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A Criação De Tribunais Coletivos Na Primeira Instância, de Noé Azevedo

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A Criação De Tribunais Coletivos Na Primeira Instância, de Noé Azevedo

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22/03/2024

Em 1943, muito se discutiu sôbre a crise do Supremo Tribunal Federal e a dos Tribunais dos Estados.

Sob aquêle título, fôra publicado, no primeiro número dos “Arquivos do Ministério da Justiça”, um trabalho do saudoso ministro FILADELFO AZEVEDO, que equivalia a um verdadeiro brado de S.O.S. diante da ameaça de esmagamento dos ministros daquela Côrte pela mole imensa dos processos que se despenhavam de todos os quadrantes do Brasil e que os seus onze membros eram impotentes para conter.

A êsse trabalho, repliquei com outro sôbre “A Crise dos Tribunais de Apelação”, mostrando que a situação dos desembargadores era ainda mais crítica e aflitiva, pelo menos no Tribunal de São Paulo.

Se em 1942 os juízes da Suprema Côrte haviam julgado 2.266 processos, os do Tribunal de São Paulo proferiram julgamento em 6.618 feitos. Fazendo-se a divisão pelo número dos juízes respectivos, verificava-se a carga de 203 feitos para cada ministro do Supremo e a de 260 para cada desembargador paulista. E notava ser mais trabalhoso o julgamento dos processos nos Tribunais de Apelação, por envolverem em regra o mérito das demandas, do que no Supremo Tribunal, onde, nos recursos extraordinários, só se apreciam as questões constitucionais, sendo a grande maioria dos casos decidida pela preliminar de inadmissibilidade dos recursos.

A criação do Tribunal Federal de Recursos aliviou muito a situação dos ministros do Supremo Tribunal Federal. Na esfera estadual, os poderes públicos procuraram resolver o problema, a princípio, pelo aumento dos desembargadores e das Câmaras, depois, pela criação dos substitutos de segunda instância, e por fim pela criação do Tribunal de Alçada, ora aumentado com mais duas Câmaras. Está hoje o nosso Tribunal de Justiça com 36 desembargadores, seis juízes substitutos já empossados, e seis a serem nomeados. Andam, assim, os processos um pouco mais depressa na segunda instância.

Mas é fôrça reconhecer que o Tribunal de São Paulo é um órgão hipertrofiado. Com as suas numerosas Câmaras, dá lugar a acentuada divergência na interpretação das leis. Essa divergência provoca inúmeros recursos de revista. Tendo êstes de ser julgados por tôda a Seção Civil, tomam tempo imenso aos julgadores reunidos. Já foi necessária uma reforma, segundo a qual as divergência passam a ser apreciadas pelos Grupos de Câmaras, de medo que a Seção Civil só venha a conhecer do feito depois de reconhecida a divergência.

O que daí resulta é uma tendência muito acentuada para a colocação das questões jurídicas em segunda plana nos acórdãos, dando êstes como razão de decidir argumentos tirados dos fatos. Se o acórdão recorrido tem mais de um fundamento firmou-se jurisprudência »sentida de não se tomar conhecimento das revistas, por se tornar puramente acadêmica a discussão da matéria jurídica, uma vez que a decisão continuaria de pé pelos outros fundamentos.

Para evitar a sobrecarga de trabalho do Tribunal Pleno, que teria de multiplicar as suas sessões, para vencer a onda dos mandados de segurança, a lei estadual, n.º 2.554, de 14 de janeiro de 1954, passou boa parte dêsse trabalho para a competência das Seções do Tribunal e das Câmaras isoladas. Envolvendo, porém, questões constitucionais, a maioria dos mandados de segurança terá de terminar ato Tribunal Pleno, pois só ele tem competência para proclamar a inconstitucionalidade de uma lei. Continua, assim, o acúmulo de serviço do Tribunal Pleno, que ainda tem de se manifestar sôbre numerosos assuntos administrativos.

Por mais esfôrço que se faça em dividir e subdividir o trabalho pelas Seções, Grupos de Câmaras isoladas, há sempre muito serviço para as Câmaras Reunidas e para o Tribunal Pleno. Isso impede que a lei da divisão do trabalho opere os seus apregoados efeitos. Fôrça é reconhecer que há mesmo aquela espécie de hipertrofia do órgão principal da administração da Justiça, em nosso Estado, com graves prejuízos para o rápido andamento das causas nas diversas Câmaras, e com grande perturbação dêsses mesmos serviços em primeira instância. São extraordinàriamente numerosos os juízes de segunda instância, e freqüentíssimos os afastamentos para gôzo de férias ou licenças. Os juízes substitutos de segunda instância são insuficientes para tais substituições, havendo, por isso, necessidade da convocação de juízes de primeira instância. Êstes põem os “vistos” nos processos e devem ser convocados para o julgamento. Os julgamentos coincidem muitas vêzes com as audiências de primeira instância, que têm de ser adiadas. Quando estas não se adiam, adiam-se os julgamentos das apelações ou dos embargos em que deveriam tomar parte. Quando um advogado precisa sustentar um recurso, tem de assistir às sessões de comêço a fim, porque muitas vêzes se julga em primeiro lugar o processo que estava no fim da pauta, para que o juiz convocado possa ir cuidar de outros afazeres. Outras, vêzes é um dos primeiros feitos da ordem do dia que acaba sendo julgado por último, ou que se adia várias vêzes, porque o juiz convocado não pôde comparecer.

Esta ligeira crítica está a mostrar que o aumento colossal de juízes da segunda instância, divididos pelo Tribunal de Justiça e pelo de Alçada, não solucionou satisfatòriamente o problema do andamento rápido das causas.

Em primeira instância a situação é ainda pior. Temos na capital 16 Varas Cíveis e 24 Criminais. A instrução dos processos leva muitos meses, e até passa de um ano para outro. E a causa dessa demora está na necessidade de serem escritos os depoimentos das testemunhas, que no cível constituem prova geralmente subsidiária, que serve só para o enchimento dos autos. E por causa dessa prova as audiências de instrução e julgamento têm de ser multiplicadas e adiadas durante meses e até anos seguidos. Continua, assim, a ter inteira oportunidade a sugestão que formulei naquele trabalho de 1943, levado à seção de Processo Civil do Congresso Jurídico Nacional, no sentido de serem criados Tribunais Coletivos em primeira instância, para julgamento sem recurso das questões de fato. Os Tribunais de Justiça ficariam com a sua tarefa extraordinàriamente reduzida, passando a decidir exclusivamente as questões direito.

Os litigantes não se conformam com as sentenças proferidas por um juiz só, em primeira instância, sendo por isso diminuto o número de decisões que transitam em julgado sem ter havido recurso. Se fôssem julgadas as causas por três juízes, as decisões infundiriam maior respeito, e com elas as partes se conformariam com mais facilidade.

Examinando um só juiz as questões de fato, pode se enganar. Mas, sendo a apreciação dessa matéria feita por três julgadores, já se diminui a probabilidade de êrro.

Essa constituição de Juízos Coletivos terá também a vantagem de permitir uma aplicação mais perfeita do processo oral. Não havendo recurso quanto à matéria de fato, torna-se desnecessário registrar nos autos os depoimentos das testemunhas. É isto que toma quase todo o tempo dos nossos juízes e escrivães.

Exigindo o Cód. de Processo nacional que sejam êsses depoimentos tomados e redigidos pelo próprio magistrado, nunca se pode concluir o julgamento da causa em uma audiência. E estas se multiplicam e tomam várias horas. Havendo recurso sôbre matéria de fato, é indispensável que os depoimentos constem dos autos, para que sejam examinados pelos juízes da Superior Instância. Se tais recursos fôssem limitados a matéria de direito, os três juízes do Tribunal Coletivo de primeira instância ouviriam o depoimento das partes e o das testemunhas, atenderiam às alegações dos advogados e passariam a proferir decisão sem reduzir a escrito tudo quanto foi dito na audiência. Os três julgadores apreciariam essa prova em discussão oral, presenciada pelos advogados das partes. Êstes poderiam intervir na discussão, prestando esclarecimentos e impedindo que os magistrados incidam erros e equívocos, muito freqüentes hoje, quer nas sentenças que são proferidas no recesso dos gabinetes dos juízes de primeira instância, quer nas decisões dos Tribunais, que são proferidas em público, mas sem possibilidade de intervenção dos advogados, que passam às vêzes por verdadeiro suplício, notando interpretações errôneas, omissões flagrantes, enganos fàcilmente corrigíveis com uma única palavra de alerta, sem, entretanto, poderem proferi-la, pois, em Tribunais como o de São Paulo, impera a draconiana regra do silêncio por parte dos causídicos, que têm de ficar mudos e quedos, diante da prolação oral dos votos dos Srs. desembargadores.

Com a possibilidade dos advogados intervirem no debate oral travado pelos julgadores, chegar-se-á a um perfeito acertamento dos fatos, acertamento esse reduzido a um breve relatório. Guardando ainda nos ouvidos os esclarecimentos da prova oral, e as alegações das partes, os juízes, que a essa altura já terão lido a prova escrita, passarão a proferir decisão, aplicando o direito à espécie. Da sentença assim proferida, por um Juízo Coletivo, admitir-se-á recurso, limitado sòmente às questões de direito. Funda-se essa nova sugestão no sistema de recurso adotado pelo Cód. de Proc. Civil de Portugal, aprovado pelo dec. n.° 29.637, de 28 de maio de 1939, nos quais a Relação só decide sôbre matéria de direito, salvo casos excepcionais.

Comentando o art. 712 dêsse Código, escreve JOSÉ ALBERTO DOS REIS: “O princípio é que o Tribunal Coletivo julga definitivamente a matéria de fato da sua competência. Portanto, só excepcionalmente é que a Relação poderá alterar a decisão do Tribunal Coletivo. As exceções estão agora nìtidamente especificadas no art. 712”.

Fora dos casos aí previstos, a decisão de primeira instância transita em julgado e não poderá ser modificada em grau de apelação.

Baseados no velho brocardo de que uma pequena diferença na apreciação dos fatos pode levar a uma grande diversidade na aplicação do direito, entendem muitos ser dificílimo separar as questões de fato e de direito, para só se admitir recurso quando o direito tiver sido mal aplicado. E os que assim pensam estariam em desacôrdo com a sugestão de se limitar os recursos a questões de direito. Mas essa atitude não se justifica, mesmo em face do sistema atual dos nossos recursos. Se não fôsse possível distinguir as questões de fato das de direito, deviam ser banidos das nossas leis processuais os recursos de revista e extraordinário, pois os mesmos se limitam a questões de direito.

Poderia a nossa lei adotar cautelas semelhantes às do Código português, cogitando de casos em que excepcionalmente pudesse, com base em prova documental, manifestar-se o Tribunal de Justiça sôbre algum êrro ocorrido no ajustamento dos fatos.

Mas, fora êsses casos excepcionais, rigorosamente examinados, os recursos se limitariam a questões de direito.

Por essa forma, diminuir-se-ia extraordinariamente o serviço dos Tribunais de Justiça e o do próprio Supremo Tribunal Federal. Não precisaríamos mais de Tribunal de Justiça com quatro dezenas de desembargadores, como é o de São Paulo.

E, tendo os desembargadores maior tempo para estudar o direito, menos violações da lei federal cometeriam, e melhor afinariam os seus julgamentos pelos acórdãos das outras Câmaras e pelos arestos dos outros Tribunais. Isto faria necessàriamente diminuir os recursos de revista e os extraordinários.

Filtragem de recursos nos Estados Unidos

Nos Estados Unidos, onde os fatos são julgados pelo júri, nas causas cíveis, há uma verdadeira filtragem de recursos, de modo a chegarem à Suprema Côrte menos de meio milhar, por ano.

Acentua o Prof. CARRILO FLORES, da Universidade Nacional do México, o contraste dessas quatro centenas de recursos julgados pela Côrte Suprema, em determinado ano, e o número de 12.000 recursos que o Supremo Tribunal do México teve de decidir, em 1937, por não ter a legislação mexicana pôsto o mesmo cuidado que se observa na dos Estados Unidos, de fazer as questões de fato morrerem em primeira instância, as de direito nos Tribunais locais, só indo para a Suprema Côrte as questões de fundo constitucional (“La defensa jurídica de los particulares frente a la administración en México”, pág. 9).

E uma das maiores vantagens da diminuição dos serviços das instâncias superior e suprema é a de permitir que os juristas de notável saber, que as compõem, possam enfrentar os grandes problemas que o Direito moderno apresenta, procurando soluções capazes de atender às exigências da vida social contemporânea.

Assim como os investigadores ciências exatas dispõem de laboratórios e de vasto instrumental científico, para à descoberta e a formulação das leis da física e da química, poderíamos ter, nos tribunais superiores, os grandes cientistas do Direito voltados para o estudo da natureza humana e das relações entre os indivíduos e os grupos sociais, observando os desajustes e conflitos que ocorrem diàriamente, e que repercutem nos pleitos, colhendo material suficiente para permitir a elaboração de normas que atendam às exigências da vida social.

Em vez de têrmos grandes pensadores com todo o seu tempo consumido pela leitura do depoimento de testemunhas e da prova de fato acumulada nas pilhas infindáveis de autos, veríamos essas inteligências de escol empenhadas no aperfeiçoamento das normas jurídicas.

A minha proposta é a de que se modifique o Cód. de Processo, de modo a permitir que os Estados criem Juízos Coletivos de primeira instância, para julgamento definitivo das questões de fato. Os recursos terão como fundamento questões de direito, só podendo haver novo acertamento dos fatos em casos excepcionais, rigorosamente estabelecidos, como os da legislação portuguêsa.

Os Estados onde não houver acúmulo de serviço em segunda instância poderão manter o sistema atual.

Noé Azevedo, professor da Faculdade de Direito de São Paulo.

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