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MERS, Inc. à brasileira
Leonardo Brandelli
16/04/2021
Celso Maziteli Neto
Doutorando em Direito – University of Indiana – Maurer School of Law (EUA). Mestre em Direito Comparado – Cumberland School of Law (EUA). Juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.
Leonardo Brandelli
Pós-Doutorando em Direito pela Universidad de Salamanca (Espanha). Doutor em Direito – UFRGS. Mestre em Direito Civil – UFRGS. Professor de Direito Civil na Escola Paulista de Direito. Oficial de Registro de Imóveis no Estado de São Paulo.
A crise econômica de 2008, também conhecida como a crise do subprime, teve origem no mercado imobiliário dos Estados Unidos da América. Apesar de pouco visível, uma das mais relevantes protagonistas desta hecatombe foi uma companhia norte-americana chamada Mortage Electronic Registration Systems, Inc. (MERS, Inc.), a qual serviu como um tapume para a “podridão” de boa parte dos créditos hipotecários que ruíram e geraram um nefasto efeito dominó na economia mundial.
Se é verdade que a MERS, Inc. não teve papel relevante na gênese do problema – que nasceu com a inadimplência de créditos mal concedidos, é igualmente verdade que ela dificultou a quantificação do risco de crédito dos ativos que eram securitizados em produtos que tinham como lastro recebíveis imobiliários oriundos destas hipotecas, cuja má qualidade jurídica foi também ocultada pela MERS.
É importante inicialmente lembrar que as garantias são, antes de mais nada, institutos jurídicos, embora tenham efeitos econômicos importantes.
Com vistas ao aumento de produtividade e diminuição do custo de operação do rico mercado de securitização de créditos imobiliários, a MERS começou a operar um registro privado, paralegal, e com nefastos efeitos tanto para consumidores regulares do mercado imobiliário quanto para o próprio mercado financial, embora o sucesso inicial da empresa e a incipiente reticência das Cortes Estaduais em declarar ilegal sua atividade tenha ofuscado os problemas que estavam sendo gestados.
As hipotecas geradas pelo bancos subscritores, embora inicialmente registradas no registro imobiliário oficial, tinham a MERS como cessionária ou mesmo como titular do direito de hipoteca,[1] e as subsequentes operações de transmissão dos créditos entre os membros da MERS (bancos de investimento) eram registradas em seu próprio acervo privado, inacessível ao público,[2] de modo que o agrupamento de hipotecas em títulos mobiliários para venda em mercado de capitais (securitização) fosse feito de forma mais “eficaz e barata”[3],[4] sem necessidade do registro de seus endossos no sistema oficial, deixando-os fora do registro público, remanescendo, assim, clandestinas as atuais condições subjetivas e objetivas do mútuo.
Após algum sucesso inicial da empresa em litígios discutidos em Cortes Estaduais, no Estado do Massachusetts um problema jurídico óbvio de legitimidade para as execuções hipotecárias dos créditos registrados na MERS emergiu. Nos casos US Bank v. Ibanez[5] e Bevilacqua v. Rodrigues,[6] a inconsistência das execuções movidas por cessionários dos direitos hipotecários sem o devido endosso da cessão no acervo oficial culminou com o malogro da aquisição litigiosa, em boa-fé, dos arrematantes. A grandiosidade da questão foi percebida pela Moody´s, que, em um estudo[7], apontou que, naquela época, 31.500 execuções estavam nestas mesmas condições naquele estado, e os respectivos arrematantes se veriam, então, envolvidos no imbróglio jurídico acarretado pelo inusitado método de atuação da MERS.
A MERS, mostrou-se descuidada em operações de securitização com relação à formalização das cessões perante o registro oficial antes da propositura das execuções afetas aos créditos inadimplidos,[8] levando à extinção das execuções por falta de legitimidade processual e o desapossamento dos arrematantes de seus imóveis.
Além disto, relegou-se a segundo plano o registro público oficial, criado para dar publicidade aos direitos imobiliários e assim reduzir assimetrias informativas, o que é elemento fundamental para permitir ao direito de propriedade imóvel sua funcionalidade econômica.
As leis estaduais nos Estados Unidos impõem que todas as transferências de propriedade imobiliárias sejam registradas, o que significa, nesta situação, a entrega de uma cópia do documento de hipoteca (mortgage deed) a um funcionário do respectivo escritório do Condado onde o imóvel se situa. Estas leis estaduais são projetadas para proteger os detentores de interesses em imóveis, como os credores hipotecários, de eventuais pretensões concorrentes de quem tenha posteriormente adquirido direitos conflitantes. Sem que o cedente documente a aquisição destes interesses, o titular original pode transferi-los novamente, com título indisputável, para outrem. Sempre que uma nova transação envolvendo direitos reais ocorre, uma busca nos arquivos deve ser realizada e os documentos constantes nos registros devem ser recuperados. Uma pesquisa desta cria uma cadeia de títulos (chain of title) que determina quem detém quais interesses na propriedade especificada.
Gera-se, ao evitar-se o registro público, uma opacidade incompatível com a publicidade que deve permear os direitos reais imobiliários e a transmissão dos créditos por eles garantidos, em um arranjo que oculta do público, por exemplo, a real titularidade de uma hipoteca.[9] A MERS levou tais direitos de garantia ao obscurantismo, e teve-se o cenário perfeito para que a qualidade jurídica das garantias, e, por consequência, a qualidade jurídica dos próprios ativos securitizados, fosse deteriorada.
Sem embargo, esta própria opacidade prejudicou a tarefa das agências de classificação de risco em aquilatar o risco de crédito dos recebíveis que, após empacotados em produtos financeiros (Collateralized Debt Obligations), eram oferecidos à então farta procura de investidores. Estes créditos, a despeito de relacionados a contratos da modalidade subprime, eram classificados como de alta qualidade, eis que as agências, pela falta de efetiva publicidade registral, os avaliava com base em tendências anteriores e gerais da economia, não a um nível individual dentro do produto securitizado.
Ficou evidenciado que o cuidado jurídico da publicidade imobiliária não pode, sem prejuízo importante, ser substituído por um registro privado e oculto, projetado em vista de interesses eminentemente econômicos, sem cuidado com o instituto jurídico que está na base de toda a operação.
A solução defendida para os problemas gerados pela MERS passa desde a desapropriação ou banimento de seus registros à criação de um registro imobiliário nacional e unificado, com função pública, dotado de transparência e publicidade, indexado objetivamente (fólio real) como no Brasil, de forma a tornar fáceis e rápidas as buscas, que possa ser acessado de maneira eletrônica, e que atue de maneira uniforme e consistente.[10] Em outras palavras, o que está sendo proposto, como solução para o sério problema criado pela MERS e visando a melhoria do sistema registral norteamericano é a criação de um registro de direitos eletrônico, criado e regulado por normatização federal, em substituição ao atual sistema de registros, que é de documentos e regulado mediante leis estaduais.
Na contramão dos acontecimentos, o Brasil ameaça criar o seu registro concorrente ao sistema oficial, por meio de Medida Provisória que pretende instituir as Centrais Gestoras de Garantias (CGG), nos mesmos moldes da MERS norte-americana, com todos os seus vícios de dúvidas acerca de sua legitimidade para a execução hipotecária (a ser proposta pela CGG no interesse do credor, numa espécie de intermediário compulsório – art. 2º, § 7º). Há a mesma opacidade jurídica (art. 4º, § 2º), e prejuízo à correta apuração de risco dos créditos securitizados e mantidos dentro da CGG.
O sistema registral imobiliário brasileiro, nos moldes dos registros que amparam alguns dos melhores mercados imobiliários do mundo (como o alemão e o espanhol, v.g.), é afrontado de maneira perigosa, podendo acarretar desvalorização da propriedade registrada, desatinar risco sistêmico por toda a economia a ameaçar a estabilidade do sistema financeiro, como revela a malograda experiência Americana.
Afronta-se, no Brasil, o que tem-se apontado nos EUA como a solução para os problemas percebidos na crise de 2008: um registro de imóveis de direitos, eficiente.
Isto não apenas não interessa, é lesivo tanto à sociedade e aos consumidores, como o é também para as próprias instituições que operam no crédito imobiliário, as quais, se não puderem num futuro confiar no sistema oficial de informação e proteção do direito de propriedade imóvel, não mais encontrarão nele uma garantia prestável.
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[1] Christopher L. Peterson, Foreclosure, Subprime Mortgage Lending, and the Mortgage Electronic Registration System, 78, u. cin. l. rev. 1358 (2008), at 11.
[2]“the beneficial ownership interest or servicing rights may be transferred among MERS members”.
[3]“MERS remains the mortgagee of record in local county recording offices regardless of how many times the mortgage is transferred, thus freeing MERS’s members from paying the recording fees that would otherwise be furnished to the relevant localities”.
[4] Joshua J. Card, Homebuyer Beware: MERS and the Law of Subsequent Purchasers, 78 Brook. L. Rev. (2012), at 1637. Available at: https://brooklynworks.brooklaw.edu/blr/vol78/iss1/11.
[5]U.S. Bank National Assoc. v. Ibanez, 458 Mass. 637 (2011).
[6]Bevilacqua v. Rodriguez, 955 N.E.2d 884 (Mass. 2011).
[7] Moody’s Weekly Credit Outlook, Massachusetts Foreclosure Case Exposes RMBS Trusts to
Additional Losses, 46 (Oct. 31, 2011), citado em https://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=14&ved=2ahUKEwjEosX1o5XmAhVKwlkKHZShB6gQFjANegQIAhAC&url=http%3A%2F%2Fwww.dentons.com%2Fimport%2F~%2Fmedia%2F3100B46C382C41CD96CAE9399BA97123.ashx&usg=AOvVaw1WRi_iQZVNZZl1aybE13Gq.
[8] Laura A. Steven, MERS and the Mortgage Crisis: Obfuscating Loan Ownership and the Need for Clarity, 7 Brook. J. Corp. Fin. & Com. L. (2012), at 255. Available at: https://brooklynworks.brooklaw.edu/bjcfcl/vol7/iss1/11.
[9] Robert E. Dordan, Mortgage Electronic Registration Systems (MERS), Its Recent Legal Battles, and the Chance for a Peaceful Existence, 12 LOY. J. PUB. INT. L 177, at 178-179.
[10] MARSH, Tanya. Foreclosures an the feilure os the American land title recording system. Columbia Law Review. v. 111, mar. 2011. p. 24-26.