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Plataformas digitais e proteção das crianças e adolescentes
Ana Frazão
21/11/2024
Como já tive oportunidade de salientar em trabalhos anteriores, notadamente em capítulo de livro constante da obra recém lançada que tive o prazer de coordenar e ser também uma das coautoras – Marco Civil da Internet. Impactos, evoluções e perspectivas. 10 anos1 – o art. 19, do Marco Civil da Internet, não pode ser interpretado como uma cláusula de imunidade absoluta das plataformas digitais diante de conteúdos nocivos para crianças e adolescentes.
Em outras palavras, é indevido concluir que as plataformas, por força do referido dispositivo legal, apenas são obrigadas a retirar conteúdos ilícitos por força de ordem judicial. Afinal, o art. 19 do Marco Civil da Internet não é uma “ilha” e precisa ser interpretado no contexto do ordenamento brasileiro, de forma sistemática e compatível com outras leis que preveem obrigações de cuidado por parte de ofertantes de serviços, dentre as quais o Código do Consumidor e o Estatuto da Criança e do Adolescente.
Acresce que, qualquer que seja a interpretação do art. 19, do Marco Civil da Internet, há que se considerar que a norma tem por pressuposto os casos de conteúdos de terceiros, o que pressupõe a neutralidade da plataforma. Em casos de conteúdos publicitários, impulsionados ou gerenciados pelas plataformas, é inequívoco que estas não podem ser consideradas terceiras, uma vez que passam a participar ativamente da gestão do fluxo informacional, devendo ter a responsabilidade compatível ao correspondente grau de interferência.
No que toca especificamente às crianças e adolescentes2, já tive a oportunidade de elaborar parecer, a pedido do Instituto Alana, abordando os principais aspectos do assunto. Tendo como título o “Dever geral de cuidado das plataformas diante de crianças e adolescentes”, o trabalho procura apontar que as plataformas já exercem curadorias de conteúdos, mas procuram fazê-lo por regras unilateralmente por elas criadas, muitas vezes de forma arbitrária, sem a devida transparência e sem os necessários compromissos com a proteção dos usuários de seus serviços, notadamente de crianças e adolescentes.
É nesse contexto que precisamos ficar atentos à recente iniciativa Instituto Defesa Coletiva, que ingressou com duas ações civis públicas em Minas Gerais – uma contra TikTok e Kwai e outra contra a Meta – apontando as diversas violações que o modelo de negócios das plataformas traz aos direitos de crianças e adolescentes e pedindo diversas providências para sustar práticas nocivas, implementar mecanismos de proteção de dados e impor restrições ao uso excessivo das plataformas pelas crianças. As ações ainda trazem pedidos de indenização por danos morais coletivos que chegam a R$ 1,5 bilhão para cada plataforma3.
As ações, que estão baseadas em inúmeros estudos científicos, mostram que as plataformas acabam promovendo o vício psicológico, ao incentivarem, por meio do mecanismo Autoplay, o uso ininterrupto dos seus serviços, com algoritmos que estimulam recompensas instantâneas e constantes, como curtidas e atualizações de feed.
Daí por que as ações propõem várias medidas de controle para proteger os jovens usuários das redes sociais, incluindo a proibição temporária de acesso a essas plataformas por menores de idade até que sejam implementados mecanismos para evitar a dependência. Ainda há os pedidos de que as plataformas veiculem contrapropaganda, ou seja, campanhas informativas sobre os riscos do uso prolongado das redes sociais e sobre os mecanismos de proteção de dados, promovendo uma conscientização ostensiva de seus efeitos.
Em ambas as petições, há toda a preocupação em demonstrar alguns dos aspectos perversos do atual sistema, dentre os quais o fato de o usuário não ter o poder de não se submeter às regras das plataformas e seus modelos de monetização.
Dentre os inúmeros problemas causados às crianças, as ações apontam, dentre outros, (i) dependência digital e uso problemático das mídias interativas, (ii) problemas de saúde mental, como irritabilidade, ansiedade e depressão, (iii) transtornos de déficit de atenção e hiperatividade, (iv) transtornos do sono, (v) transtornos de alimentação, como que vão do sobrepeso/obesidade aos casos de anorexia/bulimia, (vi) sedentarismo e falta de prática de exercícios, (vii) bullying e cyberbullying, (viii) transtornos de imagem corporal e da auto-estima, (ix) riscos da sexualidade (nudez, sexting, sextorsão, abuso sexual, estupro virtual, (x) comportamentos auto-lesivos, indução e riscos de suicídio, (xi) aumento da violência, abusos e fatalidades, (xii) problemas visuais, como miopia e síndrome visual do computador, (xiii) problemas auditivos e PAIE, perda auditiva, (xiv) transtornos posturais e músculo-esqueléticos, (xv) uso de nicotina, vaping, bebidas alcoólicas, maconha, anabolizantes e outras drogas, (xvi) acesso a apostas e jogos indevidos e incompatíveis com a idade das crianças.
De forma geral, as ações demonstram a circulação de publicidade proibida e de conteúdos problemáticos e indevidos para crianças, causando uma indevida adultização infantil, o que demonstra que a relação de consumo está marcada pelo vício de qualidade por insegurança.
No caso da ação contra a Meta, ainda se alega a confissão espontânea da empresa, a partir dos depoimentos de personagens-chave que já reconheceram que a Meta sabia de todos os problemas e ainda assim não tomou providências. Dentre eles são citados o CEO da Meta e Frances Haugen, que ficou famosa por suas denúncias.
Considerando que as plataformas digitais já são rés de ações semelhantes em diversas partes do mundo, notadamente nos Estados Unidos, já não era sem tempo que tais iniciativas começassem a ser adotadas igualmente no Brasil. Apesar de já termos evidências suficientes para o diagnóstico, tais ações serão excelentes oportunidades para discutirmos as soluções e medidas cabíveis para a efetiva proteção das nossas crianças e adolescentes.
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1FRAZÃO, Ana. A responsabilidade civil das plataformas digitais por conteúdos de terceiros diante do artigo 19 do Marco Civil da Internet. In: FRAZÃO, Ana; MULHOLLAND, Caitlin; POLIDO, Fabrício.Marco Civil da Internet. Impactos, Evoluções e Perspectivas. 10 anos.São Paulo: Revista dos Tribunais, 2024, pp.17-41.