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STF: papel e responsabilidade em tempos de “ativismo judicial”
Leonardo Martins
16/02/2018
O STF é, definitivamente, “pop”. Não necessariamente no sentido original de uma recepção positiva pela opinião pública, como revelam os recentes acontecimentos de hostilidades sofridas por um de seus integrantes em aeronave comercial, mas de ser pauta de discussões nos mais diferentes fóruns, inclusive, nas rodas de botequim. Aquele clichê de que temos, principalmente em ano de copa do mundo, 200 milhões de técnicos da seleção brasileira torna-se paulatinamente aplicável a conceitos como “ativismo judicial” que eram, até há pouco tempo, assunto exclusivo de estudantes e estudiosos do direito. Como frequentemente acontece em tais popularizações de conceitos técnico-jurídicos, há um ímpeto intelectual simplificador ou redutor de complexidades. Nesse sentido, em relação ao conceito com o qual todos vão aos poucos se familiarizando, cada um posiciona-se contra ou a favor, pouco importando a presença ou não de fundamentos ou a verificação de sua respectiva consistência. Democracia e o direito fundamental à liberdade de manifestação do pensamento consagrado no art. 5°, IV CF são assim mesmo: todo mundo em “coletivos” e cada pessoa individualmente pode livremente dizer o que pensa, manifestar sua opinião, mesmo que não compreenda bem do que se trata ou esteja falando.
Mas o que resta aos estudantes e pesquisadores do direito, da graduação ao pós-doutorado e, principalmente, aos operadores do direito, notadamente aos órgãos do Judiciário? A tarefa de perscrutar o fenômeno do ativismo judicial – especialmente do STF que, sabidamente, tem a última palavra vinculante sobre a solução de lides constitucionais, a concessão de remédios constitucionais e o julgamento de recursos extraordinários – cabe às ciências jurídicas.
Não obstante, no contexto cultural-jurídico brasileiro, o papel das ciências jurídicas tem se tornado cada vez mais uma incógnita. Primeiro, procura-se identificá-la com a defesa de teses consideradas justas. Justas para quem e com base em que medidas? Segundo, econômico-pragmaticamente falando, viram instrumentos de persuasão e convencimento para o atendimento de interesses econômicos e políticos que, em última instância, àqueles servem, especialmente em países com democracias não consolidadas e de institucionalidades ainda frágeis. À exceção de visões mais ufanistas e ingênuas, ninguém mais duvida que esse seja o caso da democracia brasileira. Assim, é chegada a hora de a democracia e o Estado constitucional e democrático de direito brasileiros vencerem, no limiar do aniversário de 30 anos da vigente ordem constitucional, a fase da puberdade.
Por isso, coloca-se a questão: qual é o papel de contribuição das ciências jurídicas e daquelas comunidades que atuam em seu contexto para que a democracia brasileira finalmente alcance a maturidade que se espera de um adulto de 30 anos?
Como no processo de busca de maturidade de pessoas físicas, também as instituições políticas de um país podem buscar referências e até modelos estrangeiros bem sucedidos. Nesse ponto, a recorrente objeção do relativismo cultural (“nós não estamos na Alemanha, aqui o buraco…”) em que pese a sua relevância para os pesquisadores e experts de outras áreas (ciências culturais) não pode prevalecer. Leituras culturalistas do direito em geral, especialmente do direito constitucional, a la “sociedade aberta dos intérpretes da Constituição” (Häberle) são absolutamente inócuas e mais servem para turvar o olhar do que para esclarecer. De fato, a Constituição é de todos e todos podem interpretá-la à vontade, mas isso não elide o fato de o chamado “guardião da Constituição”, no nosso caso, o STF, decidir vinculantemente questões constitucionais podendo (e devendo!) suscitar, inclusive, decisões contramajoritárias. Por causa da verificação de uma incompatibilidade com o parâmetro normativo constitucional, o STF pode (e deve!) declarar inválida a decisão majoritária tomada pelo Parlamento que, em regra, deveria ser fruto de amplos debates e negociações democraticamente orientadas.
Assim, para se investigar o fenômeno do ativismo no STF, sua suposta legitimidade e seus limites, deve-se investir não na formação de escolas teóricas antagônicas, hoje transformadas em verdadeiras trincheiras ideológicas inibidoras do necessário debate racional. É preciso investir em método hermenêutico que torne a interpretação e aplicação pelo STF de parâmetros normativos constitucionais, especialmente aqueles dotados de baixa “densidade normativa”, como são as normas definidoras de direitos fundamentais, um exercício de jurisdição constitucional previsível e controlável por todos, mas, pelo menos, pela comunidade jurídica especializada. Junto a essa busca, deve-se manter sempre em mente que, a despeito da mencionada baixa densidade normativa, do caráter por vezes muito abstrato de direitos fundamentais, tais normas são supremas, vinculam o STF também, que deve guardá-las, não delas dispor (diferença entre ser “guardião” ou “senhor” da Constituição).
Como fonte de inspiração estrangeira, oferecem-se a ordem e a jurisprudência constitucionais alemãs. Com quase 66 anos e meio de existência, a Corte constitucional alemã logrou firmar uma consistente jurisprudência concretizadora, especialmente, dos direitos fundamentais de liberdade, não obstante objeções pontuais da muito atenta crítica constitucional germânica. O estudante alemão de graduação em direito é apresentado, já a partir de seu primeiro semestre letivo, ao direito constitucional positivo por intermédio da jurisprudência do Tribunal Constitucional. Não se trata de um país pertencente à família de fontes da common law e não há, pelo menos não como naqueles países, vínculo a precedentes da Corte, sendo muito mal recepcionada no Brasil a chamada “teoria da transcendência dos motivos determinantes”, a ser revista ainda criticamente em outro ensaio. Com um exercício coerente da jurisdição constitucional concentrada, o tribunal alcançou uma grande reputação. Isso se deu, não por último, por sua jurisprudência ter um claro norte metodológico, mesmo sem seguir nenhuma cartilha teórica ou mesmo metodológica.
Assim, por exemplo, tornou-se a necessidade de se especificar e delimitar o direito constitucional em face do direito infraconstitucional uma obviedade na cultura jurídica alemã, até para se fixar, do ponto de vista institucional, os limites da jurisdição constitucional em face tanto do Executivo e Legislativo, quanto das instâncias judiciais ordinárias e especializadas infraconstitucionais. Há várias fórmulas usadas para se definir o que é, abstrata e concretamente falando, o chamado “direito constitucional especifico”. Sem espaço para expô-las aqui, saliento apenas que essa definição está no entroncamento das competências de juízes naturais de questões constitucionais, de um lado, e do direito ordinário, de outro. Em suma, lá existe uma apreciação racional, mitigada, da chamada constitucionalização do direito em geral, mas, especialmente, do direito privado que tem preservada sua autonomia.
A questão aqui é: o que faz de uma lide entre particulares uma questão constitucional? Tal verificação induz a abertura da competência de apreciação pelo STF, sobretudo, de um RE. Consequentemente, dela dependerá a definição sobre se o RE interposto – a despeito da problemática obrigação de demonstração pelo recorrente da “repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso”, tal qual prevista no art. 102, § 3° CF[1] – teria de ser obrigatoriamente conhecido pelo STF. Esse tribunal decide definitivamente uma lide constitucional. Deve submeter-se ao crivo da opinião pública, como, aliás, tem ocorrido há pelo menos uma década graças ao seu papel político cada vez mais proeminente e que acabou despertando o interesse da imprensa em geral.
Contudo, e a crítica especializada a ser feita por nós, juristas? Criar rótulos para as decisões (“garantistas”, “ativistas” etc.) não apenas nãobasta. Ao contrário, representa desserviços em face dos reais desafios que temos de enfrentar. Definir precisamente o papel e as responsabilidades do STF faz parte de nossa alçada, de todos nós que nos dedicamos às ciências jurídicas (desde o primeiro semestre letivo na graduação em direito!) e nela buscamos nosso suporte para uma idônea operação do sistema jurídico. É parte central de nosso ethos profissional. Nossas discussões têm, sim, de ter um viés diferenciado quando comparado ao debate do público leigo.
Infelizmente, isso não tem ocorrido. Sequer a consciência do problema pode ser observada nas discussões “jurídicas”.
Buscando uma contribuição efetiva para o esclarecimento desse nosso papel e de nossas responsabilidades, concebemos o evento cuja programação pode ser vista em http:*. Muitas das questões a serem nele enfrentadas dizem respeito não apenas ao controle abstrato de normas, realizado em sede de ADI, por exemplo, mas se referem à verificação do vínculo normativo de todo juiz togado aos direitos fundamentais. Se, entre nós, uma norma, abstratamente considerada, já pode ser fulminada com a declaração de inconstitucionalidade (com efeitos inter partes, nas instâncias ordinárias, e, erga omnes, em sede de ADI junto ao STF), incidentalmente pode ser verificada também a inconstitucionalidade de interpretações e aplicações de normas, por exemplo, do direito civil.
Essa prática ordenada constitucionalmente gera um impacto na relação entre os particulares. Contudo, isso não significa que os particulares sejam vinculados uns aos direitos fundamentais dos outros. Isso implicaria uma total destruição da autonomia do direito privado. Uma diferença enorme entre os sistemas jurídico-processuais constitucionais alemão e brasileiro é a ausência, naquele sistema, da possibilidade de qualquer juiz descartar a aplicação de uma norma por entendê-la inconstitucional. Trata-se, no caso alemão, de uma reserva de competência ao TCF no contexto do sistema concentrado de controle de constitucionalidade.[2] Mas isso torna ainda mais necessária a tomada de conhecimentos a respeito dos métodos hermenêuticos desenvolvidos alhures e a imprescindível delimitação entre o direito ordinário e o direito constitucional, a fim de ser vedada a possibilidade de arbítrio judicial, muito recorrente em um país em que imperam as conhecidas trincheiras justeóricas e ideológicas e, portanto, a crítica passional e não técnica a que me proponho. Diante de uma crítica técnica lastreada no direito constitucional positivo, não há como o titular do poder constituído tergiversar, caso não queira reduzir o axioma da “força normativa da Constituição” a uma inócua fórmula retórica.
É disso que se trata no evento e em minha obra, em geral: criar sólidos subsídios ao surgimento de uma opinião pública jurídica especializada que seja efetivamente capaz de apontar – e com substância – os erros das decisões judiciais supremas. Não se trata de tomada de partido ou, em primeira linha ao menos, da configuração de políticas.
Para ilustrar a tônica do esperado debate, apenas alguns poucos questionamentos trazidos do direito constitucional alemão:[3]
Pode um juiz decidir uma lide entre um locatário que impugna a aplicação de cláusula contratual que, para uma instalação de antena parabólica, por meio da qual ele exerce seu direito fundamental à liberdade de informação, feita às suas expensas, prescreva uma necessária autorização do locador, aplicando a referida cláusula contratual e cláusulas gerais do Código Civil sem considerar o impacto de sua decisão no exercício do aludido direito fundamental? Pode o Poder Judiciário, com fulcro em uma norma penal que proteja a memória das milhões de vítimas do nacional-socialismo, proibir uma reunião marcada por extremistas de direita com o propósito de homenagear uma celebridade daquele regime totalitário? Pode ser uma condenação por crime de injúria supostamente contida na frase “soldados são assassinos”, expressa no contexto da crítica à instituição das Forças Armadas por pacifistas radicais, anulada como violadora da liberdade de opinião? Pode deixar de ser admitida uma ação ou ser conhecido um recurso judicial que questione a presença de crucifixos em repartições públicas por parte de quem não professe a respectiva religião e tenha de submeter-se diuturnamente àquele símbolo? Pode a escola pública não confessional proibir o uso de vestes e símbolos religiosos, tais como o lenço, o véu ou a burca islâmicas durante as aulas? Pode um juiz penal condenar um jornalista por crime de favorecimento real (art. 349 CPB) por publicar, em veículo de imprensa, a informação correspondente a um vazamento de sigilo funcional? Na mesma seara, pode ser uma demissão de jornalista, por não seguir determinações de seus superiores na empresa, considerada violação da liberdade de comunicação social do Art. 5°, IX CF? Pode ser criado um cadastro de obras literárias impróprias para menores e ser, com base nele, proibida judicialmente a comercialização de obra naquela categoria classificada? Pode ser revista, com fulcro em alegada inconstitucionalidade, a demissão de um funcionário que, sustentando um imperativo de crença, recusar-se a se submeter a normas de vestimenta e uniforme da empresa? Pode um órgão jurisdicional considerar uma sanção prevista em leis civis a convocações ao boicote de um agente econômico contra seu concorrente como uma violação da liberdade de manifestação do pensamento?
Que todas essas questões causam polêmica e são solucionáveis de formas diversas em prol de uma ou outra parte é obvio. O desafio é determinar quais são as condições que devem estar presentes para que a solução dada pelo Judiciário possa ser considerada correta. Outro lugar comum, infelizmente muito arraigado entre nós, é que o STF e os tribunais, em geral, sejam também agentes políticos. Fato é que suas decisões têm notório impacto político e sobre legitimidade democrática pode-se sempre discutir. Todavia, se o STF faz apenas política, quem, afinal de contas, zela, de modo vinculante, pelo direito? Afinal, do que estamos mesmo falando nos cursos de direito?
* * *
A todos aqueles que quiserem ir além de manifestações inflamadas pró ou contra o ativismo do STF, que quiserem, como juristas ou simpatizantes, falar, escrever e atuar com consistência e propriedade sobre assuntos envolvendo controle de constitucionalidade não apenas de leis, mas de todos os atos administrativos e decisões judiciais, a inscrição e a presença no ciclo de debates é imprescindível!
Venha fazer parte da intencionada guinada histórica na forma de analisar a jurisprudência suprema com base em sua medida que não é (e não deve ser!)[4] outra senão a Constituição Federal prestes a completar 30 anos de vigência, com vistas a fazê-la, finalmente, alcançar a maturidade.
A experiência histórico-constitucional brasileira prova que não adianta substituir textos e mudar formalmente a “era constitucional”. Já foram 6 constituições fracassadas! A CF sedimenta-se na melhor tradição constitucional das mais desenvolvidas democracias ocidentais. É mais do que chegada a hora de saber como interpretá-la e aplicá-la para que conceitos mais ou menos vagos que, por vezes, não passam de bolhas retóricas, como o conceito de ativismo, não nos impeçam de exercer nosso legítimo papel de fiscal do fiscal da constitucionalidade de todo ato do poder público.
* Para conhecer mais sobre o autor, convidamos a todos para participar “Ciclo de Estudos Alemanha-América Latina de Direito Constitucional e Direito Privado Contemporâneo” que ocorrerá dia 26 de fevereiro de 2018, a partir das 09h, em São Paulo-SP. Leonardo Martins apresentará a 2ª Conferência, com o tema “Diversidade, pluralismo político e lida com o extremismo político-ideológico no Estado Constitucional: o caso Rudolf-Hess-Gedenkfeier”. Saiba mais, clique aqui!
[1] Observação de constitutione ferenda: um regresso político-constitucional.
[2] Para aprofundamento, v. Martins, Leonardo. Direito processual constitucional alemão. 2. ed. São Paulo: Foco, 2018, p. 15-21.
[3] Estas e várias outras decisões que aplicaram os parâmetros jusfundamentais da liberdade de consciência e crença, liberdade de opinião, de informação, de comunicação social, artística e científica podem ser estudadas em Martins, Leonardo. Tribunal Constitucional Federal Alemão: decisões anotadas sobre direitos fundamentais. v. 2. São Paulo: KAS, 2018 (no prelo).
[4] Quando um órgão jurisdicional cita passagens bíblicas ou qualquer outra fonte como obter dictum em sua decisão, tem-se, em primeiro lugar, apenas um despropósito, pois decisão judicial como expressão do poder constituído jurisdicional sabidamente não é o locus de manifestações de crença. Se for o fundamento da decisão (motivo ou razão determinante), em havendo incompatibilidade entre o texto religioso e a norma aplicável ou entre suas ordenadas respectivas consequências, o ato corresponde ao tipo penal previsto no Art. 349. Se a aludida incompatibilidade não estiver presente, viola, ao menos, o princípio do Estado de direito (Art. 1°, caput CF).
Veja também:
- Política de Drogas: Dimensão Jurídico-constitucional do Problema
- O STF sob a lupa da crítica jurídico-científica: guardião da CF ou censurador em causa própria?
- Informativo de Legislação Federal: resumo diário das principais movimentações legislativas.
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