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Uma Constituição para o Vinho
Marcílio Toscano Franca Filho
02/07/2021
A chegada do vinho ao Brasil é contemporânea à das caravelas de Cabral, carregadas de Pêra Manca tanto para as missas diárias a bordo quanto para levantar o moral da marujada. Desde então, o vinho e a vinha espalharam-se por vastas regiões do país e incorporaram-se de corpo e alma à cultura nacional.
Alguns relatos dão conta de que, em 1535, o português Martín Afonso da Silva teria introduzido as videiras no Brasil, na região da Serra do Mar. A relevância do vinho chegou a ser tão grande na Capitania de São Vicente que uma das primeiras atas da Câmara Municipal de São Paulo, em 1562, tratou justamente da qualidade e dos preços dos vinhos ali produzidos. Menos de um século depois, em 1626, o padre jesuíta Roque Gonzáles de Santa Cruz plantou cepas espanholas na margem esquerda do rio Uruguai, no extremo sul do Brasil.
Com a presença portuguesa, italiana, espanhola e de tantos outros povos culturalmente ligados à uva e ao vinho, a tradição e a identidade vitivinícolas nacionais foram se consolidando.
Engana-se, porém, quem pensa que a vitivinicultura brasileira é um fenômeno restrito às regiões meridionais do país. No Nordeste holandês do séc. XVII, Maurício de Nassau ficou tão entusiasmado com o vinho produzido das videiras da Ilha de Itamaracá, em Pernambuco, que o brasão de armas da ilha, desenhado por Frans Post, ganhou três cachos de uvas. Hoje, Pernambuco e Bahia continuam a ser referências na produção de vinho no panorama setentrional brasileiro.
À medida que o setor vitivinícola foi ganhando expressão, desde os tempos da Colônia, passando pelo Império e a República Velha, uma legislação específica sobre a produção e a comercialização do vinho foi-se aperfeiçoando. Ora, ubi commercium, ibi jus.
O direito do vinho no Brasil tem, hoje, na Lei 7.678/1988 o seu principal estatuto. Contudo, desde o surgimento daquela lei, há 33 anos, uma série de fatos alteraram a geopolítica internacional do vinho: nasceu a Organização Mundial do Comércio; o Mercosul expediu o Regulamento Vitivinícola do bloco e concluiu um acordo preliminar com a União Europeia; a Unesco admitiu a Dieta Mediterrânea (da qual o vinho é parte integrante) na lista do patrimônio cultural imaterial da humanidade; a Carta de Baeza assinalou a importância do patrimônio agrário; e a Organização Internacional da Vinha e do Vinho foi criada e editou um Código Internacional de Práticas Enológicas.
O Congresso Nacional deverá discutir uma nova Lei do Vinho em breve. Deputados e senadores da Frente Parlamentar de defesa da uva e do vinho, além da Câmara Setorial da Uva e do Vinho do Ministério da Agricultura e diversas entidades do setor já coletam propostas e iniciaram alguns debates.
Espera-se que a nova Lei do Vinho venha a ser mais do que apenas uma legislação sobre a produção, a circulação e comercialização do vinho e derivados da uva – sucos, vinagres e destilados. Precisamos de uma genuína constituição para o setor vitivinícola, que enfrente também outros temas contemporâneos do direito do vinho, como rotulagem, promoção, meio ambiente, patrimônio cultural, proteção do consumidor, enoturismo, denominações de origem, indicações geográficas, comércio internacional, agricultura familiar e tantas outras matérias, como fizeram legislações mais jovens na Espanha, França, Argentina, Uruguai e Itália.
Mais do que uma bebida industrializada, o vinho é o complexo resultado da uva, da vinha e das regiões vitivinícolas e produto do trabalho, das habilidades, saberes, conhecimentos, práticas, técnicas e tradições humanas – como apontam outras legislações. Em 2009, em um debate na Assembleia Nacional da França, o deputado Jean-Pierre Leleux foi enfático ao defender que o “vinho é um estilo de vida”. E explicou: “O vinho é uma arte de viver, porque é um dos motores do desenvolvimento sustentável dos nossos territórios. Quais seriam nossas paisagens sem a viticultura? Qual seria a nossa identidade e, portanto, a nossa coesão social, sem a cultura do vinho? Qual seria a nossa economia sem a economia do vinho? Como seria a economia do turismo que ele apoia?”
No Brasil atual, as perguntas do deputado francês valem para áreas extensas do Vale do Rio São Francisco, do Planalto Catarinense, do Paraná, de São Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, do Distrito Federal, de Goiás, do Espírito Santo, do Rio de Janeiro e tantos outros terroirs nacionais. Assim, um aspecto central deve guiar o parlamentar brasileiro na empreitada legislativa que se inicia: o vinho, presente no país desde 1500, é inerente à nossa cultura e, por isso, deve ser valorizado em sua sustentabilidade social, econômica, produtiva, ambiental e também cultural.
Já que o vinho é “uma cultura”, um “estilo de vida” ou “arte de viver”, uma nova Lei do Vinho parece ser a ocasião oportuna para se proteger e amparar o conjunto de bens naturais, sensoriais e culturais gerados ou utilizados pela atividade agrícola vitivinícola, incluídas as paisagens naturais notáveis, com os sons e cheiros que as caracterizam. Tudo isso forma o chamado patrimônio agrário do vinho, ou seja, as paisagens do vinho, os caminhos do vinho, os sons, saberes, odores e sabores ligados ao vinho.
Não por acaso, nos últimos 25 anos, muitas regiões vinícolas do mundo conquistaram o status de Patrimônio Mundial da UNESCO: St-Emilion, Borgonha, Champagne e Vale do Loire (França), Wachau (Áustria), Alto Douro e Ilha do Pico, nos Açores (Portugal), Médio Reno (Alemanha), Tokaj (Hungria), Região do Cabo Floral (África do Sul), Lavaux (Suíça), Stari Grad Plain (Croácia), a produção de vinhos Qvevri (Geórgia), Pantelleria e Piemonte (tália), e ainda Jerusalém Meridional (Palestina) são alguns exemplos.
As legislações de países como Itália, Espanha e Argentina declararam o vinho autênticos embaixadores desses países, ressaltando seu papel na identidade e na cultura nacionais. Uma nova Lei do Vinho, verdadeiramente moderna, responsável e avançada, deve principiar por reconhecer o papel cultural do vinho no Brasil. Reconhecer esse patrimônio material e imaterial é o primeiro passo para uma legislação apta a responder às demandas sociais, econômicas e ecológicas, tão valorizadas pela nossa Constituição de 1988.
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