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Há mares que vêm para o bem: o regime jurídico do patrimônio subaquático

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Há mares que vêm para o bem: o regime jurídico do patrimônio subaquático

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Marcílio Toscano Franca Filho

Marcílio Toscano Franca Filho

18/02/2021

por Inês Virgínia P. Soares & Marcílio Franca

Os circuitos culturais do mundo inteiro animaram-se com uma notícia divulgada nos últimos dias de janeiro: uma expedição arqueológica subaquática, na costa da ilha grega de Kasos, no Mar Egeu, liderada pelos arqueólogos Xanthis Argyris e Georgios Koutsouflakis descobriu quatro navios de diferentes datas. Em um deles, um naufrágio do período romano, havia um raro e precioso tesouro, com destaque para o carregamento de ânforas, ainda cheias de óleo, vindas da Espanha. Essa embarcação deve ter afundado entre 200 DC e 300 DC, segundo o comunicado divulgado pelo Ministério da Cultura da Grécia.

Para as descobertas, foram realizados, ao longo de 2020, mais de 100 mergulhos por 23 arqueólogos, com 200 horas de duração. As comemorações sobre o achado devem-se ao fato de que as ânforas fornecem pistas mais precisas sobre o comércio no Meditarrâneo ao longo dos séculos.

Quem, como nós, cresceu perto do mar, já se habituou a ouvir muitas histórias de naufrágios no litoral brasileiro, mas também de saques em nosso patrimônio cultural subaquático. Contam-se cerca de 2.000 naufrágios nas costas nacionais, que desde o século XVI, são palco de épicas batalhas navais, intenso comércio colonial e muitos, muitos ataques de piratas. Isso para não falar das investidas durante as 1a. e 2a. Guerra Mundiais. Entre as cargas afundadas, ouro, jóias, sinos, canhões, azulejos, louças, vinho do porto, prataria etc.

Um dos mais famosos naufrágios da costa brasileira é o Santa Rosa, a fragata portuguesa de três mastros, 70 canhões e 56m de comprimento, que explodiu em 6 de setembro de 1726, em algum lugar entre o Cabo Branco (atual Paraíba) e o Cabo de Santo Agostinho (atual Pernambuco), levando para o fundo do mar 700 marinheiros e seis toneladas de ouro. O Santa Rosa e seu tesouro nunca foram encontrados, embora já tenham despertado a cobiça até de empresas internacionais especializadas.

Em 2015, a Colômbia, com entusiasmo, anunciou a descoberta do galeão espanhol San José, que desapareceu no mar do Caribe em 1708, após uma explosão provocada por corsários britânicos. Desde o anúncio oficial, há diversas disputas em curso, com ordens judiciais de embargo do tesouro afundado, inclusive.

A Espanha, a empresa Sea Search Armada (SSA) e o Instituto Oceanográfico Woods Hole, ambos americanos, reivindicam a propriedade sobre a nau e sua valiosa carga, mas com posições distintas. Enquanto os americanos querem 50% do tesouro encontrado, a Espanha defende a criação de um museu e tem-se oferecido a colaborar com o governo colombiano no resgate do navio do fundo do mar, com a finalidade de “honrar o cemitério dos marinheiros espanhóis” e principalmente de valorizar a história dos países “irmãos”.

Na embarcação havia 600 pessoas além de ouro, prata e jóias, conforme detalhado em relatório da Maritime Archaeology Consultants (MAC), empresa contratada pelo governo colombiano para avaliar o estado da nau afundada. Nesse relatório, de 2019, há a confirmação de que se trata de um dos maiores tesouros subaquáticos do mundo, valendo dezenas de bilhões de dólares.

No mesmo relatório consta que noventa por cento do carregamento está intacto. No entanto, segundo noticiado, caberá agora ao Presidente Iván Duque decidir se vai atribuir à empresa anglo-suíça MAC a exploração do tesouro – o que lhe valerá ficar com 50% dos achados –, ou se será o governo colombiano a recuperá-lo, por sua conta. Nesse caso, e como previsto no contrato assinado em 2015 pelo então Presidente Juan Manuel Santos, a Colômbia ficará obrigada a pagar à MAC uma indemnização no valor de sete milhões de euros.

Esse contrato, vale lembrar, tem respaldo na Lei colombiana nº 1675, de 30 de julho de 2013, que versa sobre a proteção do patrimônio cultural submerso e tem previsão semelhante à lei brasileira nº 7.542/86.

Em meados de 2020, já em meio ao caos da pandemia, outro caso mobilizou a opinião pública internacional: Uma decisão da juíza norte-americana Rebecca Beach Smith autorizou que uma empresa removesse do fundo do mar o aparelho de rádio do Titanic, o lendário transatlântico naufragado em 1912. Familiares das vítimas da tragédia recorreram da decisão (ainda pendente), sob o fundamento de que a remoção do aparelho equivaleria à profanação de um cemitério.

O mar é tão generoso que, às vezes, sequer um mergulho é necessário para se encontrar um tesouro incalculável. Foi o que ocorreu com a tripulação do pesqueiro italiano “Ferruccio Ferri”, em 1964. O barco navegava ao largo da costa italiana, no Adriático, quando, ao içar as redes, em meio a sardinhas, “pescou” uma estupenda estátua de bronze grega de mais de 2.000 anos.

Escondido das autoridades italianas, o “Atleta de Fano” passou até pelo Brasil (disfarçado em meio a uma caixa de remédios para uma missão religiosa) antes de ser comparado pelo pelo Museu Getty de Malibu (EUA), em 1977, por cerca de 4 milhões de dólares. Desde então, Itália e Estados Unidos litigam diplomática e judicialmente pelo destino do mais disputado tesouro da história.

As disputas em torno do Titanic e do Atleta de Fano exemplificam como são complexos e diversos os interesses em jogo na exploração de um bem submerso: desde os relativos aos valores culturais – à memória dos mortos no naufrágio e ao valor histórico e arqueológico -, passando pelos financeiros, com investimentos para a localização das embarcações, que não podem ser ignorados, até mesmo os relativos à visibilidade e divulgação do bem para fins culturais e turísticos.

No entanto, as dúvidas sobre o destino dos achados começam a ser dirimidas quando se reconhece que a natureza jurídica do local onde estão depositados esses bens é a de sítio arqueológico, ou seja, um local onde ficaram preservados testemunhos e evidências de atividades do passado.

As descobertas da Grécia, da Colômbia e da Itália, bem como o debate no caso Titanic, todos repletos de emoções e de interesses complexos, contrastam com o silêncio em torno dos tesouros submersos em águas brasileiras, dando-nos  pistas de que não navegamos em águas claras e tranquilas por aqui.

A Constituição estabelece que os sítios arqueológicos em geral são bens da União (art. 20, inc. X), sejam eles emersos ou submersos. São bens públicos afetados (pelo interesse público que portam), sendo a sua tutela supraindividual e intermediada por uma pessoa jurídica de direito público federal, o IPHAN. O dispositivo constitucional confirma e fortalece o tratamento legislativo dado à matéria desde a década de sessenta e a concepção do bem arqueológico como bem portador de memória e representação do espírito humano.

Além de bens públicos federais por inerência, segundo a norma constitucional, os bens arqueológicos são também bens de interesse público, o que modifica a própria relação do Poder Público com esse tipo bem e com a sociedade. Assim, o patrimônio arqueológico, mesmo que seja um recurso cultural com valor econômico, a sua dimensão predominante nunca será a de geração de recursos financeiros, já que tem uma afetação específica de servir como produção de conhecimento sobre o passado e para compreensão da existência humana.

O art. 17 da Lei nº 3.924/61 estabelece, para as descobertas fortuitas, que a posse e a salvaguarda dos bens de natureza arqueológica, em princípio, constituem direito imanente do Estado brasileiro. O eventual achado de tesouro de que fala o Código Civil (arts. 1265 e ss.) não se confunde com as descobertas arqueológicas, e apenas o IPHAN tem competência para dizer o que tem interesse arqueológico ou não.

Ao proteger os sítios arqueológicos como bens da União (art. 20, inc. X), a constituição não distingue bens arqueológicos emersos e submersos. Portanto, há de se ter muito cuidado na interpretação da Lei nº 7.542/86, que dispõe sobre sobre a pesquisa, exploração, remoção e demolição de coisas ou bens afundados, submersos, encalhados e perdidos em águas sob jurisdição nacional, em terreno de marinha e seus acrescidos e em terrenos marginais, em decorrência de sinistro, alijamento ou fortuna do mar.

A Lei 7.542/86 soma-se a outros diplomas internacionais são relevantes para a tutela do patrimônio arqueológico subaquático: a Carta do ICOMOS sobre a Proteção e Gestão do Patrimônio Cultural Subaquático (Sofia, 1996) e a Convenção da UNESCO para a Proteção do Patrimônio Cultural Subaquático (Paris, 2001). Esses documentos influenciam a produção das regras pelos órgãos que protegem o meio ambiente e o patrimônio cultural, servindo de base para proposições de exigências, condicionantes e medidas reparadoras aos empreendedores ou degradadores dos bens culturais submersos.

A Marinha do Brasil tem, entre as suas atribuições, o dever de fiscalizar e controlar as atividades voltadas aos bens submersos que pertencem à União ou que exploram bens localizados em águas jurisdicionais brasileiras. No caso dos sítios de naufrágios, por serem compostos predominantemente por patrimônio cultural subaquático, o trabalho da Marinha do Brasil é realizado em parceria com o IPHAN. Neste caso, cada órgão deve atuar sobre sua área de competência, com a possibilidade de realização conjunta de tarefas para proteção e promoção dos acervos culturais marinhos.

A união de esforços tem sido uma constante nos projetos exitosos desenvolvidos no cenário brasileiro; e parte do conhecimento da complexidade existente na proteção e regulação do patrimônio cultural subaquático. A fragilidade do meio-ambiente aquático adiciona dificuldades mas também emoção à tarefa de vasculhar os sítios de naufrágios. Os pesquisadores mergulham com o compromisso de proteger o legado cultural que dorme em águas profundas.

Em um de seus belos versos, Sophia de Mello Breyner Andresen diz que “metade da minha alma é feita de maresia”. Assim também o é a alma brasileira, que, como a alma da poeta portuguesa, carrega o otimismo das ondas do mar:

“E é porque as tuas ondas desfeitas pela areia

Mais fortes se levantam outra vez,

Que após cada queda caminho para a vida,

Por uma nova ilusão entontecida.”

———

Inês Virgínia Soares é Desembargadora Federal no TRF da 3ª. Região (SP). Doutora em Direito pela PUC-SP, com pós-doutorado no Núcleo de Estudos de Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP). Especialista em Direito Sanitário pela UnB. Autora do livro “Direito ao(do) Patrimônio Cultural Brasileiro” (Ed. Forum).

Marcílio Franca tem Pós-Doutorado no Instituto Universitário Europeu (Florença, Itália). Membro do Comitê Jurídico da International Art Market Studies Association. É árbitro da Court of Arbitration for Art (Rotterdam, Holanda) e da Organização Mundial de Propriedade Intelectual (WIPO), para as áreas de direito da arte e do patrimônio cultural. Professor da Universidade Federal da Paraíba.

Crédito da imagem: Ministério da Cultura Grego

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