32
Ínicio
>
Artigos
>
Direito Digital
ARTIGOS
DIREITO DIGITAL
Das redes para os tribunais: o debate sobre a responsabilidade dos influenciadores digitais
Anderson Schreiber
07/02/2024
No último dia 18 de dezembro, a Operação Truque de Mestre prendeu, nos estados do Pará e de Pernambuco, oito influenciadores digitais que promoviam jogos de azar,[1] assim chamados aqueles nos quais “o ganho e a perda dependem exclusiva ou principalmente da sorte”.[2]
A operação não foi a primeira desse tipo. Em 19 de novembro, três influenciadores foram presos no Sul do Brasil pelo mesmo motivo.[3] Como se sabe, embora haja uma contínua discussão no país sobre a liberação ou não da exploração econômica de jogos de azar, tal prática é, hoje, vedada pela Lei das Contravenções Penais (Decreto-Lei 3.688/41).
Ainda assim, a divulgação de jogos de azar se tornou tão popular entre os influenciadores digitais que atualmente tramita na Câmara dos Deputados o PL 3915/2023, que se destina exatamente a proibir a sua divulgação, promoção ou endosso por influenciadores digitais ou artistas.
O Brasil não é o único país do mundo a se preocupar com a atividade dos influenciadores digitais. Em 2023, a França aprovou lei que regulamenta essa atividade, proibindo influenciadores digitais de veicular, por exemplo, propagandas que promovam tabagismo, cirurgias estéticas, produtos médicos e algumas modalidades de produtos financeiros. A nova lei francesa também limita a promoção de jogos de azar, que só pode ser feita em redes sociais que se mostrem capazes de limitar o acesso de menores de idade – o que é muito raro. As penalidades previstas pela lei francesa vão de multa de até € 300 mil à reclusão por até dois anos.[4]
A ausência de uma lei específica no Brasil não significa, entretanto, que influenciadores digitais não possam acabar sendo responsabilizados por suas atividades, o que já vem ocorrendo no campo do direito civil.
Jurisprudência sobre atuação de influenciadores digitais
Recentemente, a 3ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) entendeu que influenciadora digital que promoveu sorteio realizado por terceiro em suas próprias redes sociais era solidariamente responsável pelo descumprimento da obrigação de fazer consubstanciada na entrega do automóvel que havia sido objeto do sorteio, tendo em vista que “ao vincular a sua imagem e a sua página pessoal ao sorteio em questão, a corré participou do ato como se patrocinadora fosse, se valendo, inclusive, do alcance de sua rede social enquanto influenciadora digital”.[5]
Na mesma linha, o Juizado Especial Cível da Comarca de Barra Mansa, no Rio de Janeiro, concluiu que influenciadora digital era solidariamente responsável pela restituição do valor gasto por internauta para compra de aparelho celular em loja fraudulenta, que jamais entregou o produto, pois a atividade normalmente desenvolvida pela influenciadora implicaria “expor produtos de terceiros a venda, sob sua chancela e indiscutível influência, posto que sem ela, não teríamos a contratação do produto, pois por ser seguidora desta é que a ré comprou o direcionado produto”.[6] O referido juízo aplicou ao caso a norma contida no artigo 927, parágrafo único, do Código Civil, que, como se sabe, impõe responsabilidade objetiva por atividades de risco.[7]
Decisões como essas despertam, naturalmente, uma acesa controvérsia. Há quem veja aí uma indevida restrição das atividades dos influencers. Seja como for, tais decisões revelam uma tendência dos tribunais brasileiros a não enxergarem a atividade exercida pelos influenciadores digitais como um espaço de não direito ou mera prática diletante, e sim como uma atividade profissional que pode gerar consequências jurídicas.
Não custa lembrar, nessa direção, que o Código de Defesa do Consumidor determina, em seu artigo 36, que toda e qualquer publicidade seja “veiculada de tal forma que o consumidor, fácil e imediatamente, a identifique como tal.”[8] Assim, a mera inserção – muitas vezes quase escondida – das expressões “publi”, “publipost”, “parceria paga” ou equivalente podem não se afigurar suficientes para eximir os influenciadores digitais de responsabilidade. Também não parece que os tribunais brasileiros serão sensíveis a justificativas como “indico, mas não respondo” ou “eu divulgo, mas nunca joguei”, como disse recentemente um célebre influenciador após ser questionado sobre a divulgação de uma casa de apostas.[9]
Guia de Publicidade por Influenciadores Digitais
Na tentativa de garantir maior proteção aos consumidores, o Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar) lançou, em 2021, o Guia de Publicidade por Influenciadores Digitais, que apresenta orientações para aplicação das regras do Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária ao conteúdo comercial postado em redes sociais.[10]
Em setembro de 2023, a Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (Anbima) também publicou regras sobre a contratação de influenciadores digitais para publicidade de produtos de investimento. As regras foram aprovadas em audiência pública e já se encontram em vigor.[11]
As iniciativas são louváveis, pois oferecem um pouco mais de segurança não apenas para o público, mas para os próprios influencers. A autorregulamentação não deixa de ser um bom caminho para oferecer parâmetros específicos de atuação, especialmente diante da falta de lei específica sobre um tema. Todavia, a edição de uma lei geral sobre a atividade dos influenciadores digitais, como ocorreu na França, parece ser um passo necessário, de modo a unificar as diretrizes para o exercício desta profissão e traçar regras claras e objetivas sobre a possibilidade de responsabilização. Todo o movimento atualmente em curso no Brasil para a regulamentação das plataformas digitais também parece reforçar essa impressão.
O mais importante, contudo, é que a atuação dos influencers seja examinada sem estigmas e sem frivolidade: trata-se de uma atividade de extrema relevância na realidade atual, em que o ambiente digital, ao mesmo tempo em que se torna uma parte cada vez mais importante da vida, sofre verdadeira inundação de conteúdos, dificultando que o usuário comum se guie por si só. Some-se a isso o fato de que o ambiente digital é frequentado por um número cada vez maior de crianças e adolescentes, com idades cada vez menores.
Nesse contexto, a atividade dos influenciadores digitais deve ser levada cada vez mais a sério, o que inclui lhes assegurar a necessária liberdade, mas também lhes atribuir a inevitável responsabilidade de quem tem o poder de – como o próprio nome nos diz – influenciar as atitudes de outras pessoas.,
Fonte: Jota
VEJA AQUI OS LIVROS DO AUTOR!
LEIA TAMBÉM
- Inteligência artificial e a proteção de crianças e adolescentes: o caso dos fake nudes
- Aspectos jurídicos do gênero true crime
- Elis Regina e reconstrução digital póstuma
NOTAS
[1] “Jogo do Tigrinho: entenda a operação que prendeu influenciadores digitais no Pará” (G1, 19.12.2023).
[2] Trecho do artigo 50 da Lei das Contravenções Penais (Decreto-Lei 3.688/41).
[3] “De motoboy a proprietário de carros de luxo: veja como agia grupo de influenciadores do ‘Jogo do Tigre’ preso no Paraná” (G1, 3.12.2023).
[4] “França aprova lei para regular influencers em redes sociais, com pena até de prisão” (O Globo, 2.6.2023).
[5] TJSP, 3ª Câmara de Direito Privado, Apelação 1003494-26.2020.8.26.0624, Rel. Des. Viviani Nicolau, j. 26.9.2023.
[6] TJRJ, Juizado Especial Cível da Comarca de Barra Mansa, Processo 0019543-02.2019.8.19.0007, j. 29.3.2020.
[7] Código Civil: “Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo. Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.”
[8] “Art. 36. A publicidade deve ser veiculada de tal forma que o consumidor, fácil e imediatamente, a identifique como tal. Parágrafo único. O fornecedor, na publicidade de seus produtos ou serviços, manterá, em seu poder, para informação dos legítimos interessados, os dados fáticos, técnicos e científicos que dão sustentação à mensagem.”
[9] “Carlinhos Maia se defende após exposição do caso Blaze: ‘Divulgo, mas nunca joguei’” (IstoÉ, 18.12.2023).
[10] Disponível em: http://conar.org.br/pdf/CONAR_Guia-de-Publicidade-Influenciadores_2021-03-11.pdf
[11] Mais informações estão disponíveis em: https://www.anbima.com.br/pt_br/imprensa/anbima-publica-regras-para-a-contratacao-de-influenciadores-digitais-8A2AB28B8A8B0E1B018A8F476AE11C8F-00.htm