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O STF, o cabecel e o caduceu: desafios da linguagem jurídica

Anderson Schreiber

Anderson Schreiber

07/11/2023

Em seu discurso de posse como presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), o ministro Luís Roberto Barroso destacou, na última quinta-feira (28), que um dos eixos de sua gestão será o da “comunicaçãomelhorando a interlocução com a sociedade, expondo em linguagem simples o nosso papel, explicando didaticamente as decisões, desfazendo incompreensões e mal-entendidos”.[1]

Para ilustrar a dificuldade de transmitir as mensagens jurídicas, o ministro Barroso fez menção ao “cabecel”, designação reservada, na disciplina da enfiteuse, à pessoa escolhida pelos enfiteutas para responder pelo pagamento do foro perante o senhorio.[2] Ao cabecel e aos enfiteutas poderiam se unir o “oblato”, o “evicto”, o “credor anticrético” e tantos outros títulos que dificultam a compreensão do direito pela sociedade em geral.

Muitos termos jurídicos são, de fato, menos compreensíveis do que poderiam ser, exprimindo uma linguagem anacrônica. O problema vai além: profissionais do direito empregam frequentemente construções mais rebuscadas do que deveriam. Por exemplo, uma consulta de jurisprudência em qualquer tribunal do país identificará numerosas decisões tratando do “abalroamento de automotores”, expressão que seria muito facilmente substituída pelo seu equivalente no mundo real: a corriqueira “batida de carro”.

Alguém poderá argumentar que se trata apenas de cultivar um bom uso do idioma, mas mesmo quem acredita nisso seguramente preferirá ler um romance que uma sentença judicial ou um acórdão. O primeiro público a que se dirigem as decisões judiciais não é a comunidade jurídica, mas sim os jurisdicionados. As partes que litigam em um processo precisam, na medida do possível, ser capazes de compreender quais foram as razões que levaram o juiz a decidir de uma ou outra maneira. E quem não é parte no processo também deveria ser capaz de consultar a jurisprudência e compreendê-la, especialmente em assuntos usuais da vida cotidiana, como os acidentes de consumo, as reclamações trabalhistas ou… as batidas de carro.

Dever de motivação imposto ao magistrado

Nesse sentido, não é exagero afirmar que o dever de motivação imposto ao magistrado pelo artigo 93, IX, da Constituição[3] abrange também a missão de se fazer compreender pelos jurisdicionados do modo mais abrangente possível. É claro que existem, no campo jurídico, discussões técnicas muitíssimo sofisticadas, que exigem o uso de termos específicos, mas compete ao jurista empregar seus melhores esforços para traduzir o “juridiquês”. Qualquer falha nesse campo gera um déficit de comunicação e, por consequência, de legitimidade do próprio direito. Uma norma que não se faz entender não pode ser cumprida. Uma sentença incompreensível não servirá de parâmetro à conduta futura de ninguém.

O déficit de comunicação com a sociedade não é um problema exclusivo do STF. Longe disso. Trata-se de um déficit generalizado, que afeta todos os tribunais do país, sem qualquer exceção. O STF é apenas a corte que sofre mais intensamente os efeitos dessa falta de comunicação. O tribunal mais televisionado do país (e do planeta) não pode se dar ao luxo de não ser compreendido. Precisa ser entendido pela sociedade, embora isso não signifique, como bem pontuou o ministro Barroso em seu discurso, que o Supremo deve se guiar pela opinião pública: “Contrariar interesses e visões de mundo é parte inerente ao nosso papel. Nós sempre estaremos expostos à crítica e à insatisfação. Por isso mesmo, a virtude de um tribunal jamais poderá ser medida em pesquisa de opinião”.

A comunicação clara entre os tribunais e a população brasileira é, todavia, fundamental para que a opinião pública não seja manipulada pela desinformação, pelo falseamento, pela interpretação deturpada daquilo que restou decidido. Para ficar em apenas dois exemplos recentes, houve muita desinformação acerca de decisões emitidas pelo STF em relação tanto à chamada coisa julgada tributária[4] quanto à inconstitucionalidade do artigo 144, VIII, do Código de Processo Civil.[5] Pode-se concordar ou discordar do STF, mas essa escolha só se faz possível após a plena compreensão das razões de decidir.

A necessidade de melhorar a comunicação entre o Poder Judiciário e a sociedade passa por outros fatores, como a redução da dimensão dos votos emitidos pelos integrantes de colegiados. Hoje, cada voto parece se pretender um capítulo de livro doutrinário, em verdadeira captura do papel da doutrina, o que acaba por resultar em uma extensão incompatível com o televisionamento das sessões de julgamento. A mudança também passa pela disponibilização imediata do inteiro teor dos votos, sem um longo tempo de espera pela publicação, que, por vezes, aprofunda mal-entendidos e agrava percepções equivocadas.

No vácuo criado por essas circunstâncias, jornalistas acabam exercendo o papel de dizer o que foi decidido pelas Cortes e essa mensagem nem sempre estará correta, em razão da própria ausência de formação jurídica. O erro original, contudo, não é jornalístico. Bem ao contrário, jornalistas acabam se tornando vítimas de um criticismo generalizado, quando estão apenas cumprindo sua missão de tentar explicar algo que não foi devidamente explicado e que o público tem o direito de compreender.[6]

Um saudável recurso nessas ocasiões é ouvir a opinião dos especialistas, mas a verdade é que, mesmo quando são ouvidos, juristas muitas vezes não mostram preocupação em se fazer entender, adotando um discurso hermético. O adjetivo hermético, como se sabe, remete a Hermes, deus grego da linguagem, dos viajantes e dos comerciantes, entre outros. Empunhando seu caduceu – não um cabecel –, Hermes, que calçava sandálias aladas, era responsável por levar mensagens de Zeus aos mortais. Vem daí a expressão “hermenêutica”, tão cultuada pelos juristas, que ainda se veem, de certa forma, como mensageiros ou profetas, capazes de decifrar sinais que os meros mortais não conseguem ler, revelando a verdade jurídica.

Tudo isso já deveria ter ficado para trás há muito tempo. O Direito precisa ser claro, pois da sua clareza depende a sua força de convencimento e a sua própria legitimidade perante a sociedade. No Brasil, em um momento em que a política parece ansiosa por capturar todo e qualquer assunto, polarizando-o naturalmente por conta da divisão do país, o Direito precisa mostrar toda sua racionalidade para ser respeitado. No fla-flu ideológico, a regra deve ser clara. Faz-se necessário, mais do que nunca, ser didático.

Desafios do STF

A nova gestão que tomou posse no STF na última semana não poderia ser mais preparada para enfrentar esse desafio. Os novos presidente e vice-presidente da Suprema Corte brasileira são, antes de tudo, professores. Sua trajetória acadêmica não apenas os precede, mas se mantêm. Não há na Universidade do Estado do Rio de Janeiro docente mais didático do que Luís Roberto Barroso, professor titular de Direito Constitucional. Sua capacidade de explicar aos alunos os assuntos mais complexos em linguagem simples e coloquial reflete o verso de Manuel Bandeira que o ministro cita, há mais de 20 anos, nas salas de aula: “Só não fui claro quando não pude”.[7]

O exemplo do cabecel, mencionado no seu discurso, não poderia ter sido mais feliz. Calou fundo mesmo nos civilistas, que, versados em normas de origem secular, herdadas da Roma Antiga, se apegam facilmente a expressões vetustas. Uma exceção estava ali, tomando posse naquela mesma cerimônia: o vice-presidente, ministro Luiz Edson Fachin, professor titular de Direito Civil da Universidade Federal do Paraná, sempre recusou o tecnicismo fechado de uma ciência jurídica laboratorial.

Tendo integrado na juventude o mesmo movimento cultural progressista do poeta Paulo Leminski,[8] o ministro Fachin sempre rejeitou os formalismos e lutou por um direito mais sensível à realidade concreta da sociedade brasileira. Muito antes de chegar ao STF, escreveu: “O grande desafio é superar um velho problema, a clivagem abissal entre a proclamação discursiva das boas intenções e efetivação da experiência. Esse dilema, simploriamente reduzido ao fosso entre a teoria e a prática, convive diuturnamente na educação jurídica. Compreendê-lo corresponde a fazer de uma lei instrumento de cidadania na formação para o Direito, nas salas de aulas e de audiências, no acesso democrático ao Judiciário, e nos espaços públicos e privados que reclamam por justiça, igualdade e solidariedade”.[9]

Voltamos, enfim, a Hermes, cujo caduceu continha duas serpentes, que simbolizavam a sabedoria, e um par de asas, que retratava a diligência. As duas virtudes são necessárias para assegurar o diálogo no país. O papel do STF nesse particular é indisputável. Não importa sob qual governo, ou com qual partido, o Poder Judiciário, o Poder Legislativo e o Poder Executivo têm o dever constitucional de dialogar, à luz do Sol e com a participação popular.

A linguagem acessível assume, nesse cenário, uma importância decisiva. Independentemente da própria ideologia política, qualquer pessoa há de concordar que opiniões e escolhas devem ser fundamentadas. Explicar suas razões ao outro é um gesto de amor ao próximo. Explicar suas razões a todos é um gesto de amor ao Brasil e à democracia.

Fonte: Jota

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NOTAS

[1] A íntegra do discurso está disponível em www.stf.jus.br (28.9.2023).

[2] J. M. Carvalho Santos, Código Civil Brasileiro Interpretado, vol. IX, Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1986, p. 84.

[3] “Art. 93. (…)IX – todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação”.

[4] “Entenda a decisão sobre ‘coisa julgada’ na área tributária tomada pelo STF” (www.stf.jus.br, 10.2.2023).

[5] “STF invalida ampliação de impedimento de juízes” (www.stf.jus.br, 21.8.2023).

[6] A importância do tema pode ser medida pelo número crescente de iniciativas que combinam conhecimentos do campo da Comunicação e do Direito. Veja-se, a título ilustrativo, o curso online que está sendo atualmente ministrado por André Gustavo Corrêa de Andrade junto ao Knight Center for Journalism in the Americas, da Universidade do Texas, com o apoio da UNESCO: “O Marco Jurídico Internacional da Liberdade de Expressão, Acesso à Informação e Proteção dos Jornalistas”. Para mais informações, ver: www.journalismcourses.org/pt-br/course/o-marco-juridico-internacional-da-liberdade-de-expressao-mooc. Na mesma toada, ver a obra Direito e Mídia: Tecnologia e Liberdade de Expressão (Editora Foco, 2022), que tive a honra de ser convidado a coordenar ao lado de Bruno Terra de Moraes e Chiara Spadaccini de Teffé.

[7] “Aproveito a ocasião para jurar que jamais fiz um poema ou verso ininteligível para me fingir de profundo sob a especiosa capa de hermetismo. Só não fui claro quando não pude  fosse por deficiência ou impropriedade de linguagem, fosse por discrição.” (Itinerário de Pasárgada, in Poesia Completa e Prosa, Rio de Janeiro: Companhia José Alencar, 1974, p. 81).

[8]Estadão, “O ‘marginal’ Edson Fachin” (18.3.2021).

[9] Luiz Edson Fachin, Questões do direito civil brasileiro contemporâneo, Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 4.

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