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A sentença de pronúncia

REVISTA FORENSE 158

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02/10/2023

SUMÁRIO: Fins do processo penal. Sentença penal. Pronúncia, sentença e não despacho.

1. Fins do processo penal

O direito processual penal, pelo seu caráter instrumental, visa, sobretudo, à atuação do direito penal material. É um meio instituído pelo Estado, titular da pretensão punitiva, para que se cumpram, se efetivem, as normas penais, denominadas primárias, que definem os fatos típicos (crimes), e, ao mesmo tempo, declaram quais as penas que têm de suportar aquêles que violaram ditos preceitos. Êstes representam, portanto, “mandatos abstratos e gerais”, norteadores da conduta que deve ser observada por todos, sob a ameaça de determinadas sanções.

Se o direito processual penal, portanto, tende a êsse fim mediato, qual o de atuar o direito material, razão por que as suas normas são instrumentais e acessórias, qual será, no entanto, o seu fim imediato?

Tem o Estado fundamental interêsse na repressão do crime, para que se garanta, a observância da ordem jurídica violada, titular que é do jus puniendi. No entanto, para que se justifique a repressão, vale dizer, para que se torne efetiva a sanção que, ao lado do preceito, constitui o conteúdo da norma penal material, torna-se imprescindível a comprovação judicial do, fato, tido como delituoso.

O direito de punir do Estado, que representa, sobretudo, uma restrição ao direito de liberdade dos cidadãos, tem, necessàriamente, por fôrça do direito objetivo, de se ajustar às imposições dêste, isto é, o Estado só tem o direito de punir nos casos expressamente determinados pela lei.1

No Estado de direito, a atuação da lei penal material terá de se adequar àquelas normas que criam o organismo do processo, instituídas como garantia dos interêsses sociais da repressão penal e da liberdade individual.

Quando se proclama nulla poena sine judicio, isto é, a pena tem que resultar do processo, se erige como dogma fundamental do processo penal o princípio da sua necessidade, vale dizer, é indispensável a existência de um juízo, através do qual se obtenha a declaração positiva ou negativa sôbre a pretensão punitiva, oriunda do delito.2

Sem a declaração jurisdicional de certeza, quanto à existência do crime e seu autor, não pode o Estado realizar a sua função punitiva. É uma declaração, portanto, de natureza constitutiva, e não meramente declaratória, porquanto exsurge do ato jurisdicional uma nova situação jurídica, cujos efeitos, não existem sem a decisão do juiz. A intervenção dêste, que se concretiza na sentença, é, portanto, necessária. Por isso, a jurisdição penal é denominada jurisdição a priori,3 no sentido de que a administração não poderá levar a têrmo a sua atividade punitiva, sem verificação anterior da conformidade do ato imputado a determinado indivíduo com o tipo específico legal, e, conseqüentemente, prova da sua autoria na pessoa do acusado.

O processo, portanto, visa à atuação da garantia jurisdicional, ou, no dizer de VANNINI, êle é a expressão prática do princípio da garantia jurisdicional.4

O processo tem por escopo tornar efetiva a jurisdição, porque nêle se desenvolvem atividades que procuram alcançar êsse objetivo. Observa SATTA, com justeza, que o processo está intimamente ligado à jurisdição, por terem em comum a mesma base – a justiça. Se suprimirdes o processo, escreve o professor da Universidade de Gênova, tereis suprimido a jurisdição.5

O processo tem um fim imediato, qual o de tornar efetiva a jurisdição, atividade cometida a órgãos do Estado, tende a garantir a ordem jurídica, transformando em concreto o comando abstrato da lei (CALAMANDREI, GRISPIGNI, RANIERI, FANACH, TORNAGHI, FREDERICO MARQUES).

Justifica-se, pois, a denominação direito jurisdicional dada por BALLBÉ à disciplina jurídica conhecida por direito processual, cujo conteúdo abrange o processo (conjunto de atos), o procedimento (regras do processo) e a atividade jurisdicional.6

II. Sentença penal

A sentença é o mais importante dos atos jurisdicionais. É, como ensina CAVALLO, o ato que dá cumprimento à função da jurisdição.7

Não se aceitam, por extremados, os pontos de vista antípodas de KORMANN e IANZA. Êste, quando proclama que a sentença é o único ato jurisdicional;8 e aquêle, ao afirmar que a sentença é ato administrativo.9

A sentença encerra um julgamento. Êste se condena no ato jurisdicional, que, é declaração de vontade (e não sòmente juízo lógico) tendente a definir a relação jurídica material, objeto do processo, ou a resolver uma questão processual.

Evidente, portanto, que o sinal específico da sentença é ser ato de julgamento, tendo, pois, caráter definitivo. Mas por definitiva não se deve entender a sentença passada em julgado, imutável irrevogável, mas a prolatada por juiz, como ato conclusivo da instrução ou do juízo (SABATINI).10

Razão, portanto, não tem o douto e conceituado juiz JOÃO MOURA DA COSTA (v. “Despacho da pronúncia”, “Rev. dos Tribunais”, vol. 43, pág. 322) quando restringe o conceito de sentença criminal.

Pelo exposto linhas acima, infere-se que a sentença criminal não só declara de modo positivo ou negativo a existência do crime e do seu autor (sentença condenatória e absolutória), como também resolve uma questão de natureza puramente processual (relativa aos pressupostos processuais, à admissibilidade da acusação, etc.). No 1° caso temos as sentenças materiais ou de mérito: no 2º, as sentenças processuais.11

No procedimento penal brasileiro predomina o princípio acusatório (processo de partes, com instrução contraditória), no qual se fundem instrução e juízo, sem que se excluam os poderes cometidos ao juiz, no tocante à descoberta da verdade (resquícios do processo inquisitório).

Nesse particular, quem se der ao trabalho de estudar a história do procedimento penal brasileiro, verifica como evoluímos consideràvelmente. No regime colonial, na vigência das ordenações, caracterizava-se o nosso procedimento penal pela inquisitoriedade da fase instrutória (sumário sigiloso e sem defesa), seguindo-se o juízo com citação, libelo, contrariedade, provas, etc. Com a promulgação do Código de Proc. Criminal de 1832, embora inspirado em princípios liberais, continuou, no entanto, a fase preparatória do juízo com o seu caráter inquisitivo. Só com o advento da lei nº 2.033, de 20 de setembro de 1871, e respectivo regulamento, é que tivemos inaugurada entre nós a instrução contraditória, desaparecendo, assim, os remanescentes inquisitoriais das Ordenações.

Mas, de regra, antes da unificação do nosso direito processual, o procedimento penal compreenda duas fases: o juízo da acusação e o juízo da causa. Através da primeira, conhecia-se da admissibilidade da acusação, base do juízo da causa, uma etapa no procedimento penal, cuja finalidade era verificar se existiam elementos capazes de justificar a acusação, e, portanto, a submissão do réu a julgamento. Êste “juízo escalonado” foi instituído pelas Ordenações Manuelinas, tendo as Ordenações Filipinas seguido idêntica orientação. Assim é que passou o juiz a pronunciar-se sôbre a devassa ou a querela, através de sentença, na qual se declarava nome do réu, o crime e o modo de livramento.12 Era a influência do direito romano, que nos últimos anos da República, sob a forma da accusatio, criara a nominis delatio, ou seja a fórmula pela qual o acusador, no sistema das quaestianes perpetuae, declarava o nome do acusado, o crime e as questões do processo, tendo o pretor a faculdade de não admitir a acusação, quando o acusador tivesse perdido êsse direito.13

No entanto, a vigente lei processual penal, apenas quanto aos procedimentos relativos a crimes da competência do júri, manteve a distinção entre juízo da acusação e juízo da causa.

A relação processual que surge com a propositura da ação penal (denúncia ou queixa), nem sempre se exaure com o julgamento sumário da causa criminal (art. 411 da Cód. de Proc. Penal). Admitida a acusação através da pronúncia, a relação processual se apresenta sob outro aspecto, como manifestação dos atos que constituem o juízo da causa, com os quais se chega à decisão sôbre o mérito (condenação ou absolvição). São duas fases bem distintas da relação processual, que evidenciam a sua complexidade e progressividade.

Na primeira delas (juízo da acusação), resolve-se definitivamente sôbre o direito de acusar, isto é, prolata-se um julgamento, tendo por base a instrução, cuja finalidade é tornar certa, através de um ato jurisdicional, a submissão do indiciado ao juízo da causa. Dito julgamento exprime, ensina JOAQUIM CANUTO M. DE ALMEIDA, em concreto, o direito de acusar.14

A natureza processual dêsse julgamento é evidente. Sem a prestação jurisdicional (pronúncia) que encerra o juízo da acusação, não se instaura o juízo da causa.15 A sentença de pronúncia representa uma formalidade indispensável, em relação ao julgamento do mérito, se provada a materialidade do crime e indícios existirem da autoria criminal na pessoa do acusado. Através dêsse ato jurisdicional, aquêle a quem se imputa a prática do crime é enviado a juízo.

No direito francês, a sentença da Câmara de Acusação, denominada arrêt de mise en accusation (Cód. de Instrução Criminal, arts. 232 e 271, modificados pela lei de 17 de julho de 1856), corresponde à pronúncia do nosso direito, pois o acusado é enviado a julgamento da Cour D’Assises. No direito português a acusação também é definida pela pronúncia. No direito italiano há a sentença de rinvio a giudizio, a qual MASSARI atribui caráter substancial e não processual,16 discordando profundamente de NUVOLONE17 (v. art. 374 do Codice di procedura penale). No direito inglês, idênticos efeitos produz o true bill. Na legislação espanhola (ley de enjuiciamento criminal de 17 de setembro de 1882) instituiu-se o auto del procesamiento, da mesma forma que o direito alemão criou o auto de abertura do juízo, existente nos Códigos de 1877 e 1924.

III. Pronúncia, sentença e não despacho

É evidente a definitividade da pronúncia, no tocante à matéria processual nela resolvida, porquanto, se, de um lado, o mérito da cansa criminal pode ser reexaminado, de outro lado, esta decisão é um pressuposto do juízo de causa, obrigando o acusado a comparecer a julgamento.

Ressalte-se, com apoio em SABATINI (Guglielmo), MASSARI, RANIERI e outros mestres, que o conceito de sentença definitiva não se restringe àquelas que resolvem o mérito da causa criminal. Se assim fôra teríamos de considerar sòmente como sentença as de natureza exclusivamente material, quando, ao lado destas, há as de natureza processual.

A sentença, ensina SABATINI, tem sempre caráter definitivo. A definitividade da sentença, continua o consagrado mestre, deve ser encarada quanto ao juiz que a emite, como ato conclusivo da instrução ou do juízo, nos diversos graus da jurisdição (o grifo é nosso).18

A pronúncia, que equivale à sentença de rinvio a giudizio do direito italiano, é ato definitivo quanto aos seus efeitos processuais, por encerrar um juízo. Ela, da mesma forma que a decisão de mise en accusation do direito francês, encerra uma fase do processo, a instrução. Representa a pronúncia um julgamento, no qual o juiz declarará o dispositivo legal em cuja sanção julgar incurso o réu (§ 1º do art. 408 do Cód. de Proc. Penal), enviando o pronunciamento a plenário.

O caráter da sentença da pronúncia torna-se ainda evidente, se a examinarmos como ato ao qual a lei empresta autoridade de coisa julgada. Dela emerge um comando, de natureza imutável, quando adquire essa qualidade (autoridade de coisa julgada). Assim, passada em julgado a pronúncia, ela é imutável quanto é, classificação do delito, salvo a hipótese prevista no art. 416, segunda parte, do Cód. de Proc. Penal, como imutáveis são os seus efeitos processuais, conforme exposição linhas abaixo. E a parte dispositiva da pronúncia, isto é, que declara o dispositivo legal em cuja sanção está o réu incurso, que encerra êsse comando (limite objetivo da coisa julgada, quanto à pronúncia).

Além dessa característica emergem da pronúncia vários efeitos processuais: a) captura do réu; b) arbitramento da fiança, se afiançável o crime; c) lançamento do nome do réu no rol dos culpados; d) paralisação do processo, se revel o acusado; e) a intimação da sentença de pronúncia, nos crimes inafiançáveis, será sempre feita ao réu pessoalmente; f) obrigação de o réu comparecer a plenário para ser julgado.

Em plenário não se reexamina a sentença de pronúncia, que produziu todos os seus efeitos, legitimando, portanto, a acusação, e, tornando, pois, obrigatório o julgamento. Reexamina-se, sim, o caso, que foi apreciado na preparação lógica da sentença de pronúncia. Mas, o que na sentença tem caráter de imutabilidade não é a atividade lógica, mas a parte dispositiva.19 E esta é, na sentença de pronúncia, a que declara o réu incurso na sanção de determinado dispositivo da lei penal material, sujeito, portanto, a julgamento perante o Tribunal do Júri. Se a pronúncia passou em julgado, tornou-se nesse particular definitiva, no tocante à submissão do réu ao juízo da causa, perante o qual vai a julgamento, como responsável pela prática de determinada infração, já classificada definitivamente (salvo a exceção prevista no art. 416 do Cód. de Proc. Penal) no ato jurisdicional que encerra o juízo da acusação.

Sobre os autores

Ademar Raimundo da Silva, juiz no Estado da Bahia.

______________________

Notas:

1 TOLOMEI, “Principi fondamentali del processo penale”, 1931, pág. 80.

2 MANZINI, “Tratado” (trad. espanhola); ed. 1951, 1º, págs. 248 e 257.

3 CALAMANDREI, “Estudios”, pág. 243.

4 “Manuale”, pág. 11.

5 “Introduzione”, pág. 32

6 FENECH, “Derecho procesal penal”, 1ª, pág. 65.

7 “La sentenza penale”, pág. 112.

8 “Sistema”, 1º, pág. 248. Também MIRTO e RENDE, in PANNAIN, “Le sanzioni”, pág. 144.

9 In MASSARI, “Le dottrine”, pág. 165.

10 “Il codice”, 3º, pág. 297.

11 SABATINI, ob. cit, pág. 297; RANIERI, “Istituzioni” pág. 214: MASSARI, “Il processo”, pág. 344; FREDERICO MARQUES, “O Júri”, página 120.

12 JOÃO MENDES, “O processo criminal”, 1º, pág. 142.

13 MOMMESEN, “Derecho Penal Romano”, 1º, pág. 378.

14 “Princípios constitucionais da coação processual”, in “REVISTA FORENSE”, vol. 84, página 579.

15 FREDERICO MARQUES, “O júri”, página 61.

16 “Il processo”, pág. 656.

17 “Contributo”, pág. 68.

18 Ob. cit., pág. 297.

19 LIEBMAN, “Autoridade”, pág. 51.

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