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Pensando como um economista

Ana Frazão

Ana Frazão

06/10/2023

Para os que se interessam sobre o diálogo entre direito, economia, política e sociedade, é imperdível a leitura do livro de Elizabeth Berman Thinking like an Economist. How Efficiency Replaced Equality in U.S. Public Policy[1].

A obra decorre do inconformismo da autora com o que ocorreu nos governos Clinton e Obama: ambos falharam em várias pautas tradicionalmente democratas porque nem mesmo tentaram implementá-las; na verdade, ficaram extremamente restritos, em termos de opções, diante do raciocínio econômico que orientou suas gestões.

Para Berman, a verdadeira causa da aparente falta de ambição dos democratas foi o crescimento e a consolidação de uma forma específica de pensar a política: a lógica e a argumentação econômicas (economic style of reasoning). Esse tipo de raciocínio, que é fundado na disciplina acadêmica da economia, particularmente da microeconomia, embora seja normalmente percebido como neutro, contém valores muito próprios, como escolha, incentivos, competição, externalidades e especialmente eficiência, considerando os mecanismos de mercado como os mais adequados para a solução mesmo dos problemas políticos e sociais.

A ironia do que ocorreu nos Estados Unidos é que, embora tal forma de compreender o mundo e desenhar políticas públicas possa colidir com governos de diferentes orientações políticas, foi especialmente abraçada pelos democratas. Assim, por mais que estes sejam os mais interessados em utilizar mecanismos estatais para a solução dos problemas, restringiram excessivamente os seus horizontes de ação a partir do momento em que elegeram a lógica econômica como pressuposto de racionalidade e legitimidade de suas condutas.

Daí a conclusão de Berman de que os mais importantes advogados da lógica econômica no governo vêm consistentemente do centro-esquerda, pois até mesmo os republicanos e conservadores apenas se utilizam desta lógica quando lhes interessa, ou seja, quando seja compatível com seus valores e interesses. A maior prova disso seria o governo Reagan, que apenas recorria ao raciocínio econômico quando este era compatível com seus planos de desregulação, desconsiderando-o sempre que apontava para outros sentidos.

Isso ajuda a explicar a estranheza de que justamente governos mais favoráveis a soluções estatais, como os democratas, tenham abraçado uma lógica econômica que, na verdade, constrange, restringe ou mesmo neutraliza vários dos seus valores e objetivos. Nesse ponto, a análise de Bauman é muito convergente com a de outros autores que, a exemplo de Kwak[2], consideram que a lógica econômica acabou desvirtuando o próprio partido democrata.

Verdade seja dita que Berman é muito cuidadosa no que tocante a esse assunto, não chegando a afirmar que os democratas se distanciaram dos ideais do New Deal ou se inclinaram para a direita por conta da lógica econômica. O seu argumento é mais sutil: foi a lógica econômica e a sua institucionalização – por meio de estruturas, regras administrativas e mudanças organizacionais – que acabou subordinando aos valores econômicos vários dos valores tradicionalmente democratas – como a preocupação com os direitos e com a igualdade – permitindo que tal mudança fosse durável.

Nesse ponto, a autora é muito clara ao afirmar que os referenciais utilizados pela lógica econômica implicam claramente escolhas valorativas que normalmente conflitam com outros valores concorrentes no espectro político, tais como os direitos fundamentais, o universalismo, a justiça e a limitação do poder corporativo.

Consequentemente, o foco excessivo na eficiência costuma levar ao desprestígio de outros valores políticos, além de ignorar a necessária dimensão política que existe – e deve existir – na elaboração de políticas públicas[3]. Conforme a influência da lógica econômica se torna mais durável, fica cada vez mais difícil que tais valores encontrem espaço no debate público ou que, quando encontram, consigam ganhar maiores adesões, pois passam a estar associados a políticas irracionais, inexequíveis ou inapropriadas.

Outro problema da lógica econômica, segundo Berman, é que o acolhimento dos valores econômicos exige uma abordagem distinta para tratar das políticas públicas, traduzida em metodologias que, a exemplo dos modelos e das análises de custo-benefício, simplificam e quantificam tudo – ao preço de grande reducionismo em alguns casos – além de adotarem a eficiência como o critério principal – quando não único – para se avaliar a qualidade de uma política pública.

A autora cita o exemplo da preservação ambiental, que, em razão da lógica econômica, deixou de ser vista como um imperativo moral para ser abordada a partir da precificação das externalidades causadas por cada agente, abrindo campo para a criação de uma verdadeira licença para poluir, desde que as companhias compensem o seu mau comportamento ou paguem taxas de poluição.

Lógica econômica e burocracia

Parte importante da análise de Berman é a que mostra como a lógica econômica é construída e como ingressa na burocracia, o que ressalta a importância dos atores políticos, das elites intelectuais e de várias instituições, como os think tanks.

Nesse ponto, a autora é muito clara ao destacar a relação de vantagem recíproca existente entre os que se beneficiam de uma forma de ver e pensar o mundo e aqueles que produzem o conhecimento para defender essa cosmovisão. Acresce que, retomando várias das premissas discutidas na sociologia econômica, Berman também mostra que uma lógica como esta apenas pode ser estabelecida a partir de um longo e lento processo que envolve igualmente a construção de instituições, de networks e de conhecimento.

Direito Antitruste

Dentre os inúmeros exemplos mencionados pela autora ao longo da obra está o Direito Antitruste. É muito interessante observar como o livro relata o processo pelo qual a lógica econômica adentrou nos órgãos governamentais, notadamente o Department of Justice e a Federal Trade Commission, e o quanto isso já foi relevante para a definição não só das prioridades investigativas das mencionadas autoridades, como também para a mudança de metodologia de análise e da própria definição dos objetivos do Antitruste, os quais passaram a estar restritos à maximização do bem estar do consumidor a partir de critérios de eficiência.

Mais adiante, a autora mostra como as nomeações feitas por Richard Nixon para a Suprema Corte foram estratégicas para a replicação da lógica econômica igualmente na esfera judicial, mostrando a relação visceral entre a mudança na composição da Suprema Corte, a organização dos grandes negócios para mudar o Antitruste e o crescimento da escola de Chicago. Essa seria uma das razões pelas quais, após 1967, em nenhum caso a Corte invocou a proteção de pequenos negócios como um objetivo do Antitruste, tendo adotado paulatinamente a lógica econômica em suas decisões.

Também nesse contexto, a autora explora, especialmente em seu capítulo 4, a importância estratégica da análise econômica do direito para tais fins, concluindo que o objetivo dessa vertente não foi propriamente o de trazer a economia para as escolas de direito, mas sim de introduzir uma visão específica de economia – ou mais precisamente de microeconomia – voltada para determinados valores que tendem a privilegiar os livres mercados[4]. Isso porque Berman reconhece que, em muitos casos, o avanço da lógica econômica corresponde, na prática, à limitação da intervenção governamental.

Como resultado prático da incorporação de uma lógica econômica tão restrita em todos os assuntos políticos, jurídicos e sociais, as discussões sobre direitos, igualdade e poder passaram a ser vistas como não realistas ou mesmo ingênuas diante dos objetivos econômicos. A internalização do estilo econômico pelos democratas moldou o espaço de possibilidades políticas para eles e o reduziu sensivelmente.

Os impactos para o direito e para as políticas públicas foram imensos, abrangendo as mais variadas questões, como o antitruste, a pobreza, a saúde, a moradia, o meio ambiente e o transporte. Todas essas áreas sofreram as consequências de um raciocínio econômico que tende a amesquinhar não apenas as preocupações com direitos e igualdade, mas também a própria democracia e o papel da política na definição das políticas públicas.

Daí por que, ao final da obra, a autora nos convida a restaurar a visão ambiciosa de que governos podem e devem trabalhar diferentemente, pautados no florescimento humano e em tantos valores importantes, como como igualdade, justiça racial, direitos e comunidade. Para Berman, essas questões são essencialmente de poder e de estrutura social, razão pela qual precisamos entendê-las como problemas políticos e não neutros.

Tal postura, como a própria autora adverte, não deve ser confundida com o menosprezo à técnica ou à expertise, até porque, quando os valores de determinada sociedade estiverem alinhados com os referenciais econômicos, é a técnica econômica que deve oferecer os instrumentos e ferramentas para buscá-los da forma mais adequada.

O problema fundamental, segundo Berman, é que esse alinhamento comumente não ocorre. Logo, quando nossos valores conflitarem com os referenciais econômicos, precisamos estar dispostos a advogar por alternativas e não continuar presos nos valores definidos por uma parcela da ciência econômica.

Fonte: Jota

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NOTAS

[1] BERMAN, Elizabeth Popp. Thinking like an Economist How Efficiency Replaced Equality in U.S. Public Policy. Princeton: Princeton University Press, 2022.

[2] KWAK, James. Take Back Our Party: Restoring the Democratic Legacy, Strong Arm Press, 2020.

[3] Sobre o tema, indica-se o podcast Direito e Economia da autora Ana Frazão, especialmente o episódio com Gabriela Lotta sobre o tema “Políticas públicas e regulação por evidências: a tensão entre técnica e democracia”. https://open.spotify.com/episode/28eIaPEA1dbOV17f0vKqxx

[4] Ver, sobre o tema, FRAZÃO, Ana. Jota. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/existe-um-mercado-de-ideias-05082020; Jota. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/raciocinio-economico-na-fundamentacao-juridica-leva-a-decisoes-pro-mercado-22042021.

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