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Crime de Violência Política de Gênero e Competência Criminal

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Crime de Violência Política de Gênero e Competência Criminal

José Jairo Gomes

José Jairo Gomes

05/04/2024

Delineamento do crime de violência política de gênero

É crescente o aumento de casos de violência praticada contra pessoas do gênero feminino no ambiente político e em razão das atividades políticas por elas desenvolvidas. Um dos mais rumorosos ocorreu na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo: durante sessão plenária ocorrida em dezembro de 2020, o então Deputado Estadual Fernando Cury foi flagrado apalpando a lateral do corpo da também Deputada Isa Penna; tal fato levou o agressor a ser suspenso da Assembleia Legislativa, expulso do partido a que era filiado e pelo qual foi eleito, denunciado criminalmente pelo Ministério Público por assédio sexual e, finalmente, condenado pela Justiça. Muitos outros casos de comportamentos agressivos impulsionados por motivos políticos têm sido denunciados publicamente, destacando-se entre eles ameaças de agressões físicas e de violência sexual, prática de violência psicológica, assédio, humilhação, perseguição, ataques à honra e à dignidade.

Como resposta legislativa a tal fenômeno, a Lei nº 14.192/2021 introduziu no ordenamento legal um tipo penal específico, inserindo-o no art. 326-B do Código Eleitoral. Esse dispositivo define o crime de violência política de gênero e também matizada pela cor, raça ou etnia da vítima. Trata-se do delito de stalking praticado contra pessoas do gênero feminino nos âmbitos político e eleitoral.

O tipo legal do art. 326-B do CE apresenta o seguinte teor: “Assediar, constranger, humilhar, perseguir ou ameaçar, por qualquer meio, candidata a cargo eletivo ou detentora de mandato eletivo, utilizando-se de menosprezo ou discriminação à condição de mulher ou à sua cor, raça ou etnia, com a finalidade de impedir ou de dificultar a sua campanha eleitoral ou o desempenho de seu mandato eletivo”.

O objeto jurídico refere-se à proteção de pessoas do gênero feminino que se dedicam a atividades políticas, estendendo-se a proteção legal desde o período de campanha eleitoral até o exercício do mandato conquistado. Pretende-se assegurar que tais pessoas possam exercer plenamente os seus direitos políticos, e participar de maneira efetiva e ativamente do processo eleitoral e da vida política das comunidades em que atuam e do país, em todas as esferas de poder estatal, sem serem por isso importunadas, molestadas, constrangidas e perseguidas.

Já no caso de as ações ilícitas serem realizadas contra “detentora de mandato eletivo […] com a finalidade de impedir ou de dificultar […] o desempenho de seu mandato”, o tipo legal visa tutelar a honorabilidade no exercício do mandato público por pessoa do gênero feminino, a liberdade, independência e exercício pleno e seguro do mandato conquistado nas urnas, sem que por isso possa a mandatária ser importunada, molestada, constrangida, perseguida e coarctada no exercício de suas funções.

A propósito, a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher – Convenção de Belém do Pará (promulgada pelo Decreto nº 1.973/1996), garante a toda mulher “uma vida livre de violência, tanto na esfera pública como na esfera privada” (art. 3º), direito à igualdade de acesso às funções públicas e “a participar nos assuntos públicos, inclusive na tomada de decisões” (art. 4º, j), e o exercício livre e pleno de seus direitos políticos (art. 5º).

O crime é comum, podendo ser praticado por qualquer pessoa, do gênero masculino ou feminino, inclusive agente ou autoridade pública no exercício de suas funções. Não é exigido que o sujeito ativo detenha a qualidade de candidato, que seja titular de mandato político-representativo, filiado ou representante (dirigente, fiscal, delegado, apoiador) de partido político. Sendo o autor parlamentar, a imunidade material por “opiniões, palavras e votos” (CF, art. 53, caput; art. 27, § 1º) sofre restrições, porque, conforme assentou o STF: “Ninguém pode se escudar na imunidade parlamentar para, sem vinculação com a função, agredir a dignidade alheia ou difundir discursos de ódio, violência e discriminação” (STF – Pet nº 7174/ DF – 1ª Turma – Red. p/ Ac. Min. Marco Aurélio – DJe 28-9-2020 – excerto do voto do Min. Luís Roberto Barroso). Ademais, o crime pode ser praticado por uma pessoa de forma isolada ou em concurso – sendo, pois, de concurso eventual.

Sujeito passivo é a sociedade. A pessoa do gênero feminino (independentemente do sexo biológico) que sofre o assédio, o constrangimento, a humilhação, a perseguição ou a ameaça figura como vítima secundária.

É necessário que a vítima seja “candidata a cargo eletivo” ou “detentora de mandato eletivo”. A ausência do status de candidata ou mandatária pública torna a conduta atípica à luz do art. 326-B do CE, embora se possa cogitar da ocorrência de outro delito.

Quanto à elementar “candidata”, embora esse atributo só surja com o deferimento pela Justiça Eleitoral do requerimento de registro de candidatura, para os fins da proteção conferida pelo presente dispositivo, já se pode falar em candidata desde a escolha realizada na convenção partidária, pois é nessa oportunidade que a agremiação define os filiados que disputarão o pleito e, portanto, que serão candidatos; quando menos, deve-se considerar como marco inicial a data designada para a formalização do registro de candidatura.

Já no tocante à elementar “detentora de mandato eletivo”, há mister que a vítima tenha sido eleita e diplomada. Conquanto ainda não esteja formalmente investida no mandato, é a partir da diplomação que a candidata eleita passa a gozar de alguns direitos e deveres. Para a incidência do tipo, não é suficiente a condição de suplente, já que este não foi eleito, não é investido no cargo disputado nem exerce mandato político-eletivo.

O tipo legal é de ação múltipla, de conteúdo variado ou alternativo misto. Nesse, são descritas várias condutas, podendo o ilícito ser praticado com a realização de ações diversas. Haverá, porém, crime único se mais de uma conduta for concretizada em relação à mesma vítima em idêntico contexto fático. Assim, por exemplo, haverá um só crime se o agente, num primeiro momento, humilhar e ameaçar e, depois, perseguir uma candidata.

O núcleo do tipo é formado pelos verbos assediar, constranger, humilhar, perseguir e ameaçar. Assediar significa estorvar, atormentar, sugerir com insistência, cercar ou sitiar uma pessoa. Constranger significa forçar ou coagir alguém a fazer ou deixar de fazer algo, restringindo, portanto, sua liberdade. Humilhar significa oprimir, degradar, ridicularizar, rebaixar, aviltar. Perseguir significa importunar, causar incômodo, acossar. Ameaçar significa prometer a prática de mal injusto e grave.

Para amoldar-se à presente figura típica, as referidas ações devem utilizar ou valer-se de “menosprezo ou discriminação à condição de mulher ou à sua cor, raça ou etnia”. A presença desses elementos normativos é essencial para a configuração do crime. De modo que se a ação for baseada em outros elementos que não os descritos na aludida cláusula legal, atípica será a conduta, e o crime em exame não chega a se configurar. Em outros termos, não haverá crime se a humilhação ou ameaça praticadas não forem vinculadas ou relacionadas ao fato de a vítima ser “mulher ou à sua cor, raça ou etnia”. Por exemplo, se uma parlamentar for publicamente humilhada no plenário da Casa Legislativa não pela sua condição de mulher ou em razão de “sua cor, raça ou etnia”, mas sim por ter divulgado informações falsas e promovido desinformação ou porque agiu de forma antiética ao estacionar o seu veículo em vaga reservada para pessoa portadora de deficiência, a conduta de “humilhar” não realiza o tipo do art. 326-B do CE, não sendo, portanto, configurado o citado delito.2

O crime é comissivo, sendo necessário atuação ou movimento positivo do agente.

No que concerne ao modo de realização, trata-se de delito de ação livre, podendo a conduta típica ser efetivada “por qualquer meio”. Assim, o agente pode utilizar-se de meio físico, virtual ou de ambos. Pode, por exemplo, enviar à vítima carta, bilhete ou mensagem eletrônica, telefonar, deixar recado, postar mensagens no correio eletrônico ou em redes sociais; postar ou compartilhar vídeos em plataformas digitais; pode o agente hackear o aparelho celular ou computador da vítima, acessar, adulterar ou destruir dados lá existentes, instalar vírus etc. Em qualquer caso, é sempre necessário o emprego de “menosprezo ou discriminação à condição de mulher ou à sua cor, raça ou etnia”.

Ao contrário do que ocorre com o crime de stalking previsto no art. 147-A do Código Penal, o eleitoral em exame não é crime habitual, pois não há previsão no tipo de reiteração de atos para a consumação. Isso significa que não precisa haver habitualidade na conduta do agente.

Objeto material do presente delito é a pessoa da candidata ou mandatária pública que sofre o assédio, o constrangimento, a humilhação, a perseguição ou a ameaça.

Quanto ao tipo subjetivo, é o dolo direto. É o querer, livre e consciente, realizar as condutas descritas no tipo legal. O dolo abrange o conhecimento de que a vítima é do gênero feminino, bem como sua condição de candidata a cargo público-eletivo ou de detentora de mandato eletivo.

O vertente art. 326-B também requer a presença de elemento subjetivo específico, e esse plus não se confunde com o dolo. Assim: (i) sendo a vítima candidata, a ação típica deve ser realizada “com a finalidade de impedir ou de dificultar a sua campanha eleitoral”. Aqui, resta clara a especial finalidade de produzir efeito no processo eleitoral e nas eleições, não sendo, porém, necessário que esse resultado seja concretizado para que o delito se consume; (ii) sendo a vítima titular de mandato eletivo, a ação típica deve ser realizada “com a finalidade de impedir ou de dificultar o desempenho de seu mandato eletivo”. Se for outra a finalidade do agente, atípica se torna sua conduta à luz do referido art. 326-B do CE, o que não exclui a possibilidade de responsabilização em outra seara.

A modalidade culposa não foi prevista pelo Legislador.

Não têm relevância penal os sentimentos que impulsionaram o agente, sendo, pois, indiferente à configuração do tipo a realização da ação por inveja, ciúme, vingança, ódio, preconceito, repulsa, indignação etc.

Trata-se de crime formal, não sendo exigida para a consumação a ocorrência de resultado material exterior à conduta do agente. Não é, pois, necessário que o comportamento ilícito interfira ou prejudique de algum modo as atividades desenvolvidas pela vítima (ou seja, que efetivamente impeça ou dificulte a sua campanha eleitoral ou o desempenho de seu mandato eletivo), pois a realização típica não requer a ocorrência de lesão. Tampouco é requerido que a vítima realmente se sinta amedrontada, atemorizada, angustiada ou intimidada; embora ela possa ser dominada por algum desses sentimentos, sobretudo se sofrer constrangimento, perseguição ou ameaça, tal efeito psicológico não é exigido para a configuração do ilícito. Assim, por exemplo, no constrangimento, não é necessário para a consumação que a vítima faça ou deixe de fazer algo; havendo ameaça, é desnecessário que a vítima sinta-se intimidada ou que experimente sentimentos negativos como dor, humilhação, constrangimento ou intimidação.

Cuida-se, ainda, de delito instantâneo. Mas vale ressaltar que, conforme as circunstâncias, o crime poderá ser permanente se a conduta configurar-se como “perseguição persistente”, assim entendida a realizada mediante atos contínuos e reiterados ao longo do tempo. Nessa hipótese, o momento consumativo é dilatado, podendo haver prisão em flagrante delito durante todo o período em que se desenrolar a perseguição.

No âmbito da sanção penal, a pena abstratamente cominada para o crime é de reclusão de um a quatro anos, e multa. Para os padrões sancionatórios observados no Direito Penal Eleitoral, trata-se de pena alta; isso revela o forte desvalor conferido à conduta incriminada.

Preveem-se, também, circunstâncias majorantes. Nos termos do parágrafo único do art. 326-B do CE: “Aumenta-se a pena em 1/3 (um terço), se o crime é cometido contra mulher: I – gestante; II – maior de 60 (sessenta) anos; III – com deficiência.” O fundamento dessas majorantes encontra-se na maior vulnerabilidade da vítima, o que justifica o aumento da pena.

Mas não é só. A sentença penal condenatória transitada em julgado provoca a suspensão dos direitos políticos do sentenciado, enquanto durarem os efeitos da condenação (CF, art. 15, III).

Ademais, a condenação por crime inserido no rol do art. 1º, I, alínea e, da LC n. 64/1990 (entre eles o crime eleitoral para o qual “a lei comine pena privativa de liberdade”), torna o réu inelegível por oito anos “após o cumprimento da pena”. A inelegibilidade, aqui, constitui efeito secundário da sentença penal condenatória, não sendo, portanto, necessário que venha declarada expressamente no decisum.

Por outro lado, havendo pedido na denúncia criminal, a sentença condenatória “fixará valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração, considerando os prejuízos sofridos pelo ofendido” (CPP, art. 387, IV). É possível a fixação não só de danos materiais, como também de danos morais, conforme pacífico entendimento jurisprudencial, a ver: STJ, REsp n. 1.675.874/MS, 3ª Seção, rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, DJe 8-3-2018; STJ, REsp n. 1.986.672/SC, 3ª Seção, rel. Min. Ribeiro Dantas, DJe 1-11-2023.3

Crime comum e a questão da incompetência da Justiça Eleitoral

Não há dúvida sobre a competência da Justiça Eleitoral quando a vítima for “candidata a cargo eletivo”, porque nessa hipótese o crime é eleitoral e o bem jurídico protegido é a integridade do processo eleitoral, notadamente no que concerne à sua legitimidade e isonomia.

Entretanto, debate-se acerca da competência para conhecer e julgar o delito do vertente art. 326-B do CE na hipótese de a vítima ser detentora de mandato político-representativo e o crime for praticado “com a finalidade de impedir ou de dificultar […] o desempenho de seu mandato eletivo”. É que nesse caso não há relação da conduta delitiva com um processo eleitoral e, como descrito no próprio tipo legal, o que se visa é proteger a normalidade e honorabilidade do desempenho de mandato eletivo.

Por natureza, os crimes eleitorais têm por objetivo jurídico a proteção de bens eleitorais ou inerentes ao processo eleitoral.

Mas no caso enfocado a proteção jurídica relaciona-se ao regular exercício do mandato eletivo, o que, em princípio, não é matéria propriamente eleitoral, mas comum. O que se tutela é a honorabilidade no exercício do mandato titularizado por pessoa do gênero feminino, o exercício livre, independente, pleno e seguro do mandato conquistado nas urnas, sem que por isso a mandatária possa ser importunada, molestada, humilhada, constrangida, perseguida, aterrorizada e, pois, coarctada no exercício das altas funções públicas que lhe foram conferidas diretamente pela soberania popular.

Trata-se, portanto, de crime comum – e não eleitoral.

A natureza do crime pode ser divisada no bem jurídico tutelado, não se encontrando necessariamente no diploma legal em que o tipo incriminador é inscrito ou veiculado. Ainda que se viva em sociedade de risco, é certo que o bem jurídico não foi abandonado, mantendo-se como modelo do Direito Penal, como referência crítica e critério legitimador da incriminação penal.4

A propósito, assentou o Superior Tribunal de Justiça:

“[…] 1. A simples existência, no Código Eleitoral, de descrição formal de conduta típica não se traduz, incontinenti, em crime eleitoral, sendo necessário, também, que se configure o conteúdo material de tal crime. 2. Sob o aspecto material, deve a conduta atentar contra a liberdade de exercício dos direitos políticos, vulnerando a regularidade do processo eleitoral e a legitimidade da vontade popular. Ou seja, a par da existência do tipo penal eleitoral específico, faz-se necessária, para sua configuração, a existência de violação do bem jurídico que a norma visa tutelar, intrinsecamente ligado aos valores referentes à liberdade do exercício do voto, a regularidade do processo eleitoral e à preservação do modelo democrático. […].” (STJ, CC nº 127101/RS, 3ª Seção, rel. Min. Rogério Schietti Cruz, DJe 20-2-2015).

De maneira que crime previsto no Código Penal pode ser eleitoral se o bem tutelado for eleitoral, tal como ocorre com o delito de “interrupção do processo eleitoral”, previsto no art. 359-N do CP. Por outro lado, crime previsto no Código Eleitoral pode ser comum – e, pois, de competência da Justiça Comum –, se o bem tutelado não for eleitoral; exs.: crimes contra a honra (CE, arts. 324 a 325), crime de denunciação caluniosa (CE, art. 326-A), crimes de falso (CE, arts. 348 a 350), crime do art. 326-B do CE, quando a vítima estiver no exercício de mandato.

Assim, não se afigura exata, concessa venia, a conclusão a que chegou o eg. Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo consoante a qual a só “inserção de referido tipo penal no Código Eleitoral [i.e., do art. 326-B], por si só, já é suficiente para alicerçar a atuação desta Justiça Especializada” (TRE-SP, APEl nº 060021441, Rel. Des. Afonso Celso da Silva, j. 23-11-2022, DJe 30-11-2022 – excerto do voto do relator). Ora, parafraseando a fábula “a águia e a galinha” (apresentada por Leonardo Boff em obra com o mesmo título), águia criada em galinheiro jamais se tornará galinha. O fato de ser previsto no Código Eleitoral não significa que o delito seja necessariamente eleitoral, e, por outro lado, a circunstância de ser previsto no Código Penal não significa que o crime não possa ser eleitoral. Afinal, conforme salientado, a natureza do delito – que também define a competência para julgá-lo – depende do bem jurídico por ele protegido.5

A Constituição Federal atribui competência criminal à Justiça Eleitoral, mas tão somente para conhecer e julgar crime eleitoral ou crime comum conexo a crime eleitoral. Nesse sentido é o entendimento pacífico do Supremo Tribunal Federal, a ver: STF, Inq 4435 AgR/DF, Pleno, Rel. Min. Marco Aurélio, DJe 13-9-2019; STF, Pet-AgRgAgRg 5801/DF, 2ª Turma, rel. min. Celso de Mello, DJe 1.3.2019; STF, Pet-AgRgAgRg 6694/DF, 2ª Turma, red. p/ o acórdão Min. Dias Toffoli, DJe 28.5.2018. A Lei Maior também especifica a competência das Justiças Comum Federal (esta expressamente, CF art. 109) e Estadual (esta residualmente, CF art. 125) para o julgamento de crime comum. Portanto, viola a Constituição atribuir à Justiça Eleitoral o julgamento de crime comum fora da hipótese por ela autorizada, isto é, sem que exista conexão ou continência com crime eleitoral.

E não poderia ser diferente, já que a vocação essencial dessa Justiça Especializada – desde a sua criação – encontra-se umbilicalmente ligada ao “processo das eleições”, confira-se: Decreto nº 21.076/1932; CF de 1934, art. 83, caput; CF de 1946, art. 119; CF de 1967, art. 130; CF de 1988, art. 121.

Para além disso, tem-se que art. 121, caput, da CF dispõe que a competência da Justiça Eleitoral só pode ser estabelecida por Lei Complementar. O art. 326-B do CE foi incluído no Código Eleitoral pela Lei nº 14.192/2021, que é ordinária. Portanto, sendo comum o crime em exame, atribuir à Justiça Eleitoral a competência para julgá-lo equivaleria a dispor sobre a competência dessa Justiça Especializada com base em lei ordinária, o que também é inconstitucional.

Ainda que o crime do art. 326-B do CE seja matizado por questões políticas, é certo que somente a natureza política de um evento não é suficiente para atrair e fundamentar a competência da Justiça Eleitoral. Se em geral as questões eleitorais encontram-se radicadas nos domínios políticos, nem tudo o que é político é eleitoral. O universo político é bem mais amplo. E isso é expressamente evidenciado pela própria Constituição ao fixar a competência da Justiça Federal (não a da Eleitoral) para processar e julgar os “crimes políticos” (CF, art. 109, IV). De modo que nem toda matéria em que se apresente interesse político é necessariamente de competência da Justiça Eleitoral. Assim, entre muitas outras coisas, a Justiça Eleitoral não tem competência para conhecer e julgar questões partidárias, a menos que haja reflexos ou interferência em processo eleitoral, tampouco crimes políticos.

Por igual razão, a Justiça Eleitoral não possui competência para conhecer questões surgidas de jogos de poder e embates de forças políticas havidos entre exercentes de mandato político-representativo, pois tais questões não têm relação com processo eleitoral presente ou futuro. Dizem respeito, antes, ao proselitismo político, a ações estratégicas de dominação, a embates e enfrentamentos por ampliação de influência praticados nos centros de exercício do poder político.

Assim, no vertente art. 326-B do CE, sendo a vítima detentora de mandato e o crime praticado “com a finalidade de impedir ou de dificultar […] o desempenho de seu mandato eletivo”, a competência para conhecer e julgar o fato pertence à Justiça Comum. É que aqui as ofensas ocorrem no contexto de disputas e embates políticos, e têm motivação e objetivos políticos. Note-se que quando o ofendido é do gênero masculino, naquele mesmo ambiente de “embate político”, ele pode igualmente ser insultado, humilhado, agredido física e psicologicamente, ameaçado, perseguido, acusado de ladrão, de corrupto, de burro, de incompetente, de traidor etc. Brigas e embates políticos são frequentes no cenário político, conforme, aliás, revelam inúmeras matérias jornalísticas e vídeos publicados na web.

É certo que existem julgados afirmando a competência da Justiça Eleitoral na hipótese de violência praticada contra pessoa do gênero feminino no contexto de embate político (sem relação direta com processo eleitoral). Porém, em nenhum deles constata-se debate mais acurado acerca da importante questão atinente à competência jurisdicional, extraindo-se a competência da Justiça Eleitoral da mera previsão do delito no corpo do Código Eleitoral; foi o que ocorreu neste caso: TRE-SP, APEl nº 060021441, Rel. Des. Afonso Celso da Silva, j. 23-11-2022, DJe 30-11-2022. Há julgados em que a questão da competência sequer é ventilada, sendo presumida a competência da Justiça Eleitoral sem maiores considerações, e.g.: TRE-CE, REl nº 0600036-86, Rel. Des. Francisco Gladyson Pontes, j. 6-11-2023, DJe 8-11-2023.

Ora, não enfrentar o problema, esquivar-se dele ou lançar mão de argumentos frágeis e inconsistentes não implica resolvê-lo, mas adiá-lo. A competência criminal da Justiça Eleitoral é demarcada na Constituição Federal, sendo restrita a crimes eleitorais e – excepcionalmente – a crimes comuns conexos com eleitorais. É evidentemente inconstitucional o alargamento da competência dessa Justiça Especializada para fazê-la abarcar o julgamento de crimes comuns não conexos a crimes eleitorais. Esse indevido alargamento de competência com base apenas na vontade do intérprete – e não nos fundamentos do devido processo constitucional –, pode acarretar efeitos de todo indesejados (mas desde sempre previsíveis) como a invalidação de processos e a consequente extinção da pretensão punitiva estatal pela prescrição. Há o risco, portanto, de, ao final, práticas repugnantes de violência de gênero simplesmente restarem impunes, malgrado todo o esforço e energia despendidos em sua persecução penal.

Competência de qual das Justiças Comuns?

Uma vez fixada a competência da Justiça Comum, resta indagar se será da Justiça Federal ou Estadual. Na verdade, a competência poderá ser de ambas, bem como de tribunais superiores.
Em regra, a competência será da Justiça Comum Estadual.
Mas não está afastada a competência da Justiça Federal, dependendo essa definição de circunstâncias como status da vítima e meios empregados para a realização da conduta.
Assim, a Justiça Federal será competente se a vítima do delito for parlamentar federal. Isso por força do art. 109, IV, da Constituição, que atribui à Justiça Federal competência para conhecer e julgar crimes comuns praticados em detrimento de interesses da União. Sendo a vítima agente federal, é natural que se apresente o interesse federal. A propósito, dispõe a Súmula 147 do STJ, verbis: “Compete à Justiça Federal processar e julgar os crimes praticados contra funcionário público federal, quando relacionados com o exercício da função”.
Por igual, será competente a Justiça Federal se o autor do delito for agente público federal. Aqui, com maior razão, comparece o interesse federal. Nesse sentido: “[…] compete à Justiça Federal processar e julgar crime cometido por funcionário público federal no exercício de suas atribuições funcionais” (STF, HC 124100 AgR, 1ª Turma, Rel. Min. Roberto Barroso, DJe 7-2-2017).
Contudo, se o autor do fato for parlamentar federal, a competência será do Supremo Tribunal Federal, dada a incidência do foro privilegiado ou por prerrogativa de função (CF, art. 102, I, b).
Se a vítima do delito for parlamentar federal e o autor tiver foro privilegiado perante o Superior Tribunal de Justiça, a competência será desse tribunal superior (CF, art. 105, I, a).
A Justiça Federal também poderá ser competente se o caso tiver caráter internacional, relacionando-se ao Tema 393 de repercussão geral, no qual o Supremo Tribunal Federal afirma a competência desse ramo do Poder Judiciário, à luz do art. 109, V, da CF, se forem “preenchidos 03 (três) requisitos essenciais e cumulativos, quais sejam, que: a) o fato esteja previsto como crime no Brasil e no estrangeiro; b) o Brasil seja signatário de convenção ou tratado internacional por meio do qual assume o compromisso de reprimir criminalmente aquela espécie delitiva; e c) a conduta tenha ao menos se iniciado no Brasil e o resultado tenha ocorrido, ou devesse ter ocorrido no exterior, ou reciprocamente.” (STF, RE nº 628624/MG, Pleno, Rel. p/ Ac. Min. Edson Fachin, DJe 6-4-2016).

Em atenção a esses requisitos, vale lembrar a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará), concluída pela Assembleia Geral da OEA, em Belém do Pará, em 9 de junho de 1994, tendo sido assinada na mesma data pelo Brasil e aprovada pelo Congresso Nacional por meio do Decreto Legislativo n. 107, de 31 de agosto de 1995. Segundo esse documento internacional, a violência contra a mulher abrange agressões física, sexual e psicológica, podendo ser consumada mediante qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público como no privado. Por outro lado, o requisito da internacionalidade da ação é preenchido quando houver divulgação em plataformas digitais e redes sociais dos conteúdos ilícitos, porque quando veiculadas na web as postagens adquirem grande alcance, sendo acessíveis mundialmente por qualquer pessoa em alguns segundos após a postagem.

Não sendo atendidos os citados requisitos, a competência será da Justiça Comum Estadual. À guisa de exemplo, pense-se na violência política praticada contra detentora de mandato legislativo ocorrida no recinto da Câmara Municipal ou Assembleia Legislativa e não divulgado na Internet.

Conclusão

Embora ainda seja baixo, tem crescido o número de pessoas do gênero feminino que disputam o poder político e ocupam efetivamente postos público-eletivos nas diversas esferas do Estado brasileiro. Mas esse crescimento tem sido acompanhado de sequelas, as quais são expressas pelas incontáveis agressões e violências praticadas contra mulheres em razão das atividades políticas a que se dedicam. Quiçá o fenômeno possa ser explicado por uma cultura de viés elitista, tingida de cores de um longínquo passado colonial, que exalta a exclusão social e enaltece o machismo, e que tanto amesquinha a presença feminina nos espaços de poder político.

Inserido no art. 326-B do Código Eleitoral pela Lei nº 14.192/2021, o crime de violência política de gênero representa importante marco legal protetivo de pessoas do gênero feminino que dedicam suas vidas a atividades políticas. A elevada pena privativa de liberdade cominada a esse crime – reclusão de um a quatro anos – só por si demonstra o forte desvalor conferido à conduta incriminada.

Ocorre que no Estado Democrático de Direito, é mister que a persecução penal observe o modelo constitucional de processo justo, e, pois, o devido processo legal. Entre as garantias constitucionais regentes do processo penal, destaca-se a do juiz natural, inscrita no art. 5º, LIII, da Constituição Federal nos seguintes termos: “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”. Nessa cláusula constitucional, vale ressaltar a leitura que divisa no termo “processado” uma referência ao órgão do Ministério Público, instituição incumbida de formalizar a acusação penal pública (CF, art. 129, I) perante o Estado-juiz, e no termo “sentenciado” uma alusão ao órgão judicial que julgará a causa.

O ilícito previsto no art. 326-B do CE será de competência da Justiça Eleitoral quando tratar-se de vítima “candidata a cargo eletivo”, porque nessa hipótese o crime é eleitoral e o bem jurídico protegido é a integridade do processo eleitoral, notadamente no que concerne à sua legitimidade e isonomia.

Entretanto, a competência será da Justiça Comum na hipótese de a vítima já ser detentora de mandato político-representativo e o crime for praticado “com a finalidade de impedir ou de dificultar […] o desempenho de seu mandato eletivo”. Isso porque, nesse caso, não há relação da conduta delitiva com um processo eleitoral, pois o que se visa proteger é a normalidade e honorabilidade do desempenho de mandato eletivo.

Tais soluções resultam cristalinas do sistema jurídico-processual, não havendo razão para se distorcer o desenho constitucional da Justiça Eleitoral, atribuindo-lhe competências que lhe são estranhas, tal como a de julgar crime comum não conexo com eleitoral. Afinal, a definição da competência jurisdicional criminal deve ser baseada em critérios técnico-jurídicos, com estrita observância dos direitos e garantias fundamentais, notadamente o devido processo legal e o juiz natural.

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1 José Jairo Gomes doutorou-se em Direito na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, onde foi Professor Adjunto. É Professor em cursos de pós-graduação, especialização e aperfeiçoamento. É Procurador Regional Eleitoral em Minas Gerais (PRE/MG) e também Procurador Regional da República com atuação perante o TRF da 6ª Região (BH/MG). Foi: 1) Procurador Regional Eleitoral no Distrito Federal (PRE/DF); 2) Coordenar do GENAFE – Grupo Nacional da Função Eleitoral (órgão vinculado ao Gabinete da Procuradoria Geral Eleitoral) em 2018 e 2019; 3) Procurador Adjunto na Procuradoria-Geral Eleitoral – PGE (atuando perante o Tribunal Superior Eleitoral – TSE) em 2012 e 2013; 4) Procurador Regional Eleitoral em Minas Gerais de 2002 a 2010; 5) Promotor de Justiça e Promotor Eleitoral de 1993 a 1997. Após aprovação em concursos de provas e títulos, foi nomeado: no ano de 1996 – Juiz Federal Substituto no Tribunal Regional Federal da 3ª Região (SP); e, no ano de 1997 – Juiz Federal Substituto no Tribunal Regional Federal da 1ª Região (DF). A convite do Ministério das Relações Exteriores do Brasil, foi Observador das eleições presidenciais da República Democrática do Congo (África) no ano de 2006. É autor das seguintes obras, dentre outras: 1) Direito Eleitoral. 19ª edição. São Paulo: Atlas/GEN, 2023. 2) Recursos eleitorais. 7ª ed. São Paulo: Atlas/GEN, 2022. 3) Crimes Eleitorais e Processo Penal Eleitoral. 6ª ed. São Paulo: Atlas/GEN, 2022. 4) Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – LINDB. São Paulo: Atlas/GEN, 2012. 5) Teoria Geral do Direito Civil. Belo Horizonte: Del Rey, 2009. 6) Curso de Direito Civil: introdução e parte geral. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. 7) Responsabilidade Civil e Eticidade. Belo Horizonte: Del Rey, 2005.

2 Há que se ter cautela na investigação das circunstâncias fáticas e avaliação dos citados elementos normativos, pois o comportamento delituoso pode não evidenciar a priori um preconceito de gênero, raça ou etnia, mas tê-lo em sua base ou como pressuposto.

3 Para que a sentença estabeleça danos indenizáveis, alguns requisitos devem ser observados: “1. À exceção da reparação dos danos morais decorrentes de crimes relativos à violência doméstica (Tema Repetitivo 983/STJ), a fixação de valor mínimo indenizatório na sentença – seja por danos materiais, seja por danos morais – “[…] exige o atendimento a três requisitos cumulativos: (I) o pedido expresso na inicial; (II) a indicação do montante pretendido; e (III) a realização de instrução específica a fim de viabilizar ao réu o exercício da ampla defesa e do contraditório” (REsp 1986672/SC, Rel. Ministro RIBEIRO DANTAS, Terceira Seção, julgado em 08/11/2023, DJe 21/11/2023). 2. Agravo regimental desprovido.” (STJ, AgRg no REsp n. 2.008.575/RS, 6ª Turma, rel. Min. Teodoro Silva Santos, DJe 7-3-2024.)

4 Consoante ensina o ilustrado penalista luso Figueiredo Dias: “§ 67 É nossa convicção que à questão básica suscitada, de saber se na sociedade de risco pode ainda manter-se o modelo do direito penal do bem jurídico, deverá em definitivo responder-se que sim, na medida em que possa e deva afirmar-se que – sem prejuízo do axioma onto-antropológico sobre o qual repousa toda a matéria penal –, ao lado dos bens jurídicos individuais ou dotados de referente individual e ao mesmo nível de exigência tutelar autônoma, existem autênticos bens jurídicos sociais, comunitários, universais, coletivos, ou como quer que prefiramos exprimir-nos a a propósito. […].” (In FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Direito penal: parte geral. 1. ed. brasileira, 2. ed. portuguesa. São Paulo: Revista dos Tribunais; Coimbra: Coimbra Editora, 2007. t. 1. p. 148-149).

5 Essa lógica é observada no Projeto de Lei nº 236/2012 que institui o novo Código Penal (que atualmente encontra-se na CCJ, conforme informado em https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/106404 – Acesso em 1-4-2024). Os crimes eleitorais são previstos no título XI daquele Projeto, compreendendo os arts. 325 a 338. Conquanto aí sejam contados apenas catorze dispositivos, o art. 325 transforma em eleitorais “os crimes contra a honra, a fé pública, a Administração Pública e a administração da Justiça, quando praticados em detrimento da Justiça Eleitoral, de candidatos ou do processo eleitoral”. Portanto, o risco ou a lesão a bem jurídico eleitoral é empregado como critério essencial para definir se o crime é ou não eleitoral; com isso, o rol de crimes eleitorais torna-se bem superior aos especificados. Em outros termos, apesar de ser previsto no (projeto de) Código Penal, o crime é definido como eleitoral se colocar em risco ou lesar bem jurídico eleitoral.

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