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INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL GENERATIVA E AS RECOMENDAÇÕES DO CONSELHO FEDERAL DA OAB
Roberto Beijato Junior
27/11/2024
Não é novidade que a inteligência artificial é tema dos mais comentados na atualidade. Sua utilização pelos advogados, escritórios de advocacia e pelo próprio Poder Judiciário constitui uma realidade inexorável em nossos tempos, de modo que não podemos ignorar suas funcionalidades ou mesmo visar bani-la dos meios jurídicos. Devem, contudo, ser profundamente estudadas e, seu uso, regulamentado de modo a preservar os pilares da atividade advocatícia, entre eles o sigilo profissional, a pessoalidade do serviço jurídico, sempre relembrando que a advocacia é alçada ao status de função essencial à Jurisdição estatal, nos termos do art. 133 da Constituição de 1988.
Neste espírito é que o Observatório Nacional de Cibersegurança, Inteligência Artificial e Proteção de Dados (ONCiber) – órgão criado pelo próprio Conselho Federal da OAB no dia 28 de maio de 2024 – encaminhou, em 16 de julho de 2024, um memorando ao presidente em exercício do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). O documento propõe diretrizes para o uso de IA Generativa na prática jurídica, um passo fundamental para alinhar a inovação tecnológica com os princípios éticos e legais do exercício da advocacia.
O memorando do ONCiber destaca a urgência de regular o uso de IA Generativa no contexto jurídico brasileiro. Ferramentas baseadas nessa tecnologia já são amplamente utilizadas em atividades como revisão de contratos, análise jurisprudencial e geração de documentos, transformando de modo definitivo a prática advocatícia. No entanto, o impacto dessas inovações vai além do aumento de eficiência e produtividade, envolvendo questões fundamentais de ética, segurança e transparência. São estes, justamente, os pontos que o documento visa abordar.
Como se pode observar do texto[1], a proposta não se limita a aspectos técnicos; ela busca assegurar que o uso de IA Generativa respeite os valores e princípios centrais da advocacia. Isso inclui proteger o sigilo profissional, evitar decisões enviesadas e garantir que os advogados mantenham controle sobre os processos judiciais, sem delegar integralmente à tecnologia as atividades que lhes são privativas.
Neste sentido, é relevante frisarmos que ao tratarmos da inteligência artificial, estamos, a bem da verdade, tratando apenas de uma ferramenta para operacionalização das atividades que podem ser desempenhadas por um advogado ou escritório de advocacia. Em nada o seu uso autoriza a abdicação dos ditames éticos básicos da atividade advocatícia. Daí porque se possa afirmar que “a IA é compreendida como instrumento para operacionalização do próprio direito, com a adoção de aplicações para a prática das mais diversas atividades jurídicas”.[2]
Os especiais cuidados se dão, em particular, ao tratarmos de sistemas de inteligência artificial generativa. Isto porque os sistemas generativos de IA se tratam de sistemas complexos em que a inteligência artificial possui capacidade de aprendizado e desenvolvimento de novos conteúdos a partir dos quais é abastecida e/ou tem acesso. É o caso de sistemas como o chatgpt, entre outros. Perceba-se, por exemplo: um sistema de IA generativa em funcionamento para um escritório de advocacia terá uma base de dados a partir da qual logrará realizar as mais diversas atividades operacionais. Contudo, de igual modo será abastecida pelos próprios advogados que, ao solicitarem tarefas e entregarem dados ao sistema aumentarão sua base de aprendizado e de realização. Daí porque há de se ter elevado cuidado ao compartilhar com estes sistemas dados pessoais e sigilosos dos clientes, na medida em que estes dados passarão a integrar a base de dados do sistema e serão incorporados à sua capacidade de aprendizado de maneiras imprevisíveis.
No que concerne ao sigilo profissional, é relevante relembrar que todos os fatos que o advogado tenha conhecimento em virtude da profissão estarão amparados pelo dever de sigilo, nos termos do art. 35 do Código de Ética é Disciplina, que somente cederá nas restritas hipóteses de justa causa dispostas pelo art. 37 do mesmo diploma normativo.
O sigilo se trata de um dever indispensável atrelado à profissão, de modo que sequer demanda pedido do cliente. Daí porque o item 2.1. do memorando elaborado pelo ONCiber sugira que o advogado adote especial cautela ao inserir dados que possam tornar o cliente identificável, assim como sugere que o advogado, ao fazer uso de tais sistemas, seja transparente com o cliente, informando-o sobre o uso, seu contexto e limitações diante do caso concreto (item 4 do memorando). Visa-se conciliar, assim, o uso de sistemas de IA generativa com um dos pilares da advocacia, o sigilo profissional.
Outro ponto bem apontado pelo memorando diz respeito à eticidade das práticas advocatícias, conciliando, assim, o uso de tais sistemas com os imperativos do art. 2º, parágrafo único, inciso II, do Código de Ética e Disciplina, que impõem ao advogado a atuação com honestidade, lealdade, veracidade e boa fé, na linha dos deveres processuais já atribuídos pela legislação processual comum. Daí dizer que, ao coletar informações, tais como, precedentes judiciais, súmulas, jurisprudência, trechos doutrinários etc., o advogado tem o dever de aferir a veracidade do conteúdo, respondendo por seu teor.
Por fim, a atividade advocatícia é fundada na confiança recíproca entre advogado e cliente, de tal maneira que se tratam de atividades de cunho personalíssimo. Estas atividades devem ser supervisionadas diretamente pelo advogado. Frise-se: a inteligência artificial deve ser vista sempre como uma ferramenta e não como um substituto ao profissional, de tal modo que o próprio memorando, em seu item 3.3., estabelece que “a dependência excessiva de ferramentas de IA consistente com a prática da advocacia não pode substituir a análise realizada pelo advogado”.
Dito isto, é certo que o uso de IA Generativa na advocacia oferece benefícios claros, podendo ser pontuados, entre outros:
1. Automação de tarefas repetitivas: A IA pode revisar contratos, realizar análises jurisprudenciais e gerar documentos jurídicos com rapidez e precisão, permitindo que os advogados se concentrem em tarefas estratégicas e de cunho intelectual.
2. Acesso à justiça: Ferramentas de IA podem ampliar o acesso à assistência jurídica, especialmente para pessoas ou organizações que enfrentam barreiras financeiras.
3. Eficiência e redução de custos: Escritórios de advocacia e departamentos jurídicos podem reduzir despesas operacionais enquanto aumentam a produtividade.
4. Apoio analítico: Sistemas de IA podem identificar padrões e tendências em grandes volumes de dados, oferecendo insights valiosos para casos complexos.
Por outro lado, os riscos associados ao uso desregulado de IA Generativa não podem ser ignorados, de modo que, entre outros, podemos pontuar os seguintes:
1. Privacidade e sigilo profissional: A manipulação de dados confidenciais por sistemas de IA pode comprometer a relação de confiança entre advogado e cliente.
2. Decisões enviesadas: Algoritmos treinados em dados históricos podem perpetuar discriminações ou desigualdades.
3. Falta de transparência: A opacidade dos algoritmos pode dificultar a identificação de erros e a responsabilização em casos de falhas.
4. Dependência excessiva da tecnologia: A delegação de decisões críticas à IA pode levar à perda de autonomia e responsabilidade humana.
Assim sendo, é possível concluirmos que a regulamentação da IA Generativa é uma necessidade urgente no setor jurídico. Iniciativas como a adotada pelo Conselho Federal da OAB são fundamentais para garantir que a tecnologia seja uma aliada na promoção da justiça, respeitando os princípios éticos e legais da advocacia.
A adoção de diretrizes claras, como as propostas pelo ONCiber, é essencial para mitigar os riscos e maximizar os benefícios da IA Generativa. O momento é propício para que o Brasil, liderado por instituições como a OAB, assuma um papel de destaque na regulamentação de tecnologias emergentes. Isso permitirá que a advocacia se modernize, sem dispensar seus valores centrais, garantindo que a inteligência artificial seja uma ferramenta a serviço da advocacia, mas jamais substitua os advogados.
[1] A íntegra do texto pode ser consultada pelo leitor no seguinte link: https://www.oab.org.br/noticia/62711/confira-versao-final-da-recomendacao-do-cfoab-sobre-o-uso-de-ia-na-pratica-juridica
[2] RAMOS, Janine Vilas Boas Gonçalves. Inteligência artificial no Poder Judiciário brasileiro: projetos de IA nos tribunais e o sistema de apoio ao processo decisório judicial. São Paulo: Dialética, 2022. p. 58 – 59.