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Discriminação política no mercado de trabalho

Ana Frazão
22/10/2025
As últimas eleições presidenciais brasileiras demonstraram que o assédio eleitoral, longe de ser um assunto já superado, continua a ser um grave problema, com novas formas de manifestação e adaptações do “voto de cabresto”. Infelizmente muitos empregadores ainda continuam a acreditar que podem e devem influenciar as convicções políticas e o exercício do direito de voto de seus empregados.
O assédio eleitoral e a influência política nas relações de trabalho
Não é sem razão que o novo Presidente do Tribunal Superior do Trabalho, Luiz Philippe Vieira de Mello Filho, declarou em seu discurso de posse que uma de suas prioridades é a contenção desse tipo de prática ilícita, “uma chaga que ameaça retornar à nossa história política, agora com diferentes facetas”[1].
Com efeito, no âmbito do mercado de trabalho, a discriminação política pode assumir outras formas que não apenas assediar empregados para que votem no candidato do empregador. Ultimamente temos visto inúmeras iniciativas que causam grande preocupação, até porque são publicamente alardeadas e divulgadas – não raro com muito orgulho – como se fossem condutas legítimas por parte de empregadores.
O caso Charlie Kirk e o impacto das demissões por opinião política
Nesse sentido, a morte do ativista de extrema direita Charlie Kirk funcionou como um gatilho para o problema, uma vez que diversos empregadores se sentiram no direito de demitir seus empregados em razão de comentários contra o ativista, sob o fundamento de que seriam extremistas[2].
Trata-se de processo semelhante ao que ocorreu nos Estados Unidos[3], valendo ressaltar que, no Brasil, a patrulha digital para identificar e sancionar empregados contou inclusive com a ajuda direta de parlamentares, que incentivaram uma verdadeira caçada contra empregados por suas manifestações políticas.
Manifesto Gelt Brasil e a hashtag #DemitaExtremistas
Foi esse o contexto que inspirou o empresário Tallis Gomes – o mesmo do “Deus me livre de uma mulher CEO”[4] – a lançar nas redes a hashtag #DemitaExtremistas e o Manifesto Gelt Brasil. Como mostra reportagem da Intercept[5], embora o texto seja ambíguo e não recomende explicitamente a demissão por motivação política, é essa a conclusão que poderia decorrer de sua interpretação sistemática, sobretudo a partir de frases como “não podemos sustentar, com nossos empregos, recursos ou influência, aqueles que celebram a destruição e o mal” e “não financiaremos nem empregaremos extremistas que preguem ódio ou violência”.
O abaixo-assinado teve grande repercussão e angariou um número considerável de assinaturas em pouco tempo, aí incluídos muitos pequenos e médios empresários. Por essa razão, é fundamental entender os riscos de que iniciativas assim estejam refletindo, na verdade, uma abusiva discriminação política no mercado de trabalho.
Limites entre liberdade de expressão e discriminação política
Inicialmente, é importante deixar claro que não estou aqui defendendo apologia ao crime e comemoração de atos bárbaros como o assassinato de Kirk, pois parto da premissa de que todos aqueles que cometem ilícitos ou crimes por meio da liberdade de expressão devem estar sujeitos às devidas responsabilidades. O grande problema é saber quais são os limites do direito de manifestação política e se cabe ao empregador, a partir de seus julgamentos individuais do que pode ser extremista ou não, demitir empregados por conta de tal motivo.
No caso de Kirk, é forçoso reconhecer que o ativista era, ele próprio, um extremista, defendendo irrestritamente o porte de armas e afirmando que as vidas inocentes perdidas em virtude do fácil acesso a armas nos Estados Unidos seriam um preço justo a pagar para a manutenção do direito “sagrado” de ter e usar armas.
Por essa razão, houve uma enxurrada de comentários no sentido de que Kirk morreu em decorrência de uma situação que ele próprio defendeu e incentivou. Ocorre que tais manifestações, em princípio, se enquadram no exercício regular de liberdade de expressão, sem que se identifique extremismo, apologia ao crime e comemoração de assassinatos.
Mesmo em relação aos comentários mais ácidos, a questão, como já se adiantou, é saber o que é extremismo político, em que medida a opinião política pode ser causa de demissão não discriminatória e se são os empregadores partes legítimas para fazer esse tipo de juízo, especialmente diante de condutas praticadas fora do ambiente de trabalho e que não necessariamente nele interferem.
O papel do STF e os precedentes sobre liberdade de expressão
Com efeito, tratar dos limites da liberdade de expressão não é fácil. Basta lembrar que o Supremo Tribunal Federal, por diversas vezes, teve que considerar como exercício regular da liberdade de expressão manifestações que foram tidas como ilícitas ou mesmo como apologia ao crime. Um dos casos mais paradigmáticos foi o da chamada Marcha da Maconha, considerada constitucional, sob o fundamento de que se manifestar pela descriminalização de uma conduta não se equipara à apologia ao crime[6].
Isso mostra o quanto estamos em uma seara de difíceis julgamentos, problema que se acentua diante dos vieses dos empregadores. Nesse sentido, independentemente do caso Kirk, o próprio Tallis Gomes já se vangloriava de não contratar esquerdistas[7], o que já sugere os critérios que ele provavelmente utilizaria para fazer julgamentos do que pode ou não ser considerado extremismo político de esquerda.
Declarações de empresários e a discriminação política explícita
Aliás, sobre esse tema, a todo momento, aparecem nas redes sociais declarações de empresários que orgulhosamente alardeiam que não contratam esquerdistas e nem gostariam de tê-los como clientes[8], o que é mais um tipo de discriminação política abusiva, em total contrariedade à Constituição Brasileira, aos propósitos da Lei 9.029/95, às convenções da Organização Internacional do Trabalho – OIT e até mesmo à LGPD.
O que diz a lei sobre a discriminação política no emprego
Com efeito, além de a Constituição não admitir discriminações ilícitas ou abusivas, tem-se no Brasil uma lei – a Lei 9.029/95 – que, restringindo a possibilidade de demissão sem justa causa, veda, para efeitos do acesso ou da manutenção da relação de emprego, qualquer discriminação abusiva. Seu art. 1º. prevê que “fica proibida a adoção de qualquer prática discriminatória e limitativa para efeito de acesso a relação de emprego, ou manutenção, por motivo de sexo, origem, raça, cor, estado civil, situação familiar ou idade.”
Verdade seja dita que a lei não menciona expressamente a questão da orientação política, mas nem precisaria fazê-lo, pois isso decorre da Constituição Federal e dos próprios propósitos da iniciativa legislativa. Acresce que a Convenção 111, da OIT, define a discriminação política como “qualquer distinção, exclusão ou preferência com base na raça, cor, sexo, religião, opinião política, nacionalidade ou origem social que anule a igualdade de oportunidades ou tratamento no emprego ou ocupação. (grifos nossos)
A mencionada convenção é a inspiração da Resolução 355 do Conselho Superior da Justiça do Trabalho que, em seu art. 2º., considera assédio eleitoral “toda forma de distinção, exclusão, ou preferência fundada em convicção ou opinião política no âmbito das relações de trabalho, inclusive no processo de admissão.” Em outras palavras, não se pode deixar de contratar alguém em razão da sua opinião política.
Resolução do CSJT e o conceito ampliado de assédio eleitoral
Na verdade, a resolução do CSJT amplia a noção de assédio eleitoral, esclarecendo que as pressões relacionadas ao direito de voto do empregado são apenas um exemplo da conduta ilícita. Daí afirmar o parágrafo único do mencionado art. 2º. que “configura, igualmente, assédio eleitoral a prática de coação, intimidação, ameaça, humilhação ou constrangimento, no intuito de influenciar ou manipular o voto, apoio, orientação ou manifestação política de trabalhadores e trabalhadoras no local de trabalho ou em situações relacionadas ao trabalho.”
LGPD e a proteção contra discriminação por opinião política
Se havia alguma dúvida sobre a ilicitude de discriminações indevidas com base na orientação política – em todos os espectros, aí incluído o mercado de trabalho – a Lei Geral de Proteção de Dados – LGPD esclareceu de vez a questão, ao definir, no seu art. 5º., II, como dado pessoal sensível “dado pessoal sobre origem racial ou étnica, convicção religiosa, opinião política, filiação a sindicato ou a organização de caráter religioso, filosófico ou político, dado referente à saúde ou à vida sexual, dado genético ou biométrico, quando vinculado a uma pessoa natural.”
Como a definição de dado pessoal sensível está vinculada precisamente ao potencial de discriminações abusivas, é inequívoco que a opinião política é critério que proíbe o tratamento diferenciado.
O perigo da polarização e o dever de respeito nas relações de trabalho
Dessa maneira, é fundamental alertar para esse tipo de problema, pois a discriminação política no ambiente de trabalho, além de ilícita, ainda reforça a polarização em que nos encontramos, tornando mais difíceis os caminhos para que nos tornemos uma sociedade civilizada e plural, em que possamos tolerar, respeitar e conviver com as diferenças dentro e fora do ambiente do trabalho.

LEIA TAMBÉM
NOTAS
[1] https://www.tst.jus.br/-/vieira-de-mello-filho-assume-tst-com-defesa-da-democracia-da-liberdade-e-do-trabalho-decente
[2] https://g1.globo.com/trabalho-e-carreira/noticia/2025/09/16/os-funcionarios-que-estao-sendo-demitidos-por-postagens-sobre-o-assassinato-de-charlie-kirk.ghtml
[3] https://www.cnnbrasil.com.br/economia/negocios/eua-tem-demissoes-por-postagens-sobre-morte-de-charlie-kirk/
[4] https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/deus-me-livre-de-ceo-misogino
[5] https://www.intercept.com.br/2025/09/30/empresarios-manifesto-demitir-extremistas/
[6] STF, ADPF 187.
[7] https://www.metropoles.com/brasil/empresario-que-nao-contrata-esquerdista-disse-que-esquerda-e-nazista
[8] https://www.instagram.com/reel/DPmi8OPjUyV/