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FINANCEIRO E ECONÔMICO
Meritocracia hereditária

Ana Frazão
04/10/2024
A questão da herança sempre foi um ponto sensível para os liberais clássicos. No seu livro sobre princípios de economia política, John Stuart Mill[1], embora considerasse que a liberdade de iniciativa e a propriedade privada fossem a regra geral, chegou a defender restrições ao direito de herança, propugnando que os pais deixassem o razoável para os filhos e que o excedente fosse aplicado em benefício da comunidade.
Mais de um século depois, John Rawls[2], ao delimitar a teoria da justiça que seria um divisor de águas para as discussões mais importantes do liberalismo contemporâneo, afirmou que concentrações de poder econômico podem se mostrar extremamente prejudiciais para a equidade política e para a igualdade de oportunidades, o que justificaria restrições ao direito de herança.
Em sua obra sobre justiça e equidade, Rawls[3] voltou a se debruçar sobre o tema, sustentando a utilização da tributação com a finalidade de corrigir, de forma gradual e contínua, a distribuição de riqueza, evitando a concentração de poder econômico que comprometesse a liberdade e a igualdade de oportunidades.
É interessante notar que, mesmo separados por mais de um século, ambos os autores convergiam em suas preocupações com a questão da herança, ainda que não pudessem antever os resultados da acumulação de riquezas decorrentes da ausência de um tratamento adequado do problema.
Como demonstrou recente reportagem do G1[4], apenas o estado de Santa Catarina tem hoje 34 bilionários na lista da Forbes, dos quais 29 são herdeiros. Em outras palavras, os novos bilionários, em sua avassaladora maioria, assim o são não em virtude de seus talentos, esforços ou criação de riqueza, mas tão somente por serem herdeiros. Daí a reportagem mencionar a fábrica de bilionários, que acumulam juntos um total de R$ 139,7 bilhões, sendo a brasileira Livia Voigt a bilionária mais jovem do mundo.
Esse estado de coisas, além de revelar o colapso de um sistema que se pretende meritocrático – pois nascer em uma família rica é algo completamente arbitrário, do ponto de vista moral, já que quem herda não tem mérito algum em fazê-lo –, ainda tem sido visto como um fator importante de manutenção da desigualdade.
Vale ressaltar que, embora o problema tenha dimensão mundial, apresenta contornos muito específicos no caso brasileiro, como bem explica o professor Ricardo Costa de Oliveira no episódio Meritocracia Hereditária no Brasil, do podcast Direito e Economia[5].
Tributação sobre renda e herança
Diante desse cenário é fundamental repensar a tributação sobre renda e sobre herança como um meio para resolver esses problemas. Um passo importante nesse sentido foi a recente Declaração do Rio de Janeiro ocorrida em 25 e 26 de julho[6], ocasião em que, pela primeira vez, todos os membros do G20 concordaram com o fato de que precisam consertar a forma como os super-ricos são tributados, afirmando o compromisso de fazê-lo. Tais discussões certamente envolvem a tributação das grandes fortunas e também da herança.
Com efeito, a mensagem principal da Declaração do Rio de Janeiro é a de que todos os cidadãos precisam contribuir com a justa fração nos tributos, razão pela qual estratégias agressivas de não pagamento ou de evasão tributária normalmente utilizadas pelos super-ricos podem minar a justiça dos sistemas tributários. Logo, promover políticas tributarias efetivas, justas e progressivas é desafio urgente a ser enfrentado por meio de cooperação tributária internacional e por reformas domésticas.
Em recente artigo, Gabriel Zucman[7], um dos maiores especialistas sobre o tema, mostra que taxar os super-ricos é possível e mais necessário do que nunca. Afinal, independentemente da nacionalidade, os super-ricos do mundo compartilham duas semelhanças: a grande maioria é homem e tipicamente pagam muito menos tributos, em termos de proporção com seus rendimentos, do que os seus empregados e os trabalhadores da classe média em geral.
Com base em dados recentes, Zucman aponta que apenas 3.000 pessoas angariaram US$ 14,4 trilhões em riquezas, o que equivale a 13% do PIB mundial. Trata-se de um salto extraordinário, quando se verifica que, em 1993, os bilionários controlavam menos do que 3% do PIB mundial. Entretanto, além de quadruplicarem sua influência econômica nas últimas décadas, também aumentaram a sua influência política.
A questão da influência política tem particular relevo pois, como bem expõe Zucman, maior equidade fiscal também é algo positivo para a democracia. Afinal, sem as adequadas receitas tributárias, os governos não podem garantir serviços adequados como educação, saúde e proteção social, assim como não podem responder a problemas mais amplos, como a crise climática.
O problema dos herdeiros agrava a situação, pois tais indivíduos nem criaram a riqueza de que dispõem nem estarão sujeitos, sem as devidas reformas, a regras que possam minimamente assegurar justiça tributária. Assim, serão duplamente privilegiados, pois não serão onerados nem no ganho da riqueza nem na sua fruição.
Apesar das controvérsias a respeito das medidas que poderiam implementar maior justiça tributária, é forçoso reconhecer que há várias propostas sérias no debate. O próprio Zucman, no paper Blueprint for a Coordinated Minimun Effective Taxation Standards for Ultra-High-Net-Worth Individuals[8], propõe um standard de taxação efetiva que inclui uma tributação de 2% da riqueza desses 3.000 bilionários. Tal proposta, além de gerar a significativa receita em torno de 200 a US$ 250 bilhões por ano, também corrigiria a injustiça estrutural dos sistemas tributários contemporâneos.
Isso mostra que a questão da tributação dos super-ricos e especialmente dos herdeiros chegou a um grau de maturidade em que não devemos mais discutir se precisamos tributar, mas sim como devemos tributar. A Declaração do Rio é muito significativa nesse sentido.
Vale ressaltar, por fim, que tal proposta não se encontra necessariamente vinculada à esquerda ou a tendências socialistas pois, como se demonstrou no início do texto, a tributação equitativa sempre foi defendida por liberais, diante de suas claras repercussões sobre a igualdade de oportunidades e a própria democracia.
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NOTAS
[1]MILL, John Stuart.Principios de Economia Política con algunas de suas aplicaciones a la Filosofia Social.Tradução de Teodoro Ortiz. Cidade do México: Fondo de Cultura Mexicana, 2001, p. 213.
[2]RAWLS, John.Teoria de la Justicia. Tradução de Maria Dolores Gonzales. Madri: Fondo de Cultura Económica de España, 1997, pp. 258-259.
[3]RAWLS, John.Justicia como Equidad. Tradução de M.A. Rodilla. Madri: Tecnos, 1999, p. 147.
[4]https://g1.globo.com/sc/santa-catarina/noticia/2024/08/31/sc-34-bilionarios-lista-forbes-29-herdeiros-fabrica-bilionarios.ghtml
[5]https://open.spotify.com/episode/11qvI8N7BKL2YGGrDnYYWh?si=7RdLPCGYQQ2dnqP0kLD0Bw&nd=1&dlsi=df0c35daae2b4120
[6]https://agenciagov.ebc.com.br/noticias/202407/declaracao-sobre-cooperacao-tributaria-internacional-sera-documento-historico-diz-haddad
[7]https://www.project-syndicate.org/commentary/billionaire-wealth-tax-progress-made-at-the-g20-must-continue-by-gabriel-zucman-2024-08
[8]https://www.taxobservatory.eu/publication/a-blueprint-for-a-coordinated-minimum-effective-taxation-standard-for-ultra-high-net-worth-individuals/