32
Ínicio
>
Clássicos Forense
>
Revista Forense
CLÁSSICOS FORENSE
REVISTA FORENSE
A suposta sociedade internacional de indivíduos de, Amílcar de Castro
Revista Forense
29/07/2024
SUMÁRIO: Realidade biológica. Coexistência de agrupamentos humanos. Sociedade de indivíduos e sociedade de Estados. Organização internacional.
Realidade biológica
1. A humanidade, considerada de certo, modo, é o mesmo formigueiro a surgir em diversos lugares; é imenso todo, ativo, ininterrupto, persistente através da mudança incessante de suas diminutas partes. THÉODOR RUYSSEN, magistralmente, mostra que, não obstante a questão da origem, que ainda não pôde ser esclarecida por investigações científicas, a unidade da espécie humana persevera como fato incontestável, pois enquanto uniões fecundas são possíveis entre indivíduos adultos de sexos diferentes de tôdas as raças, e enquanto os produtos dessas uniões são também capazes de transmitir a vida; unindo-se aos de outro sexo e outra ascendência, nunca pôde isso acontecer entre qualquer raça humana e os antropopitecos menos afastados da humanidade. De tal sorte, fora de qualquer metafísica, a existência de um reino humano é realidade biológica perfeitamente definida.1 Os homens todos, omnes mortales qui ubique sunt, são da mesma espécie. No dizer de VIDAL DE LA BLACHE, numa época em que nem o clima nem a configuração das terras e dos mares correspondiam exatamente ao estado atual, o homem se nos apresenta como ser constituído há muito tempo em suas linhas fundamentais e na posse de quantidade de caracteres comuns que vai muito além da soma das diferenças. Por muito interessante que seja verificar nos australianos, ou nos negritos, menor desenvolvimento da coluna vertebral, maior fragilidade dos membros inferiores, essas diferenças significam bem pouco em comparação com a da cadeia de semelhanças físicas e morais que une os membros do gênero humano entre si e faz dêles um todo.2
E há também incontestável comunhão de vida em tôda a extensão do reino humano. IHERING, em páginas fulgurantes, mostrou admiràvelmente que cada indivíduo existe para a humanidade. Em seu expressivo dizer, “não há vida humana que só para si exista; tôda vida existe ao mesmo tempo para o mundo; cada homem, por ínfimo que seja o lugar que ocupe, colabora em interêsse da humanidade. O mais modesto obreiro dá seu contingente a essa tarefa; e ainda aquêle que não trabalha, mas fala, ajuda, porque conserva vivo o tesouro tradicional da linguagem e auxilia sua propagação. Não se pode conceber existência humana tão humilde, tão ôca, tão estreita, tão miserável, que não aproveite a outrem. Pode ser até manancial de benefícios para o mundo: quantas vêzes a choupana do pobre não abrigou o berço do homem de gênio. A mulher que o deu à luz, o amamentou e lhe prodigalizou cuidados, prestou à humanidade serviço maior do que o que lhe têm prestado muitos reis em seus tronos. E não é raro que uma criança dê a outra melhores lições do que as que lhe dão pais e mestres todos juntos”. “Ninguém existe para si só, nem tampouco por si só: cada um existe para os outros, e pelos outros, intencionalmente, ou não. Assim como o corpo reflete o calor que recebeu de fora, assim também o homem espalha em tôrno de si o fluido intelectual, ou moral, que aspirou na atmosfera social. A vida é respiração contínua: aspiração e expiração; e isto é tão verdadeiro na vida intelectual como na vida física. Existir para outro, quase sempre com reciprocidade, constitui todo o comércio da vida humana”. “Por mais que a gente abra os olhos, há de observar sempre, em tôda parte, o mesmo fenômeno: ninguémexistesóparasi; cada um existe ao mesmo tempo para os outros; para o mundo. Então quanto ao homem de gênio, volvidos séculos, quando suas cinzas estão dispersas a todos os ventos, seu espírito ainda trabalha no progresso da humanidade. HOMERO, PLATÃO, DANTE, SHAKESPEARE, BEETHOVEN, LEONARDO DA VINCI (quem poderá enumerar todos os gigantes do pensamento, os mestres divinos da arte e da ciência, cujo influxo se está fazendo sentir ainda?) continuam vivos para nós, e maiores do que nunca. Cantaram, ensinaram, viveram, pensaram para a humanidade inteira”.3 De tal sorte, qualquer homem, em qualquer latitude ou longitude do tempo ou do espaço, existe para os demais: todos, ainda de lugares distantes, e sem se conhecerem, vivem, pensam, trabalham, uns para os outros, ao mesmo tempo, ou em tempos diferentes, consciente ou inconscientemente Assim, desenvolvendo o pensamento de IHERING, pode-se afirmar que, quando um mecânico desconhecido, no território dos Estados Unidos da América do Norte, se ocupa em fabricação de automóveis; quando um tecelão inglês tece, na Inglaterra, certa casimira; ou quando um químico francês pensa, na França, na composição de um medicamento, estão, sem dúvida, vivendo, trabalhando, pensando, para o brasileiro distante e desconhecido, que talvez ainda não exista, e que, mais tarde, no Brasil, ou em outra qualquer, parte do mundo, veio a ter o luxo do automóvel, o confôrto da casimira mais resistente e de melhor aparência, ou a satisfação de salvar a vida de um filho pelo emprêgo do medicamento. E êsse brasileiro, por sua vez, quando trabalhava, onde estivesse, sem saber da existência dêste químico francês, dêsse tecelão inglês, ou daquele mecânico norte-americano, estava inconscientemente trabalhando para êle, vivendoparaêle. Não há homem independente: todos os sêres humanos são interdependentes; vivem inevitàvelmente inter-relacionados.
ALEXIS CARREL afirma que o homem se prolonga muito para lá da superfície de sua pele. Conhecemos o centro do indivíduo, mas não sabemos onde se encontram os seus limites exteriores. E talvez êstes não existam. Cada homem está ligado aos que o precedem e aos que o continuam. Funde-se com êles, de certo modo. A humanidade não é composta de elementos separados, como as moléculas de um gás. Assemelha-se a uma rêde de filamentos que se estendem no tempo e sustentam, tal como as contas dum rosário, as sucessivas gerações de indivíduos. É fora de dúvida que a nossa individualidade é real, embora muito menos definida do que supomos. A nossa completa independência dos outros indivíduos e do mundo cósmico é uma ilusão. No seu entender, a comunidade humana se compõe de vivos, de mortos e dos que ainda não nasceram; o grupo social é mais que a soma dos indivíduos que o formam, porque compreende não somente os vivos, mas também os mortos, e os que vão nascer; o homem isolado, independente, nunca existiu: dependemos inteiramente dos outros homens, dos que vivem conosco, e sobretudo dos que nos precederam. Robinson Crusoe não teria sobrevivido sem o auxílio das ferramentas, dos objetos e das armas que encontrou: ainda em sua solidão era beneficiário dos esforços de outros homens.4 Para DUGUIT, a humanidade se compõe mais de mortos do que de vivos.5
2. Ensina o professor LYND que não se pode mais pensar no homem como entidade à parte da sociedade. Isto decorria de ver-se antigamente o indivíduo como possuidor de alma, mentalidade e vontade privativas. E assim era considerado como independente, derivando tôda a sua atividade de dentro de si mesmo, através de processos hedônicos racionais, esotéricos; e quando aprendia alguma coisa do mundo ambiente, ou quando agia como membro de um grupo, era isso deliberação de ordem diferente da integridade isolada de sua vida como indivíduo. A ciência moderna, entretanto, vai-se desembaraçando dessa antiga noção de um discreto e autônomo indivíduo. Não há indivíduo separado dos demais, a se manter por si, pelo que importa tautologia falar-se de “indivíduo na sociedade”, pois indivíduo é necessàriamente alguma coisa a viver e a exercer ação mútua sôbre outros indivíduos.6
GERHART NIEMEYER, nesse mesmo sentido, mostra admiràvelmente que, em tôdas as esferas do pensamento, se encontra tendência de substituir a idéia de individualização material pela de conexão funcional. Vai-se interpretando o mundo em têrmos de interconexão funcional, em lugar de o ser, como era, em têrmos de unidades substanciais separadas. “ALBERT EINSTEIN na física, CLAUDE BERNARD na fisiologia. ALEXIS CARREL na biologia, FRANK LOYD WRIGHT na arquitetura, A. N. WHITEHEAD na filosofia, WOLFGANG KOEHLER na psicologia, THEODOR LITT na sociologia, HERMANN HELLER na ciência política, e BENJAMIN CARDOZO no direito, homens representantes de culturas diferentes, países diferentes, aspectos diferentes da vida e do espírito, e tudo isso não obstante procuraram resolver seus problemas com êste senso de realidade, que é o de ver, não a substância material, mas a interação, funcional, para a compreensão do fenômeno”. “Assim, quando FRANK LLOYD WRIGHT parte da idéia de que a essência de uma casa não são paredes, tetos e assoalhos, mas o espaço limitado para viver, compreende que a realidade, visivelmente representada pela construção, não é confinada aos limites das paredes”. “Aliás, há dois mil e quinhentos anos, já LAO TSE observava que a essência da realidade não se encontra na matéria, mas no aspecto imaterial das coisas. No décimo primeiro capítulo do “Tao”, disse: Há trinta raios numa roda, mas sua serventia está no espaço do cubo. O oleiro modela jarras de barro, mas a utilidade destas depende do espaço limitado. O construtor levanta as paredes de uma casa, deixando portas e janelas, mas o valor da construção é medido pelo espaço contido pelas paredes”. “A casa, na verdade não é qualquer coisa separada do mundo, pôsto que materialmente se apresente como unidade desligada; o espaço interior e o exterior estão realmente interconexos, a saber, pelo uso funcional do espaço para viver. Por conseguinte, a substância visível da casa deixa de limitar sua existência. A casa, vista como espaço definido funcionalmente, deixa de ser entidade material separada. As paredes não são mais a essência, sim sòmente uma parte funcional da realidade total do espaço para viver. Em tais condições, por êsse “modo de ver, a realidade não se identifica com a visível materialidade da unidade, e sim com a unidade imaterial da destinação, funcional”.7
3. Evidentemente, cada indivíduo se apresenta com coeficiente peculiar, mas o que não menos evidentemente se afirma é que êsse coeficiente não poderia sair do nada, ou subsistir per se: é sempre produto do passado e do meio ambiente. Veja-se bem que “o indivíduo não é senhor de si, porque nem pode expandir-se como queira, nem pode permanecer em recolhimento como se o mundo não existisse” (PACCHIONE). Todos os homens vivem, pensam, trabalham, abstratamente vinculados uns aos outros, nada importando estejam mais, ou menos, materialmente aproximados, ou afastados, conheçam-se, ou não, mantenham relações de amizade, ou estejam em guerra. SPYKMAN chega a afirmar que as relações internacionais são mais íntimas na guerra do que na paz: “Nós (os americanos) nunca estivemos tão intimamente em relação com os alemães do que durante a guerra. Não me refiro aos de minha geração, que tiveram o privilégio de ser destripados por êles, mas a tôda a população civil, cujos mais variados pensamentos e atividades vieram a ser influenciados pela existência e a atuação dos nossos inimigos tentões”.8
Assim como VALÉRY vê todos os comerciantes ligados por interêsse comum de prosperidade nos negócios, como negotiorum, gestores recíprocos (MERLIN), assim também podem ser considerados todos os indivíduos da espécie humana ligados por interêsse comum, não só de bem-estar, como até de subsistência. Em Verdun e em Dunquerque, o soldado desconhecido morreu pelo bem-estar da humanidade. A regra “cada um existe para outrem” estende-se a todo o reino humano.
Coexistência de agrupamentos humanos
4. Considerada, entretanto, de outro modo, a humanidade não mais se apresenta como um todo cujas partes sejam os indivíduos, mas, comparável a mosaico desconjuntado, como conjunto cujas partes, aparentemente desarticuladas, são grupos, e não indivíduos. Há, e sempre houve, coexistência de agrupamentos humanos. É que não foi à maneira de nódoa de azeite, alastrando-se regularmente pela superfície terrestre, que a humanidade nela se estabeleceu. Desde tempo imemorial, em diversos lados, por ajuntamentos irregulares, como pontos de ossificação, pequenos centros de densidade apareceram. E êsses núcleos originários, grandes e pequenos, podem ser antes comparados a borrifos de azeite esparrinhados, que foram crescendo em tôrno de si mesmos. No dizer de VIDAL DE LA BLACHE, “a difusão geral da espécie humana efetuou-se por vias que não temos possibilidade de traçar de novo. Quer tenha havido um único ponto de dispersão (monogenismo), quer admitamos pluralidade de pontos de propagação (poligenismo), que, em todo caso, teria sido bem restrita, “é forçoso aceitar que a humanidade encontrou diante de si vastos espaços contínuos para expandir-se; uma fragmentação insular teria sido incompatível com as deslocações que esta extensão pressupõe”. “Foi como ser terrestre, com meios de locomoção apropriados ao seu organismo, que o homem pôde franquear distâncias, que causariam assombro, se não soubéssemos de que são capazes os povos primitivos”. “Depois da época longínqua em que se espalhou pelos continentes, a espécie humana pouco mais se difundiu. É preciso unir-se para colaborar, em virtude das necessidades primordiais da divisão do trabalho; por outro lado, dificuldades há que se opõem à coexistência de fôrças numerosas reunidas. Êsse foi o dilema que se pôs às sociedades rudimentares, tal como se apresenta ás sociedades mais avançadas. Não há hiatos entre os dois casos, mas sòmente diferença de grau. Seja qual fôr a importância do grupo de que faz parte, o homem não age, nem vale geogràficamente, senão por grupos. É por grupos que êle atua na superfície terrestre; até nas regiões onde a população parece formar conjunto dos mais coerentes, se a olhássemos mais de perto, resolver-se-ia em multidão de grupos, ou de células, vivendo, como as do corpo, vida comum”.
Estudando o grupo e o meio, ainda afirma o mesmo eminente autor que “a investigação pré-histórica veio mostrar-nos o homem espalhado, desde tempos imemoriais, nas mais diversas partes do mundo, munido de fogo e fazendo instrumentos; atuando em pontos diversos, independentemente uns dos outros, como provam os diferentes processos ainda em uso na produção do fogo. E como desde tão cedo a espécie humana se expandiu pelas regiões mais diversas, teve necessidade de submeter-se a casos de adaptações múltiplas. Cada grupo encontrou no meio especial onde deveria assegurar sua vida, tanto auxiliares como obstáculos: os processos a que recorreu por fôrça dêstes representam outras tantas soluções locais do problema da existência. Os grupos que, na vastidão dos continentes, se fixaram aqui e ali, depararam entre si com obstáculos físicos, que não ultrapassaram senão com o decorrer dos séculos: montanhas, florestas, pântanos, regiões sem água, por exemplo. A civilização resume-se em luta contra obstáculos”.9
Hoje tôdas as partes da terra estão em comunicação; o isolamento é anomalia que importa desafio; e não é só entre as regiões contíguas e vizinhas, mas também entre as longínquas, que existe contato. Entretanto, o que se está mostrando é que no povoamento da terra intervalos vazios, e outros muitos fatôres, persistiram longo tempo, e ainda perseveram em parte. a fazer a distinção dos grupos, especializando-os. Bastaria considerar que as diferenças físicas e morais das principais raças mostram-se conhecidas desde as mais remotas épocas, e sempre foram essencialmente as mesmas. É certo que nenhuma raça se conservou pura; e de freqüentes cruzamentos resultaram povos diferentes; entretanto, os principais característicos das raças branca, preta, vermelha e amarela, sempre se impuseram a diferençar os homens; e além da raça vários outros fatôres motivaram a distinção dos grupos. Conforme à lição de BRIERLY, “se contemplarmos o mundo vivo, e observarmos as instituições por meio das quais funciona seu govêrno, “mais ou menos ordenado, veremos que há cinqüenta, ou sessenta, compartimentos territoriais, quase todos (não “necessàriamente) contínuos, em cada um dos quais um govêrno distinto e autônomo se instituiu. Êsses governos territoriais são também considerados como em relações especiais com a população de seus territórios particulares, de tal modo que a população de um território se compõe de nacionais, cidadãos ou “súditos da organização governamental, a que denominamos Estado”.10
Sociedade de indivíduos e sociedade de Estados
Por conseguinte, na face habitável da superfície terrestre, o que vem sendo encontrado há milênios é coexistência de grupos autônomos com relações sociais de indivíduos pertencentes a todos êsses grupos; e daí, ad pitamaeternam, a idéia de universalidade (altruísmo) a se opor à de nacionalidade (egoísmo).
5. Acontece, porém, que as relações sociais mantidas pelos indivíduos entre grupos diferentes não chegam a formar sociedade. Não se deve confundir o grupo humano com a sociedade dêle resultante. O grupo, sem dúvida, é a base física do raleio social, como o corpo é a do espírito. “O fato social é de natureza ideal; não pode ser percebido com os olhos do corpo; só pode ser acertado no domínio do espírito, pelo que, com maior precisão, deve-se dizer que a sociedade se estabelece, não pròpriamente interhomines, mas ininteriorehomine” (ALESSANDRO LEVI). O grupo é material, ocupa lugar no espaço; enquanto o meio social é imaterial, abstrato: não ocupa lugar no espaço, razão pela qual não se limita por fronteiras territoriais. Tôdas as relações sociais são inextensas; e o meio social consiste, não erra maior ou menor quantidade de gente agrupada, mas exclusivamente em relações abstratas estabelecidas entre indivíduos. Os homens formam o grupo, ao passo que as relações abstratas estabelecidas entre os homens constituem o meio social. E êste, por ser imaterial, nada tem a ver nele com o território ocupado pelo grupo, nem com o lugar no espaço ocupado pelos indivíduos, ou pelas coisas de que êstes se servem. Nada importa, pois, a distância em que se encontrem os homens para que entre êles haja relações sociais Nada importa também se encontre a humanidade repartida em grupos diferentes, já que a formação dessas aglomerações não determina isolamento, ou segregação dos indivíduos, os quais sempre viveram, vivem, e continuarão a viver interdependentemente vinculados. E pode até acontecer que mais intensas sejam certas relações sociais entre indivíduos de raças diferentes, que vivam em lugares distantes do que as que sejam mantidas por indivíduos da mesma raça, ou da mesma família, que estejam em lugares próximos. Todos os vínculos sociais, que se formam entre os homens, são inextensos; não são impenetráveis como a matéria: têm base humana, mas não têm base territorial. E, por essa razão, ao mesmo tempo em que os membros de cada grupo estabelecem entre êles relações sociais particulares, pertinentes ao viver peculiar do grupo, todos os indivíduos da espécie humana permanecem inter-relacionados, e incessantemente, deslocando-se, ou não, no espaço, conhecendo-se, ou não, vivem a manter relações sociais que extravasam aquêle viver peculiar. Para que isso aconteça, nada faz que os indivíduos pertençam a um mesmo grupo, ou a grupos diferentes, ou não pertençam a qualquer grupo particular, porque apenas façam parte da humanidade. Pelo fato de se encontrarem os meios sociais particulares politicamente organizados, não deixam os indivíduos de se deslocar através das fronteiras políticas, de mudar de domicílio ou de nacionalidade, de vender e de transportar mercadorias, de contratar por correspondência, de casar com membros de outros grupos; e, ainda que inativos permaneçam, continuam a depender sempre uns dos outros, a evidenciar que a humanidade é um todo.
Por essa razão, vários autores, como, por exemplo, CHARLES BROCHER, GIUSEPPE CARLE, ANTOINE PILLET, RODRIGO OTAVIO, CLÓVIS BEVILÁQUA, referem-se a uma “sociedade internacional de indivíduos”, em oposição à “sociedade de Estados”, enquanto outros tratadistas sustentam que essa, “sociedade internacional de indivíduos” é ficção desnecessária.
6. Na verdade, nunca existiu essa almejada “sociedade internacional de indivíduos”, se pela palavra sociedade fôr compreendido “um agregado permanente de indivíduos que, ligados entre si por interdependência, cooperam para fins comuns” (SPENCER), já que esta cooperação não pode existir entre indivíduos pertencentes a sociedades diferentes, porque as relações sociais que estabelecem são absorvidas pelas sociedades a que pertencem.
NICHOLAS SPYKMAN entende que, do ponto de vista lógico, a questão de saber se existe, ou não, sociedade internacional não tem sentido, porque não se deve confundir sociedade com conjunto de confusas relações sociais. No seu entender, anarquia e ordem não conotam ausência, ou presença, desociedade, mas apenas ausência, ou presença, degovêrno.11 Mas o que estamos procurando afirmar é que as relações sociais estabelecidas por membros de grupos diferentes, politicamente organizados, não chegam a formar, a caracterizar, ou a especializar uma sociedade internacional, ou universal, de indivíduos, porque essas relações, logo que se formam, são imediatamente aspiradas, absorvidas, açambarcadas pelos meios sociais resultantes dêsses grupos politicamente organizados. Sem dúvida, as relações internacionais, estabelecidas entre indivíduos pertencentes a Estados diferentes, são também juridicamente apreciáveis, não por direito universal, que não existe, mas pelos direitos dêsses mesmos Estados, por intermédio do direito internacional privado.
7. Pode-se falar em sociedade internacional de Estados, aceitando-se a definição de SPENCER acima transcrita, não em sociedade internacional de indivíduos. Sociedade de Estados, por enquanto politicamente desorganizada, ou melhor, estruturada em coordenação, desgovernada.
GERHART NIEMEYER, notando que, para a maioria dos internacionalistas contemporâneos, o mais axiomático de todos os conceitos é a noção de sociedade de Estados, supõe que esta noção contém dois elementos incompatíveis; pois enquanto, por um lado, pressupõe coexistência de vários Estados independentes, por outro lado admite que êsses Estados separados e independentes formem um todo coerente que, por sua própria natureza, pode sòmente consistir em mútua dependência e subordinação dessas unidades dentro da comunidade.12 Entretanto, não existe essa incongruência porque a doutrina moderna já demonstrou que a sociedade de Estados é estruturada emcoordenação, sem qualquer espécie de subordinação. Vale dizer: na sociedade de Estados, êstes se conservam autônomos, entretém relações sociais juridicamente apreciáveis, e sem que sejam governados, em regime de justiça privada, submetem-se ao direito internacional, porque não seria conveniente proceder de outro modo.
Organização internacional
8. A Organização das Nações Unidas evidentemente não é um Estado; é uma organização internacional; não supranacional; destinada a manter a paz e a segurança entre as nações, sem diminuir a autonomia destas, nem engendrar novo govêrno acima dos governos participantes, Basta considerar que sua Assembléia Geral, único órgão principal em que todos os governos são direta e continuamente representados, não dispõe de poder legislativo, pois não é parlamento mundial, sim conferência permanente, com ação limitada a fazer recomendações; e que ao lado disso qualquer membro da Organização pode ser dela expulso, quando se obstine em não seguir essas recomendações, ou em não cumprir os julgados da Côrte Internacional de Justiça, podendo, portanto, haver governos que não façam parte dela.13 Mais não será preciso para se ver que ainda não há Estado acima dos Estados, nem sociedade de Estados, ou sociedade internacional, estruturada em subordinação. A Côrte Internacional de Justiça estabelecida pela Carta das Nações Unidas, como o principal órgão judiciário, não tem sôbre os Estados participantes jurisdição semelhante à que têm os tribunais estatais sôbre os indivíduos; basta ler o art. 36 de seu estatuto: a competência da Côrte abrange tôdas as questões que ambas as partes lhe submetam, declarando que aceitam conto obrigatória sua jurisdição; e, dada a sentença, o Conselho de Segurança poderá limitá-la a recomendações (art. 94). Além disso, pelo art. 95, os Estados podem confiar a solução de suas divergências a outros Tribunais. Não se trata, pois, de tribunal acima dos Estados, com jurisdição compulsória,14 mas de tribunal entre Estados como juízo arbitral mais pomposo.
Organização internacional, conforme a lição de LEONARD, é o método de conduzir relações internacionais por meio de agências imparciais permanentes, às quais os Estados participantes atribuem responsabilidades e autoridade, e através das quais cada govêrno pode advogar políticas e objetivos em relação com seus interêsses nacionais; mas essas agências evidentemente dependem sempre inteiramente das vontades dêsses governos.15
9. BRIERLY nota muito bem que, em matéria de direito internacional, a convicção crescente entre os juristas é a de que muitos postulados tradicionais são puras ficções, de que a gente se deve desembaraçar, caso o direito exija se conserve contato com as realidades da vida internacional. Neste mesmo sentido, mostra OPPENHEIM que nenhuma doutrina deixa de se ressentir, mais ou menos, “da tirania das frases feitas”, e quem esteja em contato com a aplicação do direito internacional, na prática diplomática, ouvirá a todo momento a queixa de que os livros expõem doutrinas fantasistas, em lugar de regras jurídicas reais.16 E para estar de acôrdo com a realidade, o que se deve afirmar é que não existe sociedade de Estados politicamente organizada, estruturada em subordinação, pois apenas o que há são grupos humanos, autônomamente organizados, a manter relações uns com os outros, relações particulares; às vêzes regionais, sem que haja govêrno dessa desorganizada sociedade de Estados; e que não existe sociedade internacional, ou universal, de indivíduos, não obstante, considerada de certo modo, seja a humanidade um todo.
Amílcar de Castro, Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Minas Gerais. Desembargador do Tribunal de Justiça de Minas Gerais
______________________
Notas:
1 THÉODOR RUYSSEN, “Les caractères sociologiques de la communauté humaine”, in “Recueil des Cours”, vol. 67, pág. 132; GIORGIO DEL VECCHIO, “La société des nations au point de vue de la philosophie du droit international”. in “Recueil des Cours”, vol. 323, pág. 545; FERDINAND TONNIES, “Principies de sociologia”, pág. 21.
2 VIDAL DE LA BLACHE, “Principies de geografia humana”, trad. de FERNANDO MARTINS, Lisboa, págs. 55-56.
3 RUDOLF VON IHERING, “A evolução do direito”, §§ 39 a 41.
4 ALEXIS CARREL, “O homem, êsse desconhecido”, pág. 298; idem, “Reflections sur la conduite de la vie”, págs. 222, 280-281 e 287.
5 LÉON DUGUIT, “Traité de Droit Constitutionnel”, vol. II, pág. 7.
6 ROBERT S. LYND, “Knowledge for what ?”, págs. 152-153.
7 GERHART NIEMEYER, “Law without force, pág. 300.
8 NICHOLAS J. SPYKMAN, “Methods of approach to the Study of International Reiations”, in HANS MORGENTHAU and KENNETH THOMPSON, “Principes and Problems of International Politics”, selectedreadings, pág. 25.
9 VIDAL DE LA BLACHE, “Princípios de geografia humana”, págs. 30. 31, 36, 56, 73 e 76; J. GASPAR BLUNTSCHLI, “Derecho Público universal”, vol. I, pág. 30.
10 JAMES LESLIE BRIERLY, “Le fondemont du caractère obligatoire du droit international”, in “Pecueil des Cours”, vol. 23, pág. 524.
11 NICHOLAS J. SPYKMAN, ob. cit., pág. 25.
12 GERHART NIEMEYER, “Law without force”, págs. 289-290.
13 BENTWICH and MARTIN, “A Commentary on the Charter of the United Nations”, New York, 1950; GEORGES KAECKENBEECK, “La Charte de San Francisco dans ses rapports avee le droit international” in “Recueil des Cours”, vol. 70, págs. 113-320; MC NAIR. “International Law in practice”, apud MORGENTHAU and THOMPSON, “Principles and Problems of International Politics”, pág. 113; PAUL HEILBORN. “Les sources du droit international”, in “Recuei des Cours”, vol. 11, págs. 15-17.
14 HANS KELSEN, “The Law of the United Nations”, pág. 516.
15 L. LARRY LEONARD, “International Organization”, pág. 5.
16 JAMES LESLIE BRIERLY, “Le fondement du caractère obligatoire du droit International”, in “Recueil des Cours”, vol. 23, pág. 467.
LEIA TAMBÉM O PRIMEIRO VOLUME DA REVISTA FORENSE
- Revista Forense – Volume 1 | Fascículo 1
- Revista Forense – Volume 1 | Fascículo 2
- Revista Forense – Volume 1 | Fascículo 3
- Revista Forense – Volume 1 | Fascículo 4
- Revista Forense – Volume 1 | Fascículo 5
- Revista Forense – Volume 1 | Fascículo 6
NORMAS DE SUBMISSÃO DE ARTIGOS
I) Normas técnicas para apresentação do trabalho:
- Os originais devem ser digitados em Word (Windows). A fonte deverá ser Times New Roman, corpo 12, espaço 1,5 cm entre linhas, em formato A4, com margens de 2,0 cm;
- Os trabalhos podem ser submetidos em português, inglês, francês, italiano e espanhol;
- Devem apresentar o título, o resumo e as palavras-chave, obrigatoriamente em português (ou inglês, francês, italiano e espanhol) e inglês, com o objetivo de permitir a divulgação dos trabalhos em indexadores e base de dados estrangeiros;
- A folha de rosto do arquivo deve conter o título do trabalho (em português – ou inglês, francês, italiano e espanhol) e os dados do(s) autor(es): nome completo, formação acadêmica, vínculo institucional, telefone e endereço eletrônico;
- O(s) nome(s) do(s) autor(es) e sua qualificação devem estar no arquivo do texto, abaixo do título;
- As notas de rodapé devem ser colocadas no corpo do texto.
II) Normas Editoriais
Todas as colaborações devem ser enviadas, exclusivamente por meio eletrônico, para o endereço: revista.forense@grupogen.com.br
Os artigos devem ser inéditos (os artigos submetidos não podem ter sido publicados em nenhum outro lugar). Não devem ser submetidos, simultaneamente, a mais do que uma publicação.
Devem ser originais (qualquer trabalho ou palavras provenientes de outros autores ou fontes devem ter sido devidamente acreditados e referenciados).
Serão aceitos artigos em português, inglês, francês, italiano e espanhol.
Os textos serão avaliados previamente pela Comissão Editorial da Revista Forense, que verificará a compatibilidade do conteúdo com a proposta da publicação, bem como a adequação quanto às normas técnicas para a formatação do trabalho. Os artigos que não estiverem de acordo com o regulamento serão devolvidos, com possibilidade de reapresentação nas próximas edições.
Os artigos aprovados na primeira etapa serão apreciados pelos membros da Equipe Editorial da Revista Forense, com sistema de avaliação Double Blind Peer Review, preservando a identidade de autores e avaliadores e garantindo a impessoalidade e o rigor científico necessários para a avaliação de um artigo.
Os membros da Equipe Editorial opinarão pela aceitação, com ou sem ressalvas, ou rejeição do artigo e observarão os seguintes critérios:
- adequação à linha editorial;
- contribuição do trabalho para o conhecimento científico;
- qualidade da abordagem;
- qualidade do texto;
- qualidade da pesquisa;
- consistência dos resultados e conclusões apresentadas no artigo;
- caráter inovador do artigo científico apresentado.
Observações gerais:
- A Revista Forense se reserva o direito de efetuar, nos originais, alterações de ordem normativa, ortográfica e gramatical, com vistas a manter o padrão culto da língua, respeitando, porém, o estilo dos autores.
- Os autores assumem a responsabilidade das informações e dos dados apresentados nos manuscritos.
- As opiniões emitidas pelos autores dos artigos são de sua exclusiva responsabilidade.
- Uma vez aprovados os artigos, a Revista Forense fica autorizada a proceder à publicação. Para tanto, os autores cedem, a título gratuito e em caráter definitivo, os direitos autorais patrimoniais decorrentes da publicação.
- Em caso de negativa de publicação, a Revista Forense enviará uma carta aos autores, explicando os motivos da rejeição.
- A Comissão Editorial da Revista Forense não se compromete a devolver as colaborações recebidas.
III) Política de Privacidade
Os nomes e endereços informados nesta revista serão usados exclusivamente para os serviços prestados por esta publicação, não sendo disponibilizados para outras finalidades ou a terceiros.
LEIA TAMBÉM: