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CLÁSSICOS FORENSE
REVISTA FORENSE
A educação jurídica e a crise brasileira – F. C. San Tiago Dantas
Revista Forense
22/11/2023
SUMÁRIO: Sociedade e cultura. Progresso, decadência e cultura. Classe dirigente e cultura. Decadência cultural e secessão política. A crise da sociedade brasileira e a Universidade. A cultura jurídica e a crise social. Restauração da cultura jurídica pela educação. A didática tradicional e a nova didática. “Text system” versus “Case system”. Conseqüências da nova didática. Críticas ao ensino casuístico. Formação geral versus formação especializada. Técnica do currículo flexível. Os currículos especializados. O velho criticismo. Vivificação da educação jurídica. Resumo e conclusão.
*Agradeço muito desvanecido ao ilustre diretor desta Faculdade a honrosa Incumbência, que me conferiu, de pronunciar a aula inaugural de 1955. Proponho-me dar desempenho a ela, tratando da educação jurídica e dos problemas do ensino do direito entre nós, para os quais desejo oferecer, como simples ponto de partida para debate mais amplo, um esbôço de solução.
O problema do ensino jurídico pode ser tratado como uma projeção, em campo mais particular, do problema geral do ensino superior, ou do problema da educação em todos os graus.
Não é êsse, entretanto, o ponto de vista de que pretendo encará-lo. Pretendo discuti-lo como um aspecto ou projeção da própria cultura jurídica, e para isso examinar, primeiramente, o papel do direito e da educação jurídica na cultura de uma comunidade.
Sociedade e cultura
As sociedades se formam, assumem características e peculiaridades; e conseguem manter-se e expandir-se ao longo do tempo, graças aos meios de contrôle com que subjugam, de um lado, o mundo físico, que as rodeia, e, do outro lado, o mundo social e humano, de que são formadas. Adquirindo o conhecimento dos fenômenos naturais e fixando processos para nêles intervir objetivamente, orientando-os e captando-os em seu proveito, a sociedade desenvolve-o que podemos chamar os seus contrôles tecnológicos, graças aos quais logra dar resposta aos problemas que lhe são lançados, como desafios, pela natureza. Adquirindo, por outro lado, o conhecimento do próprio homem, penetrando no seu mundo interior e cunhando normas para disciplinar e orientar subjetivamente a sua vida individual e comunitária, a sociedade desenvolve o que podemos chamar genèricamente os seus contrôles morais, graças aos quais mantém a sua própria estrutura e consegue governar o próprio emprêgo daqueles meios de domínio da natureza.
O acervo dos contrôles tecnológicos morais constitui a cultura.
Se compararmos duas sociedades diversas, traduzindo dois tipos de civilização, verificaremos que muitas vêzes numa delas se avantajam os contrôles éticos, sem que paralelamente se desenvolvam os tecnológicos. Foi o que sucedeu na civilização medieval, quando a sociedade contou com um arsenal de contrôles éticos superiormente desenvolvidos, ao mesmo tempo que decaiam os contrôles tecnológicos em relação à cultura anterior.
Outras vêzes – e é o que sucede nos tempos modernos – expandem-se além de todos os limites anteriormente conhecidos os contrôles tecnológicos, ampliando o domínio do meio físico pela sociedade, mas não se desenvolvem paralelamente, antes declinam, os contrôles éticos indispensáveis ao próprio govêrno do novo poder do homem sôbre a natureza.
Progresso, decadência e cultura
Entre os problemas que o meio físico e o meio humano deparam à sociedade e os meios de contrôle ético ou tecnológico de que esta dispõe para resolvê-los, existe uma relação, cujas variações são decisivas para o progresso ou o declínio da sociedade. Se os meios de contrôle aumentam em número ou eficácia, permitindo alcançar solução para problemas até então irresolvidos, ou aperfeiçoar, estabilizar, tornar menos onerosas as soluções existentes, a sociedade se expande; se os meios de contrôle se reduzem em número ou eficácia, deixando irresolvidos problemas que até então se achavam solucionados ou que se não haviam apresentado reclamando solução, a sociedade declina e se encaminha para o desaparecimento.
Foi o mérito indiscutível de ARNOLD TOYNBEE haver dado uma formulação adequada à correlação que existe entre a expansão e o declínio das sociedades, de um lado, e de outro o aumento ou diminuição da eficácia dos meios de contrôle, com que elas dão resposta aos problemas de ordem física e social. Hoje é lícito dizer-se que a causa imediata da expansão ou da decadência de uma civilização ou mesmo de um grupo social, como um Estado, ou uma entidade menor contida no Estado, reside respectivamente no aumento e na perda da eficácia de sua cultura, na capacidade ou incapacidade de criar e aplicar as técnicas diversas de contrôle do meio físico e meio social.
Classe dirigente e cultura
E’ interessante notar, neste ponto, que a elaboração ou o desgaste de uma cultura não correm jamais por conta da sociedade no seu todo, mas são imputáveis exclusivamente à sua classe dirigente. À classe dirigente compete dar resposta aos problemas físicos ou sociais, que causam dano ou perigo ao organismo. E é a sua capacidade de encontrar e de aplicar as respostas adequadas aos problemas, que permite a uma classe dirigente manter-se como dirigente, obtendo pela ação de um poderoso instinto social – o mimetismo – a adesão e a colaboração dos segmentos sociais restantes, que constituem a classe dirigida.
Perca, porém, a classe dirigente a virtuosidade para resolver problemas, deixe sem resposta os desafios que lhe lança o meio social ou o meio físico, e daí começam afluir dois efeitos inelutáveis: para a sociedade, como um todo, rompido o equilíbrio entre os problemas e os meios de contrôle que os resolvem, se inicia a decadência; para a própria classe dirigente, começa o processo de insurreição da classe dirigida, gradualmente desligada de sua subordinação mimética, e a transformação, às vêzes lenta, mas a partir daí inevitável, da autoridade em privilégio.
Pode suceder que a relação de equilíbrio entre os problemas e os meios de contrôle se rompa por uma perda dos contrôles tecnológicos ou por uma perda dos contrôles ético-sociais. No primeiro caso, a sociedade sucumbe pela incapacidade de sua classe dirigente de conservar, de adquirir ou de inventar as técnicas reclamadas por problemas do meio físico, como o das terras cansadas, o da diminuição da fertilidade, o das sêcas e desertos, o das endemias e epidemias, ou reclamadas por problemas como o dos transportes, o das fontes de energia, o do armamento, o da baixa produtividade industrial, e outros semelhantes. No segundo caso, a sociedade desaparece pela incapacidade de sua classe dirigente de manter a vida social sob a disciplina de normas éticas e jurídicas eficazes, que mantenham as atividades do grupo subordinadas aos ideais da sua cultura, conciliando justiça e eficiência, c impregnando de seus critérios éticos tôdas as formas de exercício da autoridade.
Se moral e direito perdem a eficácia para conter e legitimar o utilitarismo egoístico da classe dirigente, não tarda que percam também fôrça persuasiva e eficácia preventiva junto à classe dirigida, e que se comprometa a coesão e equilíbrio da comunidade. Inicia-se então o processo de secessão política, isto é, a classe dirigida gradativamente se emancipa da liderança da classe dirigente tornada ineficaz, e entra naquele estado de disponibilidade, em que pode ser fàcilmente capturada pela sedução dos chefes de fortuna, ou pelo poder persuasivo de métodos de propaganda endereçados aos temas de ocasião.
Decadência cultural e secessão política
A ruptura entre a classe dirigente e a classe dirigida, pela perda da capacidade da primeira de resolver os problemas que se deparam à sociedade como um todo, traz, assim, como fase sucessiva, o estado de disponibilidade da classe dirigida, ou seja, o clima da demagogia. Estabelece-se, então, a oportunidade do cesarismo. Desacreditadas as classes dirigentes, as classes dirigidas apelam para o que MAQUIAVEL já denominava a virtù dos homens que lhe sabem captar a confiança através de afinidades emocionais. E quando êsses homens conseguem chegar ao poder supremo, cercar-se de uma burocracia civil ou militar por meio da qual restauram a eficiência perdida pela antiga classe dirigente, e criar um compromisso de sobrevivência para as classes dirigente e dirigida, então o cesarismo alcança a sua forma mais estável – o fascismo – suscetível de várias reapresentações históricas mas definido invariàvelmente por êsses elementos constitutivos.
A fase demagógica não é, porém, a última a que a sociedade atinge, depois de rompido o laço mimético entre as classes dirigente e dirigida. O processo de secessão continua, até que uma nova classe dirigente, saída dos quadros sociais da classe dirigida ou vinda do exterior, recapture a liderança, formando um novo grupo social. Êste novo grupo pode ter a mesma composição humana e os mesmos limites espaciais do grupo primitivo, como sucede quando, dentro, de uma sociedade nacional, cai uma classe dirigente e é substituída por outra, gerada, após um interregno de demagogia, no seio da própria classe dirigida; e pode ter nova composição e novos limites, como sucede quando a perda de liderança da classe dirigente conduz à invasão estrangeira, à anexação territorial, à absorção da comunidade em comunidades maiores ou ao esfacelamento em unidades de menor âmbito, cada uma delas suscetível de uma forma específica de recomposição.
A crise da sociedade brasileira e a Universidade
A sociedade brasileira de hoje oferece um exemplo perfeito da crise determinada pela perda de eficácia ou poder criador da classe dirigente. Os que se acham no comando da sociedade perderam gradualmente o poder de encontrar soluções para os problemas, não só para os problemas criados pelo meio físico e pelas exigências da civilização material, como para os problemas de autogovêrno da sociedade, inclusive o da transmissão de seu acervo cultural através da educação.
A incapacidade da classe dirigente para criar, assimilar, executar e adaptar as técnicas necessárias ao contrôle do meio físico e do meio social, já permitiu que se iniciasse entre nós, sobretudo nos centros urbanos e nas regiões mais adiantadas, onde a pressão dos problemas irresolvidos se faz sentir com maior intensidade, o processo de secessão da classe dirigida, a qual se está separando ràpidamente da antiga classe dirigente e apresentando a inevitável reação demagógica, que acompanha o colapso da liderança.
Quando fracassa a classe dirigente na sua função específica de resolver problemas e de manter em uso as técnicas de contrôle da sociedade e da natureza, cabe um papel histórico às universidades e às escolas, zela capacidade que deve ter tôda corporação estudiosa de se desprender, pelo raciocínio, dos processos sociais de que participa, e medir a sua extensão, verificar o seu sentido e apontar os meios de retificá-los.
Pode, assim, partir da Universidade uma palavra de advertência à classe dirigente; uma palavra que lhe permita deter ou modificar o curso de sua própria liquidação, ou, se essa liquidação fôr inevitável, por já estar germinando no seio da classe dirigida, ávida de eclosão, a classe dirigente de amanhã, pode a lição, da Universidade influir benèficamente no seu advento, dirigindo num sentido melhor o esfôrço de recuperação de comando, e preservando o máximo de paz social e de continuidade.
É certo que na perda de poder criador da sociedade, a Universidade tem a confessar grandes culpas. Se há problemas novos sem solução técnica adequada; se há problemas antigos, anteriormente resolvidos, cujas soluções se tornaram obsoletas sem serem oportunamente substituídas; se apareceram novas técnicas, que o nosso meio não aprendeu e assimilou; em grande parte isso se deve ao alheamento e à burocratização estéril das nossas escolas, que passaram a ser meros centros de transmissão de conhecimentos tradicionais, desertando o debate dos problemas vivos, o exame das questões permanentes ou momentâneas de que depende a expansão, e mesmo a existência da comunidade.
Diga-se, a bem da verdade, que não cabem, nesse particular, culpas maiores à Universidade brasileira, do que à maioria das universidades. Sua tendência institucional, em tôda parte, tem sido para fazer dos conhecimentos, que transmitem, um corpo estanque, desligando-se das bases existenciais que animam e vivificam êsses conhecimentos, e que os unem ao destino histórico da própria sociedade. Daí necessitarmos hoje, em todo o Ocidente, de uma revisão da universidade, para a recuperação plena do seu papel elaborador dos novos instrumentos de cultura, que a vida social reclama.
A cultura jurídica e a crise social
Essa recuperação é também essencial e inadiável no campo da educação jurídica.
Pela educação jurídica é que uma sociedade assegura o predomínio dos valores éticos perenes na conduta dos indivíduos e sobretudo dos órgãos do poder público. Pela educação jurídica é que a vida social consegue ordenar-se segundo uma hierarquia de valores, em que a posição suprema compete àqueles que dão à vida humana sentido e finalidade. Pela educação jurídica é que se imprimem no comportamento social os hábitos, as reações espontâneas, os elementos coativos, que orientam as atividades de todos para as grandes aspirações comuns.
Ora, quem examina a cultura moderna, nos últimos decênios, não só entre nós, mas também entre outros povos, não pode deixar de reconhecer que o direito, como técnica de contrôle da sociedade, vem perdendo terreno e prestígio para outras técnicas, menos dominadas pelo princípio ético, e dotadas de grau mais elevado de eficiência. A ciência da administração, a ciência econômica, as ciências que procuram sistematizar as diferentes formas de contrôle social, fazem progressos que algumas vêzes colocam os seus métodos e normas em conflito com as normas jurídicas. E o direito assume, nesse conflito entre um critério ético e um critério puramente pragmático, o papel de fôrça reacionária, de elemento resistente, que os órgãos de govêrno estimariam contornar para poderem promover por meios mais imediatos e diretos o que lhes parece ser o bem comum.
Os traços dêsse conflito cultural estão marcados na vida contemporânea em exemplos numerosos. Raro é o administrador que não está convicto da utilidade de ditar normas in concretu, sem passar pelo circuito da norma geral e abstrata, editada pelo Legislativo. Raro é o legislador ou administrador que não vê de má sombra os golpes a que os tribunais submetem os atos arbitrários, muitas vêzes inspirados por princípios salutares de economia e administração. E é freqüente ouvir-se de um administrador que está disposto a agir fora do direito, mas de acôrdo com uma técnica administrativa, que lhe parece eficiente, remetendo as partes contrariadas ao julgamento dos tribunais.
Tôdas essas atitudes procedem de uma perda crescente de confiança no direito, como técnica de contrôle social. Ora, essa perda de confiança envolve, em suas últimas conseqüências, a contestação, ainda que no terreno intelectual, da supremacia da ordem jurídica, e a determinação dos fins da atividade social através de critérios estritamente pragmáticos ou políticos emancipados de tôda sujeição ao direito. Considerada no campo histórico da civilização ocidental, a que pertence, ela subverte as aspirações permanentes da nossa cultura, e marca, melhor do que qualquer outra, a sua reorganização no sentido da destruição.
Restauração da cultura jurídica pela educação
Como, porém, iniciar, na atmosfera de crise em que vivemos, um movimento de restauração da supremacia da cultura jurídica e de confiança no direito como técnica de contrôle do meio social?
Esse movimento tem de lançar raízes numa revisão da educação jurídica, e é, portanto, como programa de ação, um apêlo à reforma do ensino do direito nas nossas escolas e universidades.
O ponto de onde, a meu ver, devemos partir, nesse exame do ensino que hoje praticamos, é a definição do próprio objetivo da educação jurídica. Quem percorre os programas de ensino das nossas escolas, e sobretudo quem ouve as aulas que nelas se proferem, sob a forma elegante e indiferente da velha aula-douta coimbrã, vê que o objetivo atual do ensino jurídico é proporcionar aos estudantes o conhecimento descritivo e sistemático das instituições e normas jurídicas. Poderíamos dizer que o curso jurídico é, sem exagêro, um curso dos institutos jurídicos, apresentados sob a forma expositiva de tratado teórico-prático.
A didática tradicional e a nova didática
Os grandes mestres de ontem e de hoje, que deram e dão glória às cátedras desta escola, liberalizando aos seus alunos o fruto valioso de sua cultura em preleções, obedecem à linha da mais ilustra tradição acadêmica. Mas muitos dêles, senão todos ou quase todos, já vêm sentindo a necessidade de abandonar a didática tradicional, baseada na meditação em voz alta e na eloqüência, para abrir espaço a outro método de ensino mais apto a cingir o verdadeiro objetivo do ensino que ministramos.
Êsse verdadeiro objetivo não é o estudo sistemático dos institutos e normas, é o preparo, o desenvolvimento, o treinamento e afinal o cabal desempenho do raciocínio jurídico.
A didática tradicional parte do pressuposto que, se o estudante conhecer as normas e instituições, conseguirá, com os seus próprios meios, com a lógica natural do seu espírito, raciocinar em face de controvérsias, que lhe sejam amanhã submetidas. O resultado dessa falsa suposição é o vácuo que a educação jurídica de hoje deixa no espírito do estudante já graduado, entre os estudos sistemáticos realizados na escola e a solução ou a apresentação de controvérsias, que se lhe exige na vida prática.
A verdade é que a educação jurídica não pode afastar-se, nos seus processos, da natureza, e da função do próprio direito. A norma jurídica nada mais é que um comando social, com características determinadas, mediante o qual se procura solucionar e compor um conflito de interêsses. O conflito de interêsses, a controvérsia entre dois indivíduos, ou entre um indivíduo e o grupo social a que êle pertence, é o fato social gerador do direito, o fato para que surge, como resposta, a norma jurídica.
A verdadeira educação jurídica, aquela que formará juristas para as tarefas da vida social, deve repetir êsse esquema fundamental, colocando o estudante não em face de um corpo de normas, de que se levanta uma classificação sistemática, como outra história natural, mas em face de controvérsias, de conflitos de interêsses em busca de solução. Só dêsse modo a educação jurídica poderá conceituar com clareza o seu fim, que é formar o raciocínio jurídico e guiar o seu emprêgo na solução de controvérsias. O estudo das normas e instituições constitui um segundo objetivo, absorvido no primeiro, e revelado ao longo do exame e discussão dos problemas.
Pode parecer que o estudo das controvérsias já esteja, na verdade, incorporado à didática atual do direito, pois raro é o professor que não faça, mediante o exame de julgados e de casos hipotéticos, uma ilustração das normas e de sua aplicação. Êsse emprego acessório e ilustrativo dos casos, para concretizar o ensino ministrado sob forma sistemática, representa a primeira manifestação de necessidade de uma nova didática, mas ainda não é a verdadeira inversão de método que reclamamos.
“Text system” versus “Case system”
O ensino é hoje quase cem por cento sistemático e expositivo, sob a forma que os inglêses denominam “text system”. Os casos são ilustrações esporádicas, apresentações sintéticas de decisões, cuja gestação lógica no espírito do juiz o mestre mal tem oportunidade de analisar.
A nova didática, pelo contrário, inverteria as proporções. O estudo assumiria a forma predominante do “case system”, que não é, como muitos pensam, estritamente dependente da praxis anglo-americana dos precedentes judiciais. O objetivo primordial do professor, a que êle passa a dedicar o melhor do seu esfôrço, não é a conferência elegante de 50 minutos sôbre um tópico do programa, mas a análise de uma controvérsia selecionada, para evidenciação das questões nela contidas e sua boa ordenação para o encontro de uma solução satisfatória; o estudo do raciocínio em cada uma.de suas peripécias; o preparo da solução, com a consulta não só das fontes positivas, como das fontes literárias e repertórios de julgados; e, afinal, a crítica da solução dada, com o cotejo das alternativas.
O estudo das normas e instituições viria em segundo plano, reclamado pela elaboração dos casos, e suprido em grande parte pela leitura de livros, que dispensam a concorrência das preleções do professor.
Conseqüências da nova didática
Da nova didática, exposta acima, resultam modificações relevantes do sistema vigente do ensino.
Em primeiro lugar resulta um aumento considerável do tempo de trabalho escolar. O curso jurídico no sistema vigente retém o aluno na Faculdade de duas a três horas por dia, para receber em cada cadeira da série suas três preleções semanais. O estudo dos casos, com a iniciativa alternada, do aluno e do professor, os debates, as leituras incidentes, as explanações e críticas da cadeira, não pode ser feito senão em sessões de trabalho, cuja duração continua, não pode ser inferior a duas, nem superior a três horas. E’ certo que algumas cadeiras poderão e deverão conservar seu caráter estritamente expositivo, mas as outras requererão sessões de trabalho, retendo-se em média o aluno na Faculdade de quatro a cinco horas diárias.
Outra modificação relevante diz respeito aos programas de ensino. No sistema vigente a escola vela, principalmente, para que êles contenham uma enunciação total da disciplina, dividida em pontos ou unidades. O sistema dos casos não pode deixar de colocar em plano secundário essa exposição extensiva, pois cabe ao professor, na escolha das controvérsias que examina, suscitar, muitas vêzes de modo oblíquo, o exame dos institutos agrupados segundo critérios ocasionais de afinidade.
Uma exposição paralela das instituições, segundo o critério sistemático tradicional parece, ao menos transitòriamente recomendável, podendo o professor utilizar-se neste curso do auxílio de assistentes.
Críticas ao ensino casuístico
A reorientação do ensino no sentido da formação do próprio raciocínio jurídico, em lugar do simples conhecimento sistemático das instituições, corresponde à necessidade de pragmatizarmos, nos dias de hoje, a educação jurídica, despindo-a de seu caráter ornamental e descritivo. Precisamos levar o direito ao tecido das relações sociais, reimpregnar dêle os problemas que a sociedade submete ao contrôle de outras técnicas, como as que lhe são fornecidas pela Ciência Econômica e pela novel Ciência da Administração, de modo que o direito não se alheie a qualquer problema, social, e tenha sob sua orientação última todos os critérios engendrados para resolvê-los.
No estudo das instituições jurídicas apresentadas em sistema perde-se fàcilmente a sensibilidade da relação social, econômica ou política, a cuja disciplina é endereçada a norma jurídica. O sistema tem um valor lógico e racional, por assem dizer, autônomo. O estudo que dêle fazemos, com métodos próprios estritamente dedutivos, conduz a uma auto-suficiência, que permite ao jurista voltar as costas à sociedade e desinteressar-se da matéria regulada, como do alcance prático de suas soluções.
A educação voltada para o próprio raciocínio jurídico, pondo sua ênfase no exame e solução de controvérsias específicas, e não no estudo expositivo das instituições, reconduz o jurista, ao fato social gerador do direito, situa o seu espírito na raiz do problema para que a norma deve fornecer solução.
Já se tem feito a êsse método de ensino casuístico a censura de que êle processa a educação jurídica sob um ângulo profissional muito estrito, servindo melhor à formação do advogado e do juiz, do que à do homem público. Em primeiro lugar, não parece defeito do sistema a perspectiva profissional em que o estudante é, desde os seus primeiros passos, colocado. Pelo contrário, há nessa orientação um fecundo realismo, capaz de dar ao ensino do direito um caráter de verdadeira aprendizagem. O que se faz nas escolas deixa de ser ministrar conhecimentos sem enderêço prático, e passa a ser treinar profissionais para o desempenho de tarefas determinadas.
Em segundo lugar, não é certo que o ensino casuístico sirva menos à formação do homem público ou do homem de negócios, que devem obedecer ao direito em vez de aplicá-lo a controvérsias. O que a formação do homem público reclama é o conhecimento do modo pelo qual a norma jurídica reage sôbre a relação social. De pouco lhe serve conhecer os institutos jurídicos, em suas características e elementos, como se conhecem as espécies botânicas ou mineralógicas num curso de História Natural. O que lhe serve é ver em equação o fato social e a norma jurídica, e aprendera medir a eficácia desta e os resultados imediatos e mediatos do seu emprêgo. O mesmo se dirá, com maior cabimento ainda, do homem de negócios, em cuja formação pragmática não há espaço para um estudo puramente ornamental de instituições.
Formação geral versus formação especializada
O ensino casuístico não é, porém, suficiente para readaptar a educação jurídica às exigências atuais da cultura jurídica. Ele pede modificações complementares. A primeira diz respeito à própria estrutura dos currículos.
Tem sido o curso jurídico, entre os cursos universitários, o mais resistente à idéia de especialização, que hoje triunfa na educação técnica ou na educação humanística de nível.superior. Há nessa resistência mais do que um simples tradicionalismo, pois, de fato, a formação intelectual do jurista é una, e não comporta sem prejuízo a eliminação de qualquer das disciplinas, que hoje constituem o currículo das nossas faculdades.
Contudo, é indispensável reconhecer que a idéia de especialização no ensino superior não procede de uma razão didática ou educacional, mas de uma imposição do, meio externo para o qual se formam os profissionais. Numa sociedade pouco desenvolvida, como foi a nossa até o primeiro quartel dêste século, onde as atividades econômicas se achavam pouco diversificadas, não tinha cabimento a especialização profissional. A medida, porém, que uma sociedade se desenvolve, as atividades econômicas e sociais se diversificam, e com essa diversificação vão sendo reclamadas modalidades de preparo intelectual, que o ensino superior deve prover. Inicia-se, assim, a marcha para o ensino especializado. Quanto mais se diversificam as atividades no meio social, mais se subdividem as especializações; até que, na plenitude do desenvolvimento econômico e portanto da diversificação de atividades, a sociedade passa a reclamar uma tal variedade de preparo intelectual, que as especializações, no ensino superior, seriam sempre insuficientes, e se instaura o sistema dos currículos livres, isto é, organizados pelo próprio estudante com as matérias correspondentes aos seus objetivos pessoais.
No ensino jurídico não parece possível nem conveniente introduzir-se uma especialização, que conduza à formação de penalistas, comercialistas, trabalhistas e outros profissionais de formação incompleta e capacitação limitada. A capacitação de quem deixa uma faculdade deve ser plena, abrangendo o exercício de tôdas as atividades profissionais de que o preparo jurídico é o pressuposto. Isso não exclui, entretanto, a possibilidade de assegurar-se ao estudante, por uma dosagem flexível dos currículos, o conhecimento mais aprofundado de determinadas partes do direito. Teríamos, então, um currículo flexível, que permitisse, sem prejuízo da formação integral e da capacitação plena do futuro graduado, a sua aplicação maior a estudos de um ramo do direito, que oferece no meio social possibilidades definidas de especialização.
Dêsse modo se chegaria a um compromisso entre o princípio da formação geral e o da especialização, com vantagens indiscutíveis para a elevação de nível da cultura jurídica do país.
De fato, o currículo fundado apenas no princípio da formação geral, que hoje vigora entre nós, e executado pelo método de preleções e estudo expositivo, não pode deixar de produzir, mesmo em relação aos melhores alunos, uma preparação extremamente superficial. Se queremos dar ao curso não um caráter de informação, mas de aprendizagem, se queremos substituir o método de preleções expositivas pelo casuístico, temos de adotar um currículo que permita intensificar e aprofundar uma parte pelo menos do curso – aquela em que o aluno baseará sua atividade profissional futura.
O currículo flexível serve, assim, à melhoria do preparo pessoal e, portanto, à recuperação de eficiência da cultura jurídica entre as técnicas de contrôle social. Sem que as Faculdades forneçam ao país profissionais de maior capacidade média, habilitados não a reproduzir uma teoria ou a definir um instituto, mas a raciocinar juridicamente em face de qualquer conflito de interêsses que reclame prevenção ou solução, é natural que o direito perca terreno e prestígio para as outras técnicas de contrôle social, que querem fugir à sua tutela e afirmar com autonomia seus próprios objetivos e fins.
Ora, sem permitir que o estudante exerça o direito de opção entre os ramos do direito, para se especializar num dêles futuramente, não é possível obter o aprofundamento, a intensificação, e num certo sentido a pragmatização dos estudos universitários.
Técnica do currículo flexível
Como funcionaria, porém, a especialização, no currículo escolar, sem prejuízo da formação geral do estudante, considerada indispensável?
Penso que a distribuição dos juristas pelas várias atividades profissionais, nos dias de hoje, nos autoriza a admitir a existência de ao menos quatro especializações. Estas especializações não as estou procurando deduzir de nenhum critério sistemático, relacionado com a classificação dos ramos do direito objetivo, mas do que o meio externo nos oferece como subdivisão efetiva de atividades. A primeira é o Direito Comercial, a que se filiam todos os advogados que fazem a chamada advocacia cível e os homens de negócios que manejam o direito como conhecimento útil à gestão de suas empresas. A segunda é o Direito Penal, especialidade altamente diferenciada, que reúne os advogados criminais e predomina na formação dos membros do Ministério Público. A terceira é o Direito Administrativo, hoje cultivado por um corpo importante de juristas, que servem à administração pública, e que é a especialidade natural de todo aquêle que liga o direito à ação legislativa ou executiva do Estado – a especialidade do homem público. A quarta merece esclarecimentos maiores, porque sua seleção não resulta de critério tão estritamente profissional: são as Ciências Econômicas e Sociais.
Antes de se constituírem no país as Faculdades de Ciências Econômicas e as Faculdades de Filosofia com seus cursos de Ciências Sociais, cabia às Faculdades de Direito dar formação a todos que pretendiam obter conhecimentos nesses ramos ou exercer uma atividade de contrôle social da competência do Estado.
A criação de escolas especializadas para onde foram drenados os estudantes interessados em Sociologia, em Política, em Economia, contribuiu, certamente, para acentuar o caráter profissional e a especificidade das escolas de direito, mas deu a essas técnicas uma ampla autonomia em relação ao direito, libertando o seu estudo da consideração dos elementos ético-jurídicos, de que deve ser acompanhado. Não é possível hoje, nem desejável, reconduzir às Faculdades de Direito os estudantes de Ciências Sociais. Mas julgo não só conveniente, senão imperioso, abrir uma comunicação larga entre as Faculdades de Direito e as de Ciências Sociais, para que estudantes de Direito possam aprofundar conhecimento de Ciências Sociais e estudantes de Ciências Sociais possam haurir conhecimentos de Direito, reaproximando no plano educacional dois ramos da cultura, que não podem ficar separados.
Sugiro, por isso, que o currículo de nossas Faculdades admita como uma especialidade, à opção dos alunos, além do Direito Comercial, do Direito Administrativo, e do Direito Penal, as Ciências Econômicas e Sociais. Em vez, porém, de se criarem na Faculdade cadeiras para o ensino aprofundado destas disciplinas, devemos estabelecer com as Faculdades de Filosofia e de Ciências Econômicas um sistema de vasos comunicantes, permitindo que os nossos estudantes sigam cursos externos naquelas escolas para complemento de sua formação.
Êsse passo teria o efeito, que não seria dos menores benefícios de sua adoção, de romper o regime de insulamento escolar em nossa Universidade, com o fazer interpenetrarem-se dois ou mais institutos. Um dia a Universidade terá seus alunos, que não mais o serão das escolas, e que poderão, segundo as necessidades da educação superior que tenham escolhido, seguir cursos simultâneos em Faculdades diferentes.
O passo inicial nesse caminho progressista poderia ser dado pela Faculdade de Direito, para ministrar aos seus estudantes, com opção por Ciências Sociais, alguns cursos desenvolvidos das faculdades especializadas.
A essas quatro opções – Direito Comercial, Direito Administrativo, Direito Penal e Economia e Ciências Sociais – poderíamos acrescentar ou não uma quinta – Direito do Trabalho. Embora o fôro especial do trabalho constitua um segmento profissional muito apartado, tenho dúvida sôbre a conveniência de fazer do Direito do Trabalho um campo de especialização cultural. Essa e outras opções poderão ir sendo criadas, aliás, por atos das autoridades universitárias competentes, à medida que a diversificação das atividades jurídicas no meio social o reclamarem.
Os currículos especializados
Cada uma das especializações opcionais admitidas determina uma alteração no currículo escolar. Se o estudante opta pela especialização em Direito Administrativo, isto significa que o curso desta disciplina se estenderá por três anos consecutivos, e que receberão especial desenvolvimento os estudos de Direito Fiscal, no âmbito da cadeira de Ciências das Finanças, e os de Direito Público geral, no âmbito da cadeira de Teoria Geral do Estado. Por outro lado, o estudo de Direito Penal e o de Direito Comercial se reduzirão às proporções de cursos de instituições lecionados em um só ano.
Se o estudante opta pela especialização em Direito Comercial, é esta matéria que se estende em três anos, durante os quais os alunos examinarão os institutos através da análise de controvérsias e de preleções expositivas de natureza complementar; estudará, além disso, em curso autônomo, o Direito Marítimo e Aéreo, o Direito Fiscal e os Elementos de Contabilidade Geral, sem os quais nenhum advogado penetra no exame da vida das emprêsas. O Direito Administrativo e o Direito Penal ficam, entretanto, no nível de cursos de instituições ministrados num só ano.
Se a especialização preferida é o Direito Penal, o estudo que se contrai dêsses cursos é o de Direito Comercial e o de Direito Administrativo. Direito Penal passa a desenvolver-se em três anos, completado por outro de Medicina Legal e outro de Criminologia e Regimes Penitenciários, destinados a conduzir o jurista à análise dos aspectos sociais e antropológicos do crime e da pena, mediante o emprêgo de métodos adequados que não são os especificamente jurídicos.
Se a especialização preferida é Economia e Ciências Sociais, o aluno reduz a cursos de instituições o seu preparo em Direito Penal, Direito Comercial e Direito Administrativo, e vai buscar fora da Faculdade, nos cursos mais desenvolvidos ministrados na Faculdade de Ciências e na Faculdade de Filosofia, os conhecimentos de Economia, de Sociologia, de Política e de História das Doutrinas Econômicas, sujeitando-se nessas aulas externas ao regime das escolas em que são dadas.
Um grupo de disciplinas permanece invariável no currículo, por não se achar na dependência direta desta ou daquela especialização. São elas a Introdução à Ciência do Direito, o Direito Romano, o Direito Constitucional, o Direito Civil, o Direito Internacional Público, o Direito Internacional Privativo, o Direito do Trabalho, o Direito Judiciário Civil e o Direito Judiciário Penal. A Economia Política continua obrigatória, com o desenvolvimento didático que hoje lhe damos, em todos os currículos, exceto o de Economia e Ciências Sociais. A Ciência das Finanças se enriquece em desenvolvimentos nos currículos do Direito Administrativo e o Direito Comercial, mantendo-se sob a forma atual nos restantes.
Essas sugestões não têm a pretensão de traduzir um projeto amadurecido. Lanço-as a titulo de mera provocação a um debate largo, que me parece indispensável, sôbre a revitalização e o reaparelhamento da educação jurídica entre nós.
O velho criticismo
Temos vivido dentro e fora das escolas outros debates sôbre êsse tema, que se saldam por amargas recriminações. Queixam-se os professôres do desinterêsse dos estudantes, ouvintes apressados de aulas, que se limitam a compulsar nas últimas semanas do período letivo as apostilas mal compiladas, para uma prova escrita de valor puramente burocrático, muitas vêzes fraudada em sua execução. Queixam-se os alunos dos professôres, da indiferença de um da impontualidade de outro, das excentricidades de um terceiro, das exigências descabidas de um quarto, e assim por diante.
Todo êsse criticismo é deletério, pois não ajuda em coisa alguma o estabelecimento do diagnóstico de que necessitamos. As escolas não podem prender os seus alunos aos bancos escolares com simples recriminações e medidas de disciplina: A vida universitária não é uma comédia onde a ironia ou o enfado dos estudantes se possa consumir nas caricaturas de seus professôres. Tudo isso pode ser recolhido ao arsenal das velharias da tradição acadêmica, e abrir espaço a uma reflexão grave sôbre o que a educação jurídica está hoje reclamando para aglutinar num esfôrço comum alunos e mestres, com o objetivo de servir à cultura jurídica do nosso país e à recuperação dêsse surto de decadência ético-jurídica, que está patente aos olhos de todo observador.
Precisamos restituir à sociedade brasileira o poder criador que vem faltando às suas classes dirigentes e que nos está conduzindo, através de problemas irresolvidos e dificuldades angustiosas, a um processo de secessão social, típico dos momentos de declínio. A contribuição que nós, juristas, podemos dar a êsse esfôrço restaurador, é o renascimento do direito como técnica de contrôle da vida social, e êsse renascimento só o podemos promover através da educação jurídica, vivificando-a, incutindo-lhe objetivos novos, restaurando-a em suas finalidades perenes, e conduzindo através dela o direito à posição suprema que tem perdido entre as técnicas sociais.
Vivificação da educação jurídica
Como vivificar a educação jurídica?
Como vimos, primeiro – retificando o seu objetivo, que não é o estudo expositivo das instituições, mas a formação do raciocínio jurídico, adestrado na solução de controvérsias; segundo – abrindo espaço à especialização, mediante a flexibilidade dos currículos, para que o estudante possa lograr um aproveitamento mais intenso e preparar-se de acôrdo com a função diversificada que êle tem em mira exercer na sociedade.
O primeiro dêsses alvos – a reorientação do ensino no sentido da formação do próprio raciocínio jurídico – obriga ao ensino casuístico, à participação ativa e verdadeiramente principal do estudante nas sessões de trabalho, ao método polêmico, à captura prolongada do estudante e do professor no recinto da escola, e graças a tudo isso conduz a uma transformação da mentalidade.
O segundo dêsses alvos – a especialização – obriga aos currículos flexíveis, à opção entre êles, por deliberação do estudante, ao aprofundamento do estudo nas matérias de especialização, à comunicação livre com outras Faculdades, onde se vão buscar conhecimentos especiais, e grata a tudo isso se encurta a distância entre a vida escolar e a vida profissional, dando ao estudante um treinamento intenso para a função que êle quiser desempenhar na sociedade.
É provável que essas modificações de estrutura acarretem outras, por via de conseqüência, que já se fazem inadiáveis.
O serôdio sistema de medidas do aproveitamento escolar mediante exames e notas graduadas de zero a 10 está em tempo de apresentar suas despedidas. No ensino casuístico o aluno não é um ouvinte que precisa dizer ao menos duas vêzes por ano se assimilou as preleções da cátedra; é um participante ativo, que tem a palavra desde o primeiro dia, que discute, colabora, investiga. as fontes e apresenta os seus estudos, dando do seu aproveitamento muitos testemunhos. Sôbre êsses testemunhos, compulsados ao fim do ano ou do semestre, deve o professor emitir um juízo de suficiência. Suficiente ou insuficiente é quanto basta dizer para que se saiba se o aluno tem necessidade de refazer os estudos, de que participou, ou se pode passar a estudos novos. Quando muito a êsse laconismo poderia acrescentar-se uma láurea para os aproveitamentos excepcionais.
Outro aspecto benéfico da reforma diz respeito à liberdade de cátedra. As disciplinas que se ensinam em mais de um ano, e que por êsse motivo têm mais de um professor, não havendo mais o predomínio do critério sistemático, que lhes supõe uma seriação de assuntos como a de um índice de tratado, poderão ser cursadas livremente, escolhendo o aluno o professor cujo curso deseja acompanhar e sujeitando-se a readaptações quando queira passar de uma para outra cátedra.
Resumo e conclusão
Simplificação extrema de tôdas as formalidades, ampliação máxima da liberdade de ensinar e de estudar, são assim os princípios com que se completa a revisão da educação jurídica brasileira: Fazendo com que os alunos desenvolvam o seno jurídico pelo exercício do raciocínio técnico na solução de controvérsias, em vez de memorizarem conceitos e teorias aprendidos em aulas expositivas, dando ao curso flexibilidade para que os alunos se possam aprofundar nas especialidades que preferirem; eliminando formalismos escusados e ampliando a liberdade educacional, podemos dar à educação jurídica um novo surto e contribuir para um renascimento do direito como técnica social suprema, a que as outras devem estar subordinadas.
Êsse renascimento será, na hora da crise em que vivemos, em meio à liquidação de uma classe dirigente, tornada incapaz de resolver problemas, e à secessão da classe dirigida, a contribuição construtiva dos juristas, que muito poderá servir para que os fatos sociais e as diferentes técnicas que os controlam fiquem sob a supremacia hierárquica do direito.
Manter essa supremacia, retificando e renovando, quando preciso, as bases educacionais em que se funda a cultura jurídica, é o nosso dever como Faculdade. Se o cumprimos, estaremos servindo, como nos cabe, à defesa dêsses ideais perenes da nossa cultura: o predomínio do valor ético sôbre o valor técnico, e a legitimação da autoridade pela sua subordinação à Justiça. Êsses ideais são a nossa razão de ser.
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Notas:
* N. da R.: Aula inaugural dos Cursos da Faculdade Nacional de Direito, proferida em 1955.
Sobre o autor
F. C. San Tiago Dantas, professor de Direito Civil na Faculdade Nacional de Direito.
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