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Mitos do Direito Econômico: o Direito Econômico como perversão
GEN Jurídico
20/09/2019
A quase totalidade das teorias do Direito Econômico forjadas antes da década de 90 do século XX, sejam as que pretendiam explicar o surgimento do Direito Econômico, sejam as que tentavam explicar o papel do Estado na economia capitalista, tornaram-se subitamente defasadas, insuficientes, inadequadas mesmo para explicar o fenômeno da ação do Estado numa economia profundamente transformada.
Para entender por que as doutrinas tradicionais de Direito Econômico perderam sua vitalidade, é preciso falar um pouco da superação de três mitos que justificadamente atormentavam a mente de economistas e juristas ao longo do século XX. O primeiro mito é o de que a Intervenção do Estado na economia seria a negação do capitalismo, seria um desvio de rota, uma exceção, uma deformação do modo de produção,[5] ou ainda a sua socialização. Confira mais sobre o tema de acordo com a obra Direito Econômico – Do Direito Nacional ao Direito Supranacional:
O primeiro mito – Direito Econômico como perversão
Apenas hoje é possível entender com maior clareza as oscilações do papel do Estado no sistema capitalista. Velhas concepções do Direito Econômico foram muito prejudicadas nesse aspecto. Não se pode culpá-las. Somente puderam explicar o mundo diante dos fatos que se apresentavam então. Fernand Braudel disse que “há uns cinquenta anos as ciências humanas descobriram uma verdade, ou seja, que toda a vida dos homens flutua, oscila, ao sabor dos movimentos periódicos, infinitamente repetidos”.[6]
Em termos macroscópicos, hoje é possível perceber-se que a ação do Estado no modo de produção capitalista oscila como um pêndulo, entre a sua atividade mais intensa e a sua retração, privilegiando-se ora o intervencionismo, ora a liberdade de iniciativa.[7] Antigas teorias do Direito Econômico não tiveram o privilégio de contemplar uma oscilação completa do pêndulo, fato que levou 200 anos para se concluir.
Por isso, os precursores do Direito Econômico apenas podiam especular sobre os rumos que a economia e o Estado adotariam, mas não podiam ter certeza disso.Revendo tais especulações, destacam-se algumas grandes correntes, impregnadas de ideologia, e que mobilizaram o debate político e econômico durante décadas. Para duas dessas correntes, as mudanças do modo de produção capitalista levariam ao colapso do sistema. Anticapitalistas quiseram ver no fracasso do Welfare State, ou seja, o máximo estágio do intervencionismo estatal, a compro-vação da insuficiência do sistema.
Já uma segunda corrente, de simpatizantes do capitalismo, denunciava o “erro”: nunca deveríamos ter-nos desviado da rota do livre mercado. Para os primeiros, portanto, era o capitalismo que era incorrigível, apontando para a necessidade de se instituir um novo modo de produção. Para os segundos, o capitalismo somente poderia funcionar satisfatoriamente com liberdade de ação empresarial e pouco Estado.
Se ainda é cedo para dizer que o prognóstico do colapso falhou, dado que não podemos afirmar historicamente que o sistema atingiu seu ponto crítico,[8] podemos afirmar que o pêndulo atingiu o ápice da intervenção estatal no capitalismo com o Welfare State, o Estado do Bem-Estar Social. E refluiu.
Ao atingir o ápice do intervencionismo estatal, no final do século XX, o sistema nem ruiu, nem deixou de ser capitalista. Ao contrário, posto em xeque pelas crises fiscais e pela insuficiência de recursos públicos para a dinamização da economia, o Estado capitalista recorreu à estratégia de ceder espaço à iniciativa privada. O pêndulo retornou em direção ao ponto de partida do capitalismo liberal, para aquele remoto contexto em que a sociedade acreditava que os problemas sociais seriam resolvidos com competição, com liberdade empresarial, com abstenção estatal.[9]
A crise do Estado Providência, que marcou os últimos 20 anos do século XX, não levou, portanto, a mais intervenção do Estado na economia. Isso representou, e convém enfatizar, a ruptura com uma tradicional sucessão de diagnósticos até então produzidos, desde os primórdios do sistema. De que ruptura estou falando?A evolução histórica do capitalismo, em 200 anos, sempre apontou no sentido de que as crises estruturais eram remediadas por mais ação estatal. Se não se pode falar em termos históricos como uma evolução linear – e inegavelmente as intempéries conjunturais trazem muitas exceções a regras gerais –, isso não impede que se constate que a participação estatal no universo econômico apenas fez aumentar em quantidade e intensidade desde a Revolução Industrial inglesa até os anos 1980 do século XX.
Esse fato novo na história do capitalismo é que precisa ser analisado com grande proveito para o entendimento do Direito Econômico. Pela primeira vez, em termos estruturais, reagindo a uma grave crise econômica e social, o sistema deu mostras de que a sobrevivência dependeria de um retorno às origens liberais. O mito de que a intervenção estatal era uma exceção à regra, mesmo uma perversão do jogo, dissolve-se bruscamente.
As evidências são por demais claras: a maior presença do Estado na economia capitalista é em regra uma demanda do próprio sistema, assim como sua eventual retração. A intensidade da ação econômica estatal é uma variável influenciada por incontáveis fatores, mas responde claramente a anseios de manutenção do próprio regime de mercado.Se havia dúvidas fundadas sempre que o Estado avançava um pouco mais no domínio econômico (estamos deixando o capitalismo e entrando no socialismo, num avanço linear e irreversível?), hoje está claro que o movimento do intervencionismo estatal era cíclico e não tendia a negar o próprio sistema.
Nesse aspecto, todas aquelas correntes teóricas de cepa liberal radical no direito encontram-se enfraquecidas. Dos debates na Suprema Corte norte-americana sobre o verdadeiro significado da Constituição (se decorreria da vontade dos founding fathers ou se oscilaria com o passar do tempo) até os relativamente recentes ataques à constitucionalidade de planos econômicos no Brasil, muito do que se discutiu então se tornou defasado.
Os primeiros julgamentos, nos Estados Unidos, das políticas econômicas decorrentes do New Deal realçaram sempre o caráter abstencionista do Estado na época em que a Constituição desse país fora promulgada. E que, se o espírito do constituinte, os pais fundadores da Constituição, era liberal na economia, não seria tolerável que a mesma letra fosse interpretada para permitir intervenção estatal. Posteriormente, a Suprema Corte reverteu a tendência jurisprudencial para admitir que a intervenção do Estado pode ser tida como due process of law.
Na vigência da Constituição brasileira de 1946, Francisco Campos defendia uma interpretação restritiva do seu art. 146, entendendo que a única forma constitucionalmente admissível de intervenção estatal seria o monopólio. San Tiago Dantas, ao contrário, pugnava por uma maior amplitude de poderes para a intervenção do Estado no domínio econômico.10 Nos anos 1980-90, no Brasil, os sucessivos planos econômicos foram levados aos tribunais sob a alegação de inconstitucionalidade. Sustentava-se que o princípio da liberdade de iniciativa era o mais importante dentre os princípios constitucionais, por fundar a essência do capitalismo. Qualquer relativização desse princípio constituiria uma afronta à Constituição.
Apesar de alguns atos contidos nos planos econômicos terem sido julgados inconstitucionais, não preponderou a argumentação de que haveria uma hierarquia de princípios na Constituição brasileira. No momento em que vivemos, está fora de questão se o Estado pode ou não intervir no domínio econômico. Ele pode e deve fazê-lo, dentro de certos limites que a própria Constituição assinala.
A questão não é simples e, mais adiante, reservarei um espaço para analisá-la de forma mais ampla. Mas é fato incontestável que as oscilações pendulares da ação estatal no capitalismo revelam que não há perversão do sistema nem quando o Estado aumenta sua interferência na economia, nem quando diminui.
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