutação a tipos a que se comina prisão simples.
Impõe-se a consideração degradante para a sanção heróica de ilícitos administrativos análogos ou até menos relevantes punidos, pelo sumarismo da sede administrativa, com penas qualitativa e quantitativamente mais severas.
Já se reconhece a autoridades administrativa a preterição da polícia judiciária, e esta caótica invasão das sanções penais na ordem econômica está criando problemas dos mais difíceis. E o mais alarmante é que, operando no alto-mar das traficâncias infinitamente grandes, das opulências astutas e protegidas, também, pelo labirinto das fraudes monstruosas, frustra-se até o ingresso da ação pública entretida com insignificâncias e inocuidades. As filipetadas são criminosas desde a instalação (art. 288 do Cód. Penal). Estas liquidações extrajudiciais, fôro privilegiado que passa a mão na lousa celerada, êstes seguros de probidade que são formas de justiça privada ou de favorecimento e outros atentados estão a exigir atenções sinceras, implacáveis e conseqüentes.
Já o ilícito contra a propriedade imaterial converte o juiz em polícia judiciária para a busca e apreensão. É um privilégio inconcebível, quando a proteção dos inventos industriais e das marcas de indústria ou comércio e dos direitos dos autores de obras literárias, artísticas ou científicas é até mandamento constitucional. As regalias cabem aos protegidos.
Quanto à sede específica da prova, a prática agrava a norma de liscrição, se não sigilo e autonomia, às provas mais influentes: a médico-legal e a técnico-policial, se é que todo o trabalho de polícia judiciária não é técnico.
Mesmo durante a instrução criminal é desvigiada a produção. Dir-se-ia que as autoridades e as partes temem expor sua ignorância, convertendo em tabu a solene, a complicada e peremptória nomenclatura, o sim e não dogmático e enciclopédico dos laudos.
As homologações são cruzes supersticiosas e tributárias, velozmente erguidas em arrevesos de olhos fechados e mãos prudentes.
Os trabalhos dos bons peritos não são honrados pela critica e os maus peritos encontram o caminho livre para a ignorância, a tendência, a covardia. A competência e a atenção de um perito são, muitas vêzes, decisivas. O laudo negativo pode resultar, não da inexistência de crime, mas da perícia do autor ou da chance da designação de um examinador relaxado; ingênuo ou bisonho diante de seu opositor.
3. Objeto e finalidade da prova
É decisiva para bem orientar o estudioso a cautela quanto ao objeto e à finalidade da prova, principalmente a distinção entre prova geral e prova parcial, prova provisória e prova definitiva, prova da autoria, da materialidade, da culpabilidade, da responsabilidade, etc.
Desumanidades das mais injustas provêm de um erro técnico: a confusão entre antecedentes e autoria. Reincidência e mesmo habitualidade não são índices de participação e só interessam depois da certeza desta.
Durante a elaboração do Cód. de Processo Penal, desenvolvi a sistematização ensaiada no meu velho prefácio ao livro de SÍLVIO TERRA.
Tratava-se de, em linhas gerais, discriminar o papel do Manicômio Judiciário, do Instituto Médico-Legal e da Polícia Técnica.
Ainda hoje, tendo sido contemplada tôda a criminalística, inclusive médico-legal, e a psiquiatria, continua esquecida a psicologia, tão importante para o diagnóstico, da periculosidade.
Aqui não cabe o estudo da prova para a prisão preventiva, a denúncia, a pronúncia, a condenação, no processo comum ou nos especiais.
O Instituto de Criminologia tratará dessas especificações oportunamente, como episódio da luta científica contra o crime perfeito. Não entendemos, como tal, o crime de autoria indecifrável, mas o que nem se imagina constituir crime.
4. Meios de prova
Falamos em meios de prova sob protesto, pois prova já é meio. O fim é a evidência. Daí o êrro, mesmo para os que desnecessàriamente recorrem, por pedantismo ou macaquice, ao anglicismo. Evidência é o resultado, é o fim.
A lei limita os meios de prova e estabelece o mínimo formal, mas repudiando qualquer hierarquia. Tôdas as provas são relativas, inclusive a confissão.
O ministro MÁRIO GUIMARÃES, por exemplo, afirmou que tôdas as provas não passam, em princípio, de meras presunções.
Haverá prova objetiva? Objetiva será a coisa examinada, mas o exame projeta sôbre ela quotas subjetivas esmagadoras, inclusive a tolerância ou a intolerância para certos crimes.
Conheci um juiz, aliás reto, que perdia a serenidade diante de um homicídio culposo cometido por motorista.
Já repararam no desdém pelo ladrão de galinhas? No entanto, uma galinha vale muito para o pobre e o violador dos quintais sem segurança pode ser perigoso projeto de assassino.
5. Modos de prova
Ao contrário dos meios, os modos de provas são ilimitados. No seu exercício é que atuam a arte e á técnica do operador. E, quando versa sobre pessoas, ocorre o encontro de personalidades para o duelo psicológico. Bem sei que, diante do criminoso pròpriamente dito, pertencente à delinqüência organizada, aparelhada, protegida, há como que um encontro de potências. Mas êste é assunto para outro estudo.
Buscar, procurar, enfim, investigar, é o básico, mas o fim é impor êstes elementos ao livre convencimento do juiz, preservando-os, pela eficiência, pela segurança e pela lisura, contra a ofensiva do contraditório.
São infinitas as variantes, as adaptações casuísticas e até personalíssimas que se exigem, principalmente do policial, sobre cujo trabalho parasitará depois a rotina judicial.
Ninguém passa pela Polícia sem sofrer suspeitas por tôda a vida.
O procedimento policial, por si só, importa vexames, prejuízos, privações.
A prova policial significa os registros per omnia, banco dos réus, prisão preventiva, publicidade.
Portanto, a higiene da prova não é só um mandamento moral, é, também, um imperativo jurídico e político.
E, examinado a fundo o problema, há interêsse técnico na compostura ética.
Segundo a psicologia judiciária, quem interroga deve estar em nível mais alto do que o interrogado. Mas o cuidado com o nível material não deve prevalecer sobre o moral. Não vejo razão para colocar acusado; e até testemunhas, como querem, em plano inferior, a bem da délivrance. Mas, se há melhor expansão assim, o exemplo de severidade leal e cortês, mesmo para os humildes, será fôrça de respeito e boa vontade. Os sacerdotes e os professôres poderão dizer a respeito.
Uma frase de CRONIN, no seu último livro que recomendo aos criminologistas – “Algemas Partidas” – diz tudo sôbre a realidade atual:
“Na metade do tempo a gente não sabe o que está dizendo. Na outra metade impedem-nos de dizer o que queremos”.
Ah! o desespêro de provar a inocência, de convencer a quem empunha o cassetete. O vocabulário oficial nem se deu ao trabalho de forjar o galicismo e adotou a expressão cínica brutalmente ameaçadora. Há instrumentos de tortura para cada órgão, tudo quebrando da cabeça aos pés.
A Polícia foi uma das vítimas, tanto de meu zêlo de fiscal da lei e de sua execução (vêde “Teoria e Prática da Promotoria Pública”, Rio, 1937), quanto de minha combatividade de jornalista, sempre de oposição, mesmo quando o meu jornal passava, disfarçadamente ou não, do apostolado para o lado oposto. O trocadilho é de EMÍLIO DE MENESES a outro propósito.
Depois, nos vários campos, em que se desdobrou a minha vida pública, combati inércias, violências, corruções, iniqüidades.
Opus-me, e continuo a fazê-lo, à Polícia que comete crimes a pretexto de evitá-los ou reprimí-los. Como promotor público, denunciei autoridades, inclusive o chefe da Polícia Política, durante estado de sítio, pedindo penas severas para abusos e excessos contra humildes cidadãos.
Não hesitei quando Sílvio Terra convidou-me para ensinar na Escola de Polícia, alegando que eu, justamente porque ataquei e ataco a má Polícia, não podia negar colaboração em prol da boa Polícia.
Era um sacrifício. Aulas noturnas, longe de casa. Turmas heterogêneas.
Perguntado, o ilustre técnico e querido amigo afirmou-me que nenhuma limitação ou, sequer, adaptação era imposta, inclusive do programa e método. Deixava tudo a meu critério, certo de que eu não recusaria a ajuda, juntando à luta negativa em tantas campanhas a ação positiva pela elevação do nível técnico e cultural para fins de admissão e acesso. Como rejeitar o convite?
Não me arrependi. Levei para os cursos de Sociologia Criminal, Criminologia e Direito naquela Escola a mesma linha cívica e pedagógica da cátedra universitária.
Confesso que desconfiava das franquias prometidas para as poesias de um crente na liberdade e no progresso, de um compenetrado dos deveres do mestre. E, como não me permito alterar o rigor do meu combate ao êrro, à truculência, à arbitrariedade, esperava não passar da primeira aula. No entanto, terminei três cursos e sòmente o imperativo de obrigações prediletas com a mocidade forçou-me a indicar substituto. Ainda assim, de vez em quando, o aprêço pela missão leva-me a descobrir tempo para aulas inaugurais, cursos intensivos de criminologia a médicos, exames finais e outros trabalhos.
Nunca afeiçoei um argumento, uma informação, um conceito. Jamais recorri a eufemismo.
Dispus sempre da assiduidade, da atenção, do devotamento dos alunos, entre os quais oficiais do Exército e da Polícia, delegados, comissários, peritos, médicos-legistas, escrivães, detetives, investigadores, guardas-civis, todos nivelados pela disciplina e pelo amor ao estudo. Critiquei livremente, como sempre fiz, a Polícia, mostrando que é ela a maior interessada em respeitar a lei e a moral, porque a primeira a sofrer as conseqüências de ilegalidades e imoralidades. Repeti que a Polícia, até etimològicamente, tem raiz comum a povo. Daí a necessidade de reconquistar a confiança do povo, que deve ser por ela protegido nos seus direitos e garantias.
Atendo sempre às convocações das entidades culturais e assistenciais dos servidores da Polícia.
Que se faça, também, a publicidade dos atos justos, humanos e liberais. Veremos que há policiais bons, capazes, dignos e mais admiráveis porque dispõem de arbítrio e armas, enfrentando provocações, necessidades extremas, sob a tradição contagiosa do terror.
É claro que a Polícia não pode ser querida e respeitada pelos criminosos. O próprio crime é desrespeito e hostilidade. Mas, o povo, em geral, não ama a Polícia. O fato é incontestável, apenas variando as interpretações.
Numa democracia, onde o povo deve reinar e governar, tal fato afeta a verdade do poder representativo. Há quem diga que, em tôda parte, a Polícia é impopular. O mal, generalizado, não consolaria, exprimindo divórcio antidemocrático.
Há, contudo, países onde a Polícia impõe-se ao aprêço geral. Mesmo entre nós, ao lado de instantes que atingem à vergonha e à revolta, avultam momentos de comunhão entre a Polícia e o povo. Então, êste é o primeiro a chamá-la, a reclamar sua ação, aplaudindo, até, as espertezas e os rigores bem empregados.
Sempre que se volta, nos limites da lei, contra as ofensas e as ameaças ao bem comum, quer dizer, quando é, legitimamente, Polícia, ela não recebe maldições, porém bênçãos.
A Polícia existirá enquanto viver o Estado. Não me refiro aos novos nomes do velho absolutismo, porque, sob tais disfarces, a Polícia assume, elementarmente, o sentido pejorativo que vem dos ódios, dos sofrimentos e das privações populares. A China viveu 4.000 anos sem Polícia e sem advogados.
Não é contra a Polícia em si que se levanta o sentimento público, mas contra os policiais que, invertendo sua missão, descem à corrução e à brutalidade. E os maiores interessados na punição dos que se tornam mais criminosos do que os perseguidos, convertendo-os em vítimas, são os policiais honestos, apesar de mal pagos pelos serviços rudes e perigosos, e serenos, não obstante as facilidades e os desafios. A fôrça moral, que vem do exemplo, vale mais do que todos os arsenais. A Polícia não pode ser modêlo para delinqüentes.
Muitas vêzes, na defesa de um bem material, policiais atacam bens morais, tais como a honra e a liberdade. “Materialismo” no mau sentido dessa expressão da maior respeitabilidade filosófica.
É preciso desfazer uma legenda que a constância dos atentados fêz nascer, não só em desagravo dos bons funcionários, como, também, e principalmente, em defesa da cultura de nossa pátria.
A Polícia, que já tem tantas culpas e necessidades, que enfrenta, sòzinha, os riscos e os ônus diretos da resistência do statu quo social, precisa devolver aos responsáveis as questões de polícia em que pretendem transformar as contingências históricas, os problemas sociais e até morais.
Já é muito que, nesta transição de idades, a Polícia civil cumpra os seus deveres na repressão e, sobretudo, na prevenção disciplinar e administrativa da criminalidade.
Que todos os policiais sejam símbolos da lei, tanto moral e civicamente, quanto intelectual e tècnicamente.
Cada aluno da Escola de Polícia, que aprende os métodos artísticos e científicos da obtenção da prova, é um espancador a menos. Porque os ignoram, porque só conhecem a tortura para as confissões e delações é que os ineptos copiam, ou excedem, os criminosos. E, se não bastassem as razões de humanidade e respeito próprio para a evolução militariam as de utilidade. Os recursos técnicos são mais eficientes. As violências são até inúteis, porque a Justiça costuma desprezar as provas “obtidas por meios criminosos”.
Não devem ser poupados os policiais que – ofendendo, antes de tudo, a honra da função – profanam o papel de defensores diretos da lei. Que os responsáveis, de alto a baixo, recebam, prontamente, o tratamento penal reservado à crueldade registrada pela covardia contra indefesos e aflitos sob sua proteção.
O povo compreenderá e estimará os riscos obscuros, as rudezas silenciosas, as renúncias discretas de cada dia, ao enfrentar deveres tão mal compreendidos e recompensados, quando a Polícia ascender às culminâncias da ciência, da arte, da técnica, a bem da tranqüilidade, da reputação e do progresso de nossa Pátria.
6. Oferta e procura da prova
A regra é a de obrigatoriedade e de generalidade da prova. Ninguém pode recusar-se não só a depor, como à produção de outra prova penal. Quem o fizer cometerá crime de desobediência. As testemunhas estão sujeitas a outras sanções, inclusive pena administrativa de prisão. Mesmo quem estiver compreendido nas restrições da lei civil e da lei processual penal há de atender à intimação ou à requisição para alegar e, se exigido, provar a escusa.
Não só pela tendência de partidário, em tese, da aplicação analógica da lei substantiva, em certas hipóteses transportaria da ilicitude cívica à ilicitude penal a omissão em detrimento da prova penal.
A testemunha, o perito, o tradutor, o intérprete que calar a verdade em qualquer processo, inclusive o policial, comete crime. E se calar a própria ciência e até a presença?
Ordinàriamente, o cidadão procura furtar-se aos incômodos, se não vexames, da colaboração. Por isso mesmo, a autoridade há de desconfiar de quem se oferece, presumidamente a serviço de paixão ou interêsse. O costume é destacar inutilmente um investigador para descobrir provas. Fica, então, a juízo de subalterno leigo, ainda quando honesto e operoso, a procura tanto mais difícil e complexa, quanto mais perigoso o delinqüente.
De vez em quando – é estranho! – surgem infiltrações de surpreendente espontaneidade.
E as petições de advogados, que só aparecem quando o santo é rico, pelo menos para o cartaz rendoso? Indicam testemunhas, sugerem, criticam, impugnam.
O contraditório começa em Juízo. Por isso mesmo, o art. 14 do Cód. de Proc. Penal deixa a juízo da autoridade a realização de diligência (atente-se, diligência). E, mesmo esta há de partir de indiciado, como tal assente (prisão em flagrante ou preventiva).
Pretende-se o tumulto, o desvio, a protelação. Não há defesa antes de acusação. Na fase policial, salvo o processo de contravenção em que a fase inicial implica a ação. Quando sou ouvido por ex-aluno que confia na minha experiência de quase quarentão do Direito teórico e prático, aconselho, para os petitórios prematuros, o despacho – “junte-se em têrmos”. De duas, uma. Ou já houve distribuição (prisão em flagrante, prisão preventiva, fiança etc.) e o advogado deve dirigir-se ao juiz, intervindo, conseqüentemente, a acusação, ou não houve e, reclamando o advogado, o delegado antecipará a distribuição para resolver o incidente. E isto não quererá o advogado, sob a vigilância do adversário e o contrôle do juiz. As diligências prosseguirão e serão juntas, quando devolvidos os autos.
Coerente com êste modo de pensar, digo de decidir (pensar em sêco é muito fácil), que me parece mais fiel ao sistema processual em vigor, impugno a designação de promotor público para acompanhar inquéritos. Promotor não acompanha coisa alguma. Sua função é outra. Nem o promotor acompanhante tem atribuição para funcionar em certa fase de um processo que caberá ao que servir junto à Vara contemplada pela distribuição.
Nos crimes da competência do júri, por exemplo, nem é preciso distribuição.
Sei que o que se visa é “dar uma satisfação à opinião pública”, segundo o lugar comum burocrático, quer dizer a cobertura moral. Desgraçado país em que a autoridade mais carecida de fôrça moral comete a fraqueza de demitir-se no plano da honra e pedir, ela mesma, sentinela à vista para o policiamento da Polícia.
O promotor acompanhante, chaperon dos chaperons máximos incumbidos dos últimos freios sociais, nem preside nem é presidido, não é parte, testemunha, assistente, é uma categoria processual, hieràrquicamente anômala, tècnicamente anárquica, socialmente iníqua. Daí intervenção clandestina e disfarçada; assessoramento humilhante e deprimente; tutela coonestadora. Iníqua duas vêzes, porque envolve privilégios para a futura parte e porque elege casos, a arbítrio eventual, para a capitis deminutio.
Combato igualmente o unilateralismo em favor da defesa antes da imputação, infiltrando-se pelos desvãos dos processos, ou em favor da acusação na fase que até o segrêdo comporta.
A realidade apresenta, hoje, quadros desconcertantes para a compostura técnica e científica a que tende tôda a sistemática processual penal.
De passagem, cumpro o dever de respigar, na ordem do dia, o caso daquele capitalista, acusado de filicídio, a cuja espera a polícia ficou longamente para que se dignasse fazer o favor de comparecer à delegacia no mesmo Estado, em que a Polícia recolhe ao xadrez (nós podemos avaliar pelos nossos o que é um xadrez policial no interior de um Estado) tôda a família de um indiciado (“nenhuma pena passará da pessoa do delinqüente”) para obrigá-lo a sair da toca. A frase é de um repórter feliz nas analogias zoológicas, não são apenas simbólicas. A pena não passará da pessoa do delinqüente… Ah! a Constituição! Prender mulher, filhos, velhos pais é criar, aplicar e executar pena contra inocentes. E prisão com maus tratos de tôda a ordem, além dos elementares. Enxovia que nem bicho suporta.
Tornam-se, a sim, secundários aquêles males que, tantas vêzes, ocuparam a minha pena e a minha palavra: a influência econômica burlando a vigilância das melhores autoridades, despistando-as quanto ao paradeiro das testemunhas, obtendo das vítimas o não-comparecimento aos exames de corpo de delito, entrando em acôrdo para reparações extrajudiciais, induzindo as testemunhas a dar nomes trocados e endereços falsos, ocultando provas e pessoas, etc.
7. Tomada da prova
Não basta à autoridade policial apurar para a própria convicção, é preciso converter os elementos em autos, têrmos, fórmulas para convencer o promotor e, depois, o juiz.
Até certo ponto o julgamento faz-se ainda ex informata conscientia. E não só no júri. Se à Justiça democrática repugna a balança de dois pesos e duas medidas é pelo vício dos privilégios (sangue, poder, fortuna, raça, religião, idéia). Para individualizar a reação, o julgador precisa de tantos pesos e medidas quantas forem as distinções ponderáveis sob todos os aspectos. Até a balança pode ser diversa para dar a cada um o que é seu pela conquista do trabalho e da cultura, sobretudo moral.
A lei traça a forma, mas o importante para a comunicação do convencimento, mediante trama sutil, complicada, flutuante é o espírito da prova. Dêle a credibilidade contagiosa que persuade, conquista, prevalece. Os advogados sabem extraí-lo em arrancos de síntese psicológica.
Atente-se, sobretudo, na relatividade e no subjetivismo da opção final.
A esta altura de ciência da prova sorrimos do pretensioso juramento inglês: “prometo dizer a verdade, tôda a verdade, e nada mais do que a verdade”.
Que é a verdade? Ah! A incompreensão humana diante da advertência evangélica!
Verdade é aversão que vinga, é a quota que ressoa, é a conjetura ponderável, aceitável.
Na tomada da prova a autoridade policial dispõe de arbítrio negado ao juiz, desde a ausência de formalismos para perguntar até o sigilo.
Por isso mesmo maiores as cautelas contra os abusos. E um dos mais graves é confundir prova com devassa. A prova tem um objetivo, um fim. Quando se trata de humildes, sobretudo, o interrogatório invade tôdas as intimidades, e os agentes, em companhia da reportagem ávida de ilustrações, escândalos, anomalias, viola o lar, inclusive da vítima, tudo trazendo para o gôzo da platéia sem autocrítica e sem sensibilidade moral.
E vemos, na primeira página, aquêles retratos de crianças. Outro dia o repórter fêz uma delas, orfãzinha, beijar o cadáver da mãe para maior efeito do crime… Que crime? O desta publicidade, que é a pena maior para a família onde caiu um raio mui ruidoso do sofrimento.
O policial não deve ser imaginoso. Suas induções hão de partir do que já apurou, com satisfatória exatidão. Êle não julga, prova, procurando, se possível, colocar-se acima do bem e do mal. Assim, evitará a belas, mas perturbadoras paixões, que o, fazem repelir, aceitar ou compreender a conduta criminosa, como homem, sem compromissos funcionais.
Colocado no plano objetivo, fugirá às impressões e a tôda as pressões, depressões, ou – como direi ? – superpressões.
O sensacional, repugnante, simpático converter-se-á em vulgaridade dominada pela experiência comum ou pelo senso comum.
Nada de prenoções, ainda de aparente objetividade. Nem suspeições nem insuspeições. Se de alguém deve suspeitar a priori é de si próprio, de suas fraquezas, de suas deficiência, de seus impulsos primários e superficiais de desconfiança ou confiança.
É claro que, como objeto da provação, há de existir o suspeito, o indiciado, mas o real e não o ficto, quer pelas pretensões de infalibilidade do policial, quer pelas simulações ou dissimulações espetaculares, até a auto-acusação falsa, quer pelos despistamentos ou pistamentos dos mais perigosos.
Estes interrogatórios fluentes, impulsivos, brilhantes mais perturbam os inocentes do que os culpados. São a pedra lascada da investigação. O inquisidor mais eficiente é o que não interroga. E tudo observa, ouvindo, o silêncio, apalpando o nada, vendo o oculto. Agora mesmo um dêsses observadores que parecem dormir diante do alvo surpreende a quantos procuraram nos olhos e nas mãos do interrogado os ponto indefesos e desvigiados das reações emocionais. Era no nariz, muito mais desguarnecido e menos controlável, que êle lia. A anatomia, que tanto preocupou os fisiognomonistas, seria secundária. É o inflar e desinflar, é o enrugar, é o torcer, de que já fala o povo.
Por outro lado, as recentes aquisições trazem rendoso material de prova sôbre a vaidade das testemunhas que, querendo impor õ valor de sua versão, ou pelo pudor de confessar ignorância ou desatenção, recorrem, despercebidamente, à fantasia. Outras, aflitas para depor, para exibir-se e dar o que falar de si nos jornais, mentem descaradamente, de boa-fé. Uma espécie de erotastrismo que depõe contra os depoentes.
A técnica policial, que devolveu à literatura de ficção o sherloquismo, deve tratar de arquivar os bacharéis desconfiados e eruditos prontos a descobrir caras de inocência ou de culpa sintética… Aquêle recém-formado aproveitado, interinamente, numa delegacia no Acre, ao confundir antropologia e etnografia, recebeu do criminoso nato uma lição de sociologia criminal. O fato é que o bacharelzinho fresco, diante da “característica insensibilidade moral, da típica desfaçatez do acuado, com os estigmas lombrosianos”, desabafou: “O Sr. matou 11 e não só um. Olhe aqui os outros. Eu devia esfregar-lhe na cara êstes laudos. O Sr. é um cínico” E o acusado caiu em si, para compreender: “Ah! Eu só matei um. Os outros eram peruanos“. E sorrindo do êrro do delegadote: “Aqui não se conta peruano“.
8. Validade da prova
O melhor esfôrço probatório será inútil se descurada a forma por que se traduz nos autos. A negligência e a imperícia, sob os aspectos legal e jurídico, podem tudo anular, pela preterição das regras legais condicionadoras da validade das diligências e fórmulas processuais. De nada adiantarão os lances da investigação criminal se se ignora ou olvida o direito. Êste não impede, porém, a atuação da argúcia (ah! o eufemismo!). A indução experimental não exclui a intuição; a paciência não afasta o lampejo tanto mais incisivo e fulgurante quanto mais arrimado ao trampolim dialético.
Há mais. As coações que, às vêzes, são formas extremas de covardia e impiedade, vicia, irremediàvelmente, a confissão, mesmo verdadeira. A autoridade que se desrespeita, que se desacata, descendo a imitar o criminoso, previne a Justiça, difundindo auras de desconfiança e descrédito.
As Ordenações eram mais leais. Textos hipócritas aboliram a tortura que continua em pleno vigor, clandestinamente, sob os silêncios compulsórios e os gritos estrangulados.
Indignidade, além de tudo inoperante, inepta.
Suspeito não fica o acusado, mas o policial, suspeita torna-se a conduta e, portanto, a prova. E com ela contaminam-se as confissões em geral, pela exploração da habilidade profissional que de nada vale sem base, como a memória de tantas violências, como a tradição de tantas brutalidades.
De nada valerá o gênio policial violador da Constituição e dos Códigos. Ouvi de um chefe de polícia, militar e não-jurista, esta confidência: “Eu me darei por muito satisfeito se os meus homens aprenderem a Constituição”.
A lei processual não exige muito. Até repele o velho brocardo testis unus testis nullus. A voix d’un pode bastar à certeza moral do juiz. Proscreveu-se aquela ignomínia de inventar testemunhas para completar o número legal. Era como a caça de defensor nos corredores para bater cabalisticamente nos autos pedindo justiça e assinar o têrmo para sacramentar as prevaricações supercriminais.
É preciso que os cuidados de regularização não se limitem aos casos sujeitos ao foco da publicidade. Num dêstes, minha boa-fé recebeu um choque inesquecível. Em 1930, depois de iniciada a rebelião de outubro, fui convidado a comparecer ao gabinete do chefe de polícia. Até a gentileza do intermediário telefônico pareceu-me suspeita. Que quereria de mim a Polícia? A consciência não estava lá muito tranqüila. Eu já andava meio descrente, depois das lições de 22 e 24, mas continuava a ocupar, na imprensa, uma trincheira oposicionista, imprudente e sincera. Quando fui levado à presença do prendedor-mor, logo senti que exagerara a feiura do diabo. Para minha surprêsa, as caras eram risonhas e até atenciosas. Ou as coisas para o govêrno não andavam bem? O chefe referiu-se ao assassínio de um deputado federal situacionista… E como eu era simpático aos revolucionários (sutilezas!) pedia que testemunhasse as confissões dos assassinos. Assim não alegariam violências. Assisti às declarações dos acusados que foram bem tratados e tudo contaram. Assinei os têrmos sem hesitação. Vim a saber, depois, que, antes, os acusados foram servidos de razões para os recitativos em minha presença. E, se falhassem, etc. etc. O Código contenta-se, hoje, com testemunhas da leitura do têrmo. Da espontaneidade e liberdade do confitente não pode dizer quem participou apenas da representação.
9. Juízo
O juízo sôbre a prova não pertence sòmente ao magistrado. A êste corresponde privativamente o que poderíamos chamar sem irreverência o juízo final ou, em certos casos, o provisório, o incidental. Mas também o delegado, não quando relata – aí tôda opinião é demasia que briga com a própria palavra relatório – mas quando representa pela prisão preventiva, quando homologa laudos, quando concede e arbitra fiança, quando aprecia a “fundada suspeita contra o conduzido” para o recolhimento à prisão. O promotor público também ajuíza para os fins de denúncia, baixa ou arquivamento, de fiança, prisão preventiva, liberdade provisória, libelo e sua sustentação, recurso etc.
Mas, se não há a bem dizer, como sabemos pela última palavra da psicologia judiciária, prova objetiva, muito menos haverá juízo objetivo. O subjetivismo, às vêzes individualíssimo e até arbitrário, está na própria natureza de todo juízo. E nós todos julgamos, vivemos a julgar. Agora mesmo, os ouvintes estão me julgando, não pela objetividade da minha prova – esta aula – mas pelo subjetivismo de sua simpatia ou antipatia por mim ou por minhas idéias, opiniões, dados. E êste sentimento resulta de um complexo insondável de heranças e aquisições de tôda ordem. Não é preciso carneluttiar contra a natureza publicística do Direito Penal adjetivo para reconhecer: o juízo é um prius, o silogismo um posterius; aquêle tem caráter inventivo, êste tem caráter demonstrativo. O silogismo pressupõe o juízo. Não se silogiza para julgar, mas para demonstrar como se julgou.
A investigação há de ter sempre presente a finalidade de basear aquêle juízo final, depois do contraste em que tanto influem a ciência, a arte, a técnica da defesa e da acusação, os descontos do tempo para a ponderação, a frieza e outras depreciações normais ou anormais.
E a preocupação do destino da prova deve disciplinar-se numa adaptação à média específica da psicologia das personagens, sobretudo o juiz.
A polícia judiciária deve conhecer a legislação e a doutrina, mas, principalmente, a jurisprudência. E afeiçoar-se, amoldar-se aos critérios e aos rumos estabelecidos pelos tribunais é ajustar meio a fim. O estudo sistemático das decisões oferece também a experiência da mentalidade e do espírito da magistratura.
São nocivas as predileções ou repugnâncias personalíssimas, os pontos de vista, os vincos que se chocam aos usuais.
A política criminal não pode deixar de contemplar essas exigências táticas, estratégicas e diplomáticas nas mais sutis, relações entre a Polícia e a Justiça. Quase 200 anos passaram de Ordenança de Catarina, da Rússia, sem tirar-lhe o viço! A procura e a colheita da prova podem exigir ciência e arte; ao julgamento, em regra, basta o bom-senso.
Todos nós, policiais ou não, lutaremos, como homens e cidadãos, pelos caminhos e pelas soluções que nos pareçam melhores – e aqui estamos usando êste direito ou cumprindo êste dever – inclusive criticando a lei e pugnando por sua reforma, mas, funcionalmente, não podemos ser caprichosos e vaidosos, girando em tôrno de nosso euzinho. Ninguém é obrigado ao serviço público. E; só o ditador considera-se acima da lei.
10. Meios de juízo
A lei processual facilita a captação, a produção, a crítica e a interpretação da prova, favorece o gradual advento das novas conquistas, abre as rotas para o progresso. Os meios de juízo, como veremos, estão libertos dos artifícios formais, dos esquemas rígidos. O velho BERTILLON dizia que quando os crimes forem cometidos por matemáticos os meios de provas serão matemáticos. O arbítrio judicial pressupõe a liberdade das partes para instrui-lo, conquistá-lo e convencê-lo.
O Cód. de Proc. Penal aboliu o sistema da certeza legal, alforriando o magistrado de preconceitos textuais, sem prejuízo, é claro, do respeito ao conteúdo da prova e da motivação da sentença.
O legislador – e aí está a exposição de motivos – deixou bem claro que, enquanto não estiver averiguada a matéria da acusação e da defesa e houver uma fonte de prova ainda não explorada, o juiz não deverá pronunciar o in dubio pro reo ou o non liquet. Êle não estará sujeito a preclusões para a indagação da verdade.
Ficará em dúvida se quiser, se constitucionalmente hesitante e tímido. Agora, o juiz dirige, preside mesmo à instrução, mandando ouvir testemunhas não arroladas e determinando outras provas, inclusive pericial. A velha sátira não subsistirá: um perito = opinião; dois peritos = contradição; três peritos = confusão.
11. Interpretação e avaliação da prova
A tarefa de interpretar e avaliar a prova passou a situar-se no plano da realidade, abrangendo, sobranceiramente, interêsses, paixões, contingências e necessidades, à luz dos imperativos sociais sempre predominantes.
É inevitável a projeção no julgamento da personalidade do juiz. É a êste que a lei confia a decisão, falível e, por isso mesmo, recorrível, ordinária e extraordinàriamente.
Em matéria penal, a impugnação dos dispositivos jurisdicionais faz-se até depois da morte do condenado. Mas, ao dispor, até certo ponto ex informata conscientia, o juiz evitará ingenuidades e insatisfações.
Num julgamento no júri, em que funcionei como promotor, ao organizar a cadeia de indícios contra o réu, tive pudor de incluir certa circunstância assinalada na pronúncia: o crime ocorreu no sítio em que morava a vítima e o cachorro desta não latiu; ora, o animal conhecia o acusado; portanto, quem entrou no sítio para matar a vítima foi o acusado. Limitei-me a despretensiosa e leve referência, pois os vizinhos não ficaram todo o tempo registrando os latidos e a falta dêstes poderia provir de outra causa. O réu foi condenado, e o jurado mais influente explicou, ao despedir-se: “Nós todos podemos nos enganar. Cachorro não se engana. Foi o homem mesmo”. E aprendi: O decisivo foi o indício que considerava mais fraco.
Só a prova falsa é perfeita. Só o artificial é acabado. A prova versa sôbre um fragmento, um destaque, um episódio da vida complexa, funda, ondulante.
Em relação às testemunhas, por exemplo, só as preparadas nos viveiros de falsários deixam de acusar claudicações e deficiências. Entre depoimentos verdadeiros hão de refletir-se as diferenças fisiológicas, psicológicas, sociais, morais, etc. donde o recebimento diverso dos mesmos fatos. Acrescem as variedades de retenção e reprodução. Iguais serão sòmente os depoimentos falsos.
No meu tempo de promotor público aprendi a temer, diante das incompreensões dos jurados e das explorações da defesa, as contradições, as variações das boas testemunhas. E dizia: Livremo-nos dos depoimentos excessivamente verdadeiros e escrupulosos.
Considerava-me, então, muito eficiente, quando, desconfiado de uma testemunha de defesa, perguntava estas coisas que o viveiro ensina a todo candidato a falsário: o tempo que fazia, a distância em que estava, por que estava no local, etc. Queria pegar o mentiroso. E êle sorria de meu primarismo de promotor novo, cheio de vaidade e vazio de experiência. Certa vez, indaguei porque a testemunha gravara a data do fato, e ela: “Ora, “seu” doutor. Como iria esquecer o dia do aniversário de mamãezinha. Eu até levava comigo o meu presentezinho”. E passaria a descrever o presente, aliás ausente, se, eu irritado, não gritasse a minha decepção: “Estou satisfeito”.
E o advogado, sorridente: “Não quer mais reperguntar, Dr. promotor?”
Aquela testemunha tinha curso de doutorado em viveiro. Em juízo é mais fácil pegar o verdadeiro do que o mentiroso.
Hoje, eu deixaria que as testemunhas profissionais depusessem à vontade – tudo certo, exato, uniforme – para melhor criticar depois o excesso de prova. De prova só tem o nome. Prova que não prova? E provar é convencer. O resultado, isto é, a eficácia há de considerar os juízes, os jurados. Os meios de captação e produção da prova hão de consultar sempre os fins.
Por isso, fui bem sucedido quando abandonei as teorias, que, então, não passavam dos livros de MITTERMEYER, MALATESTA, ELERO, MORENO, TESORO, MUSATTI, BONNIER, FLORIAN (ALTAVILLA e GORPHE eram os mais avançados) e fiz interpretação dirigida à inteligência e ao sentimento dos julgadores.
De taco dois momentos inesquecíveis de minha atuação no júri como promotor público. A única prova de autoria eram as palavras da vítima poucos instantes antes de morrer. A defesa alegou o vício da suspeição e a desintegração da síntese mental pela agonia, E citou autores. Resolvi replicar com argumentos extraídos da interpsicologia comum. Preveni a dúvida de que o defensor desdenhara, mas que podia acudir aos jurados. A vítima sabia que ia morrer? Mostrei que sim e, estabelecendo isto, notei a incomparável solenidade do momento, que tranca os lábios do homem para a mentira, engrandecendo-o pelo mistério da transição suprema. A vítima sabia que ia morrer, que a morte era inevitável. E estava lúcida, serena, à altura da majestade da agonia. Mas, se admissível um impulso de vingança, é claro que se dirigiria a quem realmente praticara o crime. O moribundo não iria inocentar o culpado e culpar o inocente.
Noutro caso, a bala extraída do corpo da vítima não correspondia à arma apreendida como instrumento do crime. As testemunhas não traziam qualquer esclarecimento. O acusado negava a autoria. Mas eu sentia na prova a autoria. Devia existir uma explicação para aquêle fato que a defesa saberia aproveitar a fim de obter a absolvição. Na véspera do julgamento, dirigi-me ao local do crime: uma pensão de mulheres. E, em conversa com uma das prostitutas, que depusera no processo e nada dissera, soube da verdade: havia duas armas e a que servira ao acusado fôra escondida. Um companheiro dêste desfechara depois um tiro com a arma apreendida, exatamente para desviar a autoria. A testemunha explicou-me que, ameaçada, tivera mêdo de dizer o ocorrido. Fiz-lhe uma exortação, a bem da verdade, e só da verdade, para que se fizesse justiça. E notei o rubor da compenetração, talvez as primeira; palavras de respeito e confiança que ouvira durante tôda a vida. Disse-lhe que pediria o seu depoimento em plenário. O auxiliar da acusação (o atual assistente) e colegas do Ministério Público tudo fizeram para demover-me da imprudência. Os promotores não gostam de expor sua prova aos imprevistos da reinquirição perante juízes leigos e desconhecedores da relatividade da certeza e das contingências dos seus órgãos. E, então – pior – tratava-se de testemunha indigna de fé. Não desisti. Tentaria desfazer a dúvida que levaria, irremediàvelmente, à absolvição. Se antes apenas sentia nas entrelinhas do processo, agora conhecia a verdade pela pureza cívica de lábio, impuros. A prostituta cumpriu sua palavra. E tudo explicou perante o júri. A firmeza de suas declarações notei logo – impressionou os jurados. O advogado procurou desmoralizar o depoimento, e glosou, sarcàsticamente, a extrema inidoneidade da testemunha. Ora, uma prostituta! Consegui, com palavras intensas e vigorosas, mostrar que o crime não se relacionava à prostituição, que a testemunha era insuspeita. Prostituta, sim, mas não prostituída, pois, naquele mesmo julgamento, dera prova de fidelidade ao dever, de sua honradez como testemunha.
Entre o acusado, moço, forte, próspero, influente, e a vítima, com quem ficou? Com o cadáver. Entre a verdade perigosa e a mentira conveniente, optou pelo sacrifício e pela renúncia, a bem da Justiça. Frisei a segurança de suas declarações, reproduzi as suas atitudes desassombradas e altaneiras e pedi que o veredictum condenatório fôsse também a redenção moral daquela infeliz, fazendo-a perseverar no bem, confiar nos homens, crer na Justiça!
12. Conclusões e perspectivas
A prova penal é assunto multidisciplinar, quando alvorece o período científico de sua captação, de sua produção e de sua interpretação. No estudo, a que me referi especialmente, apresentei o quadro atual da ciência, da arte e da técnica probatórias, sobretudo sob o aspecto psicológico, mecânico e farmaco-dinâmico. Hoje completei aquela apresentação com críticas, propostas e conselhos que me parecem mais oportunos. Sei que ainda há resistências à consagração dos novos métodos, que assumo a responsabilidade de defender com a única fôrça da sinceridade e da experiência tanto teórica quanto prática. A recalcitrância dos antecessores dêsses misoneístas, há um século, hostilizou A. GARDINER, governador da prisão de Bristol, porque queria “essa coisa absurda” – o uso da fotografia na justiça criminal… O Instituto de Criminologia é, além de tudo, uma reserva pugnaz de entusiasmo e esperança. Nossa mensagem não perde a perspectiva moral e política e colocando, acima de tudo, esta verdade: é melhor não punir um crime do que cometer outros crimes para descobri-lo e prová-lo!
Sobre o autor
Roberto Lira, Professor de Direito Penal na Faculdade de Direito do Rio de Janeiro
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