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Registro de imóveis: quais os feitos do cancelamento do cancelamento?
GEN Jurídico
30/07/2024
O cancelamento do ato, seja averbação ou registro, implica a supressão de seus efeitos do mundo jurídico. É isso que ele causa. Cancelado o registro lato sensu, desaparece a publicidade e, com ela, os efeitos que ele produzia. Já foi visto que o cancelamento do ato pode ser direto, por averbação, ou indireto, como efeito de outro ato. Quando ao indireto, vale como exemplo o registro constitutivo, ao qual corresponde o efeito negativo de extinguir a eficácia do registro anterior: o registro da transmissão cancela indiretamente o registro da aquisição. O ato de cancelamento direto, por averbação, não cria, não aumenta nem diminui o direito inscrito, assim como não limita nem estende seu tempo de eficácia. É a averbação de retificação que produz esses efeitos. O cancelamento, com perdão do pleonasmo, cancela. Nos casos de nulidade do registro, reconhecida direta ou indiretamente, na via jurisdicional ou administrativa, o cancelamento produz efeitos ex tunc. O registro declarado nulo não produz efeitos. Seu cancelamento tem efeitos que retroagem à data em que o registro foi feito, como se nunca tivesse existido. Na anulação do registro, em decorrência da anulação do título, o cancelamento é eficaz a partir da averbação. O cancelamento por outra causa, que não a nulidade, cobre definitivamente o registro com um manto, impedindo que seus efeitos continuem sendo irradiados. O ato material permanece no assento, mas sem eficácia, abafado. Os efeitos que já irradiou, esses não se apagam.
Efeitos do cancelamento do cancelamento
A averbação de cancelamento também pode ser cancelada, por nulidade, por erro, ou por outro motivo, como qualquer outro ato registrário. Pois bem, cancelado o cancelamento do registro, readquire este a eficácia, como se nunca a tivera perdido? Não para Ricardo Dip: “Ressalvada a hipótese de nulidade, o cancelamento não perde sua eficácia por uma averbação que o pretenda cancelar; vale dizer: para revigorar-se a posição registral anterior ao cancelamento de uma transcrição, seria indispensável – sempre excepciona- da a hipótese de nulidade – uma inscrição com eficácia positiva, não bastando singelo cancelamento do cancelamento”1
A questão diz respeito à eficácia repristinatória do cancelamento do cancelamento. O simples cancelamento do cancelamento não repristina automaticamente o registro cancelado, isto é, não restabelece sua eficácia ex tunc, como se nunca tivesse sido cancelado. O registro cancelado volta a produzir efeitos no ato do cancelamento do cancelamento. Isso significa que, se, no meio-tempo, tiver sido registrado outro título, este terá preferência.
Todavia, se a averbação de cancelamento tiver sido cancelada por nulidade de pleno direito, então, sim, seu cancelamento terá efeito repristinatório do registro indevidamente cancelado, desde a data em que foi feito.
A hipótese não é acadêmica. Em São Paulo, o credor fiduciário deu quitação da dívida garantida pela alienação fiduciária do imóvel, permitindo, assim, o cancelamento do registro desse contrato. Devolvida a propriedade ao ex-fiduciante, ele alienou o imóvel. Algum tempo depois, o credor requereu ao registrador que cancelasse a averbação de cancelamento da alienação fiduciária, porque a quitação não se referia àquele contrato, mas a outro, registrado em outra matrícula. O oficial aceitou a explicação e, indevidamente, cancelou o cancelamento. Praticou ato nulo de pleno direito. Primeiro, porque não exigiu a anuência do prejudicado pelo cancelamento do cancelamento; segundo, porque o imóvel já fora alienado. A corregedoria permanente reconheceu a nulidade de pleno direito do cancelamento do cancelamento e mandou averbar seu cancelamento: um incrível cancelamento do cancelamento do cancelamento.
Num primeiro momento, quando, a pedido do credor, o registrador cancelou o cancelamento do registro do contrato, imaginaram ambos que se restabelecera a eficácia daquele registro. Mas não. O cancelamento do registro do contrato de alienação fiduciária fora feito a pedido, com prova de quitação da dívida. Cancelado o cancelamento, para que o contrato voltasse a produzir efeitos, deveria ser novamente registrado.
Ademais, havia outro impedimento: o imóvel fora alienado. A alienação fora registrada no intervalo entre o cancelamento e o cancelamento do cancelamento. Se o cancelamento do cancelamento tivesse efeito repristinatório, o registro da nova aquisição seria fatalmente cancelado, porque a non domino.
Num segundo momento, quando o juiz mandou cancelar o cancelamento do cancelamento, aí sim se impôs o efeito repristinatório, porque motivado pela nulidade de pleno direito. Restabeleceram-se a validade e a eficácia do cancelamento do registro, como se nunca as tivesse perdido. “Fora deste quadro de uma averbação de cancelamento de cancelamento por nulidade (material ou formal, não importa), inviável é cogitar de eficácia repristinatória da inscrição primeiramente cancelada.”2
O cancelamento do cancelamento, que não tenha sido determinado por nulidade, não repristina o ato, não lhe devolve os efeitos ex tunc nem ex nunc. Simplesmente, não repristina.
O cancelamento válido cumpriu sua função. Suprimiu os efeitos do ato cancelado. Esses efeitos só poderiam ser devolvidos se o cancelamento tivesse sido nulo. Assim, mesmo que o cancelamento seja cancelado, o título terá de ser novamente inscrito, com efeitos ex nunc.
Cancelado validamente, por exemplo, o registro do contrato de compromisso de compra e venda, o cancelamento do cancelamento não restabelecerá o registro. Será preciso que o instrumento do compromisso seja reapresentado e registrado, com eficácia ex nunc. Será simples aplicação do art. 254 da Lei 6.015/1973: “Se, cancelado o registro, subsistirem o título e os direitos dele decorrentes, poderá o credor promover novo registro, o qual só produzirá efeitos a partir da nova data”.
Essas considerações são muito importantes por causa dos eventos que podem suceder um cancelamento válido. Retome-se o caso concreto do cancelamento do registro da alienação fiduciária, diante da quitação expedida pelo credor fiduciário. Recuperada a propriedade, o proprietário, ex-devedor fiduciante, vendeu o imóvel e o título foi registrado. O banco comunicou ao oficial que houve erro e que o contrato de alienação fiduciária não foi quitado. O oficial cancelou o cancelamento. Evidentemente, o cancelamento do cancelamento não poderia repristinar o registro da alienação fiduciária: por tudo o que foi dito, e porque, no caso concreto, o imóvel já fora validamente alienado a terceiro pelo proprietário inscrito. O cancelamento cancelado não era nulo; fora feito com base em quitação outorgada pelo credor. Portanto, não podia repristinar os efeitos do registro da alienação fiduciária. Se o fizesse, daria ensejo à subsistência de dois registros contraditórios.
Enfim, os atos praticados entre o cancelamento válido e o cancelamento do cancelamento subsistem com toda a eficácia. Não há repristinação. O título cujo registro fora cancelado precisará ser novamente registrado, se for possível.
Prejuízos se resolvem em perdas e danos.
É preciso resistir à tentação de transcrever aqui, nesta passagem, o voto vencedor declarado pelo Des. Artur Marques da Silva Filho no julgamento, pelo Conselho Superior da Magistratura de São Paulo, dos Embargos de Declaração 9000004-02.2013.8.26.0462/50000, DJE 03.12.2014. Simplesmente, esgota a matéria, com farta doutrina e jurisprudência. É leitura indispensável.
Autor: Narciso Orlandi Neto
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NOTAS
1 Parecer do então juiz Ricardo Dip, no Recurso CG 46/87, da Corregedoria-Geral da Justiça de São Paulo (CORREGEDORIA-GERAL DE SÃO PAULO. Decisões administrativas de 1987. São Paulo: RT, 1991. p. 140).
2 DIP, Ricardo. Registro de imóveis: princípios. Descalvado: Primvs, 2017. t. I, p. 101.