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O crime de desobediência eleitoral e a competência para processá-lo e julgá-lo

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CÓDIGO ELEITORAL

CRIME DE DESOBEDIÊNCIA

CRIMES ELEITORAIS

DESOBEDIÊNCIA ELEITORAL

DIREITO ELEITORAL

JUSTIÇA ELEITORAL

VOTO

Luiz Carlos dos Santos Gonçalves

Luiz Carlos dos Santos Gonçalves

07/10/2020

O artigo 347 do Código Eleitoral tem a seguinte redação:

Art. 347. Recusar alguém cumprimento ou obediência a diligências, ordens ou instruções da Justiça Eleitoral ou opor embaraços à sua execução:

Pena –detenção de três meses a um ano e pagamento de 10 a 20 dias-multa.

Ele é, como tantos outros crimes eleitorais, uma cópia aproximada do crime do artigo 330 do Código Eleitoral:

Desobediência

Art. 330 – Desobedecer a ordem legal de funcionário público:

Pena – detenção, de quinze dias a seis meses, e multa.

Ao contrário do Código Penal, entretanto, o Código Eleitoral não dividiu seus tipos penais em capítulos. Eles são apresentados, num bloco único, que começa no artigo 288 e vai até o 354-A, sem distinção dos bens jurídicos especificamente tutelados. Nesse rol, temos condutas que afetam a regularidade da inscrição eleitoral, a igualdade dos candidatos na disputa, a liberdade de voto do eleitor, o respeito às regras sobre votação, fiscalização e apuração dos resultados, a honra, a fé pública e a administração pública e da Justiça Eleitoral. No conjunto, é possível indicar que os crimes eleitorais tutelam a lisura e legitimidade das eleições, a liberdade de formação do voto do eleitor e a regularidade da administração eleitoral, cabendo à doutrina e à jurisprudência minudenciar o bem jurídico particular que, a cada crime, se lesiona ou se expõe a risco de lesão.

Tivesse o Código Eleitoral seguido a boa prática do Código Penal, teria dito que o crime de desobediência protege a administração pública e da justiça, opondo embaraços ao atendimento de ordens legais de funcionários públicos. Esta solução é também correta para o crime de desobediência eleitoral. Qual a administração pública que o crime do art. 347 ofende? Se fosse a genérica, exercida pelo Poder Executivo, principalmente, o tipo eleitoral seria redundante, inútil. Trata-se, na verdade, da administração pública eleitoral, tendo em vista que, desde 1932, se confiou a um ramo próprio do Poder Judiciário, a Justiça Eleitoral, a tarefa de organizar as eleições, desde a inscrição dos eleitores, candidatos e partidos, até a colheita, apuração dos votos e diplomação dos eleitos. E tendo em vista que também esse ramo presta serviços jurisdicionais, que podem ser afetados por condutas que descumprem ordens diretas e legais.

Ainda assim: qual a utilidade de prever, no Código Eleitoral, comportamentos já tipificados na legislação comum? O propósito é, singelamente, atrair a competência da Justiça Eleitoral para conhecer e julgar os processos-crime. É função a qual o legislador tem se mostrado atento, como dão exemplo o crime do artigo 354-A (uma espécie de apropriação indébita ou peculato) e do art. 326-A, a denunciação caluniosa eleitoral. Se o crime afeta interesses da administração pública, inclusive eleitoral, mas não está incluído na legislação eleitoral, a competência para processo e julgamento será da Justiça Federal; se está na legislação eleitoral, a competência será da Justiça Eleitoral.

Tal vis atrativa da competência criminal eleitoral é fator decisivo para a própria classificação dos crimes eleitorais, que podem ser próprios – previstos na legislação eleitoral – e impróprios – afetam bens jurídicos eleitorais mas encontram-se descritos na legislação comum.

Esse entendimento não foi perfilhado pelo Tribunal Superior Eleitoral no julgamento do Recurso Ordinário em Habeas Corpus n. 0600244-42, relatado pelo Min. Tarcísio Vieira de Carvalho, em 1º de julho de 2020.

Tratava-se de situação na qual ordem do juiz eleitoral no sentido de proibir gravação da audiência teria sido desrespeitada por advogado. A interpretação adotada pela Corte foi que:

[…] sob o aspecto material, tal fato, por si só, não demonstra aptidão para violar as garantias inerentes ao direito ao sufrágio, à regularidade do processo eleitoral e à autoridade da administração pública deste ramo da justiça.

A decisão cita dois precedentes do Superior Tribunal de Justiça. Primeiro:

PENAL. CONFLITO DE COMPETÊNCIA. CRIME ELEITORAL NÃO CONFIGURADO. FALSO TESTEMUNHO. CRIME PERANTE A JUSTIÇA ELEITORAL. INTERESSE DA UNIÃO. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL.
1. Nos termos do art. 109, inciso IV, da Constituição Federal, compete à Justiça Federal processar e julgar infração penal de falso testemunho praticada em detrimento da União, que tem interesse na administração da justiça eleitoral.
2. A circunstância de ocorrer o falso depoimento em processo eleitoral não estabelece vínculo de conexão para atrair a competência da Justiça Eleitoral.
3. Conflito conhecido para declarar competente o Juízo Federal, ora suscitante.

[Conflito de Competência 106970, Terceira Seção, Rel./ Min. Og Fernandes, j. 14.10.2009]

Segundo:

CONFLITO DE COMPETÊNCIA. DESTRUIÇÃO DE TÍTULO ELEITORAL. DOCUMENTO UTILIZADO APENAS PARA IDENTIFICAÇÃO PESSOAL, SEM CONTEÚDO ELEITORAL. DESVINCULAÇÃO. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL.

1. A simples existência, no Código Eleitoral, de descrição formal de conduta típica não se traduz, incontinenti, em crime eleitoral, sendo necessário, também, que se configure o conteúdo material de tal crime.

2. Sob o aspecto material, deve a conduta atentar contra a liberdade de exercício dos direitos políticos, vulnerando a regularidade do processo eleitoral e a legitimidade da vontade popular. Ou seja, a par da existência do tipo penal eleitoral específico, faz-se necessária, para sua configuração, a existência de violação do bem jurídico que a norma visa tutelar, intrinsecamente ligado aos valores referentes à liberdade do exercício do voto, a regularidade do processo eleitoral e à preservação do modelo democrático.
3. A destruição de título eleitoral da vítima, despida de qualquer vinculação com pleitos eleitorais e com o intuito, tão somente, de impedir a identificação pessoal, não atrai a competência da Justiça Eleitoral.

4. Conflito conhecido para declarar a competência do Juízo Federal da Vara de Execuções Fiscais e Criminal de Caxias do Sul – SJ/RS, ora suscitante.

[CC 127101 / RS -Conflito de Competência -2013/0059242-7, Terceira Seção, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, j. 11.02.2105

A nosso ver, porém, os precedentes envolvem situações distintas, sem embargo de reconhecermos que o Superior Tribunal de Justiça opera distinguindo aspectos materiais e formais dos crimes eleitorais – embora previstos na legislação eleitoral – para resolver conflitos de competência entre a Justiça Comum e a Eleitoral.

O primeiro caso é de exame mais facilitado, pois não existe, na legislação eleitoral, crime equivalente ao falso testemunho do artigo 342 do Código Penal. É o que chamamos acima de crime eleitoral impróprio: afeta interesses relacionados à administração da Justiça Eleitoral, sem estar, contudo, previsto na legislação eleitoral. Sendo assim, a competência é mesmo da Justiça Federal.

Quanto ao segundo caso, o tipo eleitoral que justificaria a competência da Justiça Eleitoral, art. 339 do Código Eleitoral, é manifestamente inadequado para abranger a situação fática retratada naquele processo.  A redação do tipo é a seguinte:

Art. 339. Destruir, suprimir ou ocultar urna contendo votos, ou documentos relativos à eleição:

Pena –reclusão de dois a seis anos e pagamento de 5 a 15 dias-multa.

Parágrafo único. Se o agente é membro ou funcionário da Justiça Eleitoral e comete o crime prevalecendo-se do cargo, a pena é agravada.

Os “documentos relativos à eleição” são escritos ou objetos que se relacionam com o processo de votação e apuração. Na lição de Francisco Dirceu Barros e Janiere Portela Leite Paes [1]:

Quanto à expressão documentos relativos à eleição, deve ser interpretada em sentido amplo, que se aplica ao material utilizado nas seções, cadernos e votação, formulários preenchidos de justifica de ausência às urnas, mídias de resultados, boletins de urnas, zerézimas, dentre outros.

No mesmo sentido, o ensinamento de Rodrigo Zílio [2]:

A elementar “documentos relativos à eleição” em síntese, direciona-se a todos escritos ou objetos que tenham vínculo com a efetivação do processo de votação e apuração (ex, folha de votação, boletim de urna, ata de votação, pen drive). O crime pode ser praticado por qualquer pessoa, sendo classificado como delito comum

Vale dizer: são documentos públicos e papéis relativos à colheita e apuração dos votos, não o título de eleitor, que se utiliza como habilitação para votar. Evidencia-se o diálogo deste tipo com o subsequente:

Art. 340.Fabricar, mandar fabricar, adquirir, fornecer, ainda que gratuitamente, subtrair ou guardar urnas, objetos, mapas, cédulas ou papéis de uso exclusivo da Justiça Eleitoral:

Pena –reclusão até três anos e pagamento de 3 a 15 dias-multa.

Não há, destarte, um crime eleitoral específico relativo à destruição de títulos eleitorais.

A decisão no Conflito de Competência  127101 indicou que a destruição do título eleitoral se deu no contexto em que qualquer outro documento de identificação seria destruído:

[…] No presente caso, os títulos eleitorais supostamente destruídos na?o podem ser considerados como documentos relativos a? eleic?a?o, e sim documentos pessoais dos eleitores que os habilitam e identificam como tais.

O caso concreto levado a julgamento no STJ, descreve o comportamento de alguém que destruiu o título de pessoa que era por ele abusada sexualmente, após perceber que ela empreendeu fuga. O título de eleitor era um documento como outro qualquer, poderia ter sido uma cédula de identidade ou uma carteira de motorista. A desvinculação desses eventos com os bens jurídicos tutelados pelos crimes eleitorais é clara. Pela mesma razão, não seria crime eleitoral o comportamento de quem usasse um título eleitoral para obter vantagem ilícita em detrimento de outra pessoa, seria estelionato do art. 171 do Código Penal.

Para robustecer nossa argumentação, vale a pena tomar outra decisão do Superior Tribunal de Justiça, também julgando conflito de competência:

PENAL  E  PROCESSO  PENAL.  AGRAVO  REGIMENTAL  NO RECURSO EM HABEAS CORPUS.  1.  OPERAÇÃO CAIXA DE PANDORA. “FARRA DOS PANETONES”. CRIME DE   FALSIDADE  IDEOLÓGICA.  INCOMPETÊNCIA  DA  JUSTIÇA  COMUM.  NÃO VERIFICAÇÃO. 2. AUSÊNCIA DE FINALIDADE ELEITORAL. IMPOSSIBILIDADE DE RECONHECIMENTO  DA  COMPETÊNCIA  DA  JUSTIÇA  ELEITORAL.  3.  AGRAVO REGIMENTAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO.

1.  O  recorrente pretende, em síntese, demonstrar que a competência para julgar o crime de falsidade ideológica é da justiça eleitoral, por se tratar, em verdade, de crime eleitoral, previsto no art. 350 do Código Eleitoral, e não de crime comum, previsto no art. 299 do Código Penal. Contudo, pela leitura da denúncia, da sentença e do acórdão recorrido, não ficam dúvidas com relação à finalidade da conduta imputada ao recorrente, que visava alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante, com o objetivo de “encobrir e justificar as imagens em vídeo veiculado na imprensa, na qual ele é mostrado recebendo vultosas quantias de dinheiro”. 2. Dessarte, não há se falar em crime eleitoral porquanto, “a par da existência do tipo penal eleitoral específico, faz-se necessária, para sua configuração, a existência de violação do bem jurídico que a norma visa tutelar, intrinsecamente ligado aos valores referentes à liberdade do exercício do voto, a regularidade do processo eleitoral e à preservação do modelo democrático”. (CC 127.101/RS, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 11/02/2015, DJe 20/02/2015). No mesmo diapasão: CC 123.057/BA, Rel. Ministro RIBEIRO DANTAS, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 11/05/2016, DJe 19/05/2016 e CC 39.519/PR, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 14/02/2005, DJ 02/03/2005, p. 182.
3. Agravo regimental a que se nega provimento.

Agravo Regimental no Recurso Ordinário em Habeas Corpus n. 2017/0333830-6, 5ª. Turma, Rel. Min. Reynaldo da Fonseca, j. 06.12.2018)

Nesse caso, relativo à falsidade ideológica, não resta dúvidas de que se tratava da modalidade comum, do Código Penal, pois a finalidade, segundo a ementa do acórdão, era: “encobrir e justificar as imagens em vídeo vinculado na imprensa, na qual ele é mostrado recebendo vultosas quantias de dinheiro”. A alegação de que aquele fato retratado implicaria em recursos que seriam utilizados na campanha eleitoral e que, a seguir, no momento da prestação de contas seria objeto de omissão contábil retrata mera confusão entre atos concretos e cogitação de futura e incerta conduta criminal. Da mesma forma como não se pode punir por tentativa de homicídio quem porta ilegalmente uma arma, sem elementos concretos que indiquem que aquela era a finalidade e que o “iter criminis” já estava em andamento, não e pode presumir que uma mala de dinheiro se prestará a dois futuros e sucessivos atos ilícitos. A admissão da pessoa implicada, a todas as luzes, sem elementos objetivos de corroboração, é insuficiente como prova.

Portanto, as duas decisões do Superior Tribunal de Justiça referidas no acórdão do TSE se mostram, a nosso sentir, corretas, mas não funcionam da maneira mais ajustada como precedentes para o entendimento firmado pelo Tribunal Superior Eleitoral. O mesmo se passa com a terceira decisão, cuja ementa foi acima indicada.

No caso sob exame, uma ordem judicial eleitoral foi descumprida, num ato propriamente eleitoral (uma audiência), existindo previsão na legislação eleitoral deste comportamento típico. A lesão efetiva ou potencial da desobediência seria em detrimento da administração da Justiça Eleitoral, atraindo sua competência criminal e, até, preenchendo o critério material divisado pelo Superior Tribunal de Justiça.

Fazemos essa análise no sentido de colaborar com o entendimento do tema e com a prestação jurisdicional, sem que, com isso, diminua em nada nossa admiração e respeito pela Corte Eleitoral, pelo Relator do feito, o Eminente Ministro Tarcisio Vieira de Carvalho e pela maioria que se formou (indicando  o caráter complexo e polêmico do tema decidido).

Não somos entusiastas do emprego de tipos penais para assegurar o cumprimento de decisões judiciais ou ordens legais de funcionários públicos. As astreintes e as multas civis, funcionam de modo muito melhor. Mas entendemos que a desobediência à ordem judicial eleitoral é de competência da Justiça Eleitoral, no sentido que procuramos demonstrar. A construção jurisprudencial, presente também nos precedentes do Superior Tribunal de Justiça, de que se deve distinguir aspectos materiais e formais nos crimes eleitorais – ainda que previstos no próprio Código Eleitoral –  não nos parece a melhor, com a devida vênia. A solução mais simples é a que oferece também maior segurança jurídica: se estão previstos na legislação eleitoral, cabe à Justiça Eleitoral processar e julgar os crimes

FONTE: A Cachaça Eleitoral

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LEIA TAMBÉM


[1] Direito Eleitoral Criminal, 2ª. edição, Tomo I, Curitiba: Juruá, 2020, p. 391.

[2] Crimes Eleitorais, 4ª. edição, p. 258. Juspodivm, 2020.

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