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ANPD vs Meta

Ana Frazão

Ana Frazão

26/07/2024

No início de julho, o Conselho Diretor da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) suspendeu, de modo preventivo, a nova política de privacidade da Meta, por meio da qual as empresas do grupo – notadamente Facebook, Instagram, Messenger, Threads e Boomerang – poderiam tratar dados pessoais de cidadãos brasileiros com a finalidade de treinamento de sistemas de inteligência artificial generativa[1].

O alcance da nova política era significativo no Brasil, onde somente o Facebook tem mais de 102 milhões de usuários ativos. Acresce que, pelas novas regras, a Meta poderia coletar inclusive informações contidas em fotografias, áudios e vídeos compartilhados em seus serviços e produtos, mesmo quando estes contivessem igualmente dados de não usuários. A única exceção seriam mensagens privadas com amigos e familiares, o que permite supor que outros tipos de conversa – como as travadas entre cidadãos e empresas ou com sistemas de IA – também poderiam ser objeto do tratamento.

De toda sorte, a ANPD considerou relevante a necessidade de proteção igualmente dos dados pessoais públicos ou tornados públicos pelo titular, à luz dos §§ 3º e 7º do art. 7º da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). Assim, diante de situação que poderia causar danos graves e de difícil reparação, a ANPD determinou a suspensão imediata da referida política, sob pena de multa diária no valor de R$ 50 mil.

Nos termos do bem fundamentado voto da diretora relatora Miriam Wimmer, foram basicamente quatro os fundamentos pelos quais a nova política da Meta foi considerada incompatível com a LGPD.

Ausência de base legal apropriada

O primeiro deles é a ausência de base legal apropriada, já que a Meta alegava o legítimo interesse e esta base não se aplica a dados pessoais sensíveis, o que certamente diz respeito a muitas das informações contidas nas imagens, áudios, vídeos e textos que seriam coletados e tratados.

A ANPD também ressaltou que a base legal do legítimo interesse, mesmo que fosse apropriada, somente poderia ser utilizada de forma compatível com as legítimas expectativas dos titulares, por força do próprio art. 10, II, da LGPD. Entretanto, no caso concreto, como consta do voto da diretora Wimmer, “não há a expectativa de que todas essas informações, inclusive as compartilhadas muitos anos atrás, sejam utilizadas para treinar sistemas, que sequer estavam implementados quando as informações foram compartilhadas.”

O desatendimento das legítimas expectativas dos titulares estaria também comprovado diante da insuficiência de informações prestadas aos titulares de dados pessoais e das violações aos princípios da finalidade (LGPD, art. 6º, I) e da necessidade (LGPD, art. 6º, III), especialmente diante do art. 10, § 2º, da LGPD, que reforça o princípio da necessidade/minimicidade, ao prever que “quando o tratamento for baseado no legítimo interesse do controlador, somente os dados pessoais estritamente necessários para a finalidade poderão ser tratados”.

Tais requisitos não estariam atendidos no caso concreto, diante do fato de a empresa ter se limitado a informar a finalidade ampla e genérica de “treinamento de sistemas de IA generativa”.

Dessa maneira, a decisão da ANPD deixa claro que a base legal do legítimo interesse precisa ser utilizada com cautela, mediante a comprovação do preenchimento de todos os seus pressupostos, o que não teria ocorrido no caso concreto. Aliás, como já tive oportunidade de abordar em coluna anterior, são muitos os requisitos procedimentais e probatórios que precisam ser atendidos para a utilização da base legal do legítimo interesse[2].

Falta de transparência na divulgação da nova política

O segundo fundamento da decisão foi a falta de transparência na divulgação da nova política, o que já havia sido constatado pela área técnica da ANPD, cuja conclusão foi no sentido da ausência de comunicação clara, ampla e específica da Meta quanto à alteração da sua política de privacidade, de forma que não se poderia presumir que os titulares tenham dela sido adequadamente informados.

Respeito à limitação ao exercício de direitos

O terceiro fundamento diz respeito à limitação ao exercício de direitos, pois a opção opt-out, que permite a oposição por parte dos usuários, não é disposta de maneira evidente e a sua complexidade assemelha-se a um padrão obscuro[3]. Como os titulares precisam realizar diversas ações para exercer seus direitos, concluiu a diretora Wimmer que “o número elevado de ações que o usuário precisa realizar para expressar sua oposição em relação ao tratamento de dados pode levá-lo a tomar decisões que sejam contrárias à sua vontade”.

Outros dois pontos foram ressaltados para reforçar o argumento da limitação ao exercício de direitos: (i) a comparação com o caso europeu, em que o procedimento de oposição era bem mais simples e rápido, e (ii) o fato de que a ANPD já havia recomendado à Meta, durante a análise da alteração promovida na política de privacidade do WhatsApp, há cerca de três anos, para a necessidade de simplificar o acesso aos canais de atendimento e facilitar o exercício dos direitos dos titulares de dados pessoais.

Tratamento de dados pessoais e de crianças e adolescentes sem as devidas salvaguardas

Por fim, o quarto fundamento está relacionado ao tratamento de dados pessoais e de crianças e adolescentes sem as devidas salvaguardas, pois a empresa não explicou como vai assegurar o melhor interesse das crianças e adolescentes. Vale ressaltar que a ANPD, por meio do seu Enunciado 1, admite a utilização das bases legais tanto do art. 7º como do art. 11 para o tratamento de dados de crianças e adolescentes, desde que comprovado o melhor interesse da criança, a ser avaliado no caso concreto.

Dessa maneira, ao não explicitar como o melhor interesse das crianças e adolescentes seria assegurado, a Meta não estaria atendendo a tais requisitos. Outro ponto que reforça a ilegalidade é a comparação com a política de dados europeia, onde a Meta afirma que não treina seus sistemas de IA generativa com conteúdos gerados por cidadãos europeus com menos de 18 anos.

Como se pode observar, parte dos problemas apontados pela ANPD relaciona-se diretamente com a ausência de transparência, razão pela qual não é possível saber as justificativas da empresa tanto para se utilizar da base legal do legítimo interesse, como para tratar dados de crianças e adolescentes. A assimetria informacional é tão grande que não se sabe nem mesmo se todos os dados que seriam utilizados pela Meta seriam necessários para a finalidade invocada e em que medida.

Daí por que a ANPD agiu acertadamente, assim como o fez o Cade, que também abriu procedimento investigatório para apurar tais práticas[4]. Entretanto, como o problema do treinamento de sistemas de IA obviamente não se restringe à Meta, resta saber o que pretendem fazer as autoridades brasileiras com inúmeros outros sistemas de IA generativa que estão sendo treinados provavelmente sem a observância dos direitos dos titulares de dados brasileiros.

Por mais que a decisão da ANPD seja uma importante sinalização para todo o mercado, é inequívoco que, até por uma questão de isonomia, inclusive no âmbito concorrencial, há que se buscar mecanismos para que todos os agentes, especialmente os que também têm posição dominante, que se encontrem em situações semelhantes à da Meta recebam o mesmo tratamento por parte das autoridades brasileiras.

Há que se aproveitar também tal oportunidade para se refletir melhor sobre como encontrar um equilíbrio entre a inovação e o avanço da inteligência artificial, por um lado, e o respeito aos direitos dos cidadãos e consumidores, por outro.

Para quem se interessa pela discussão, o próximo episódio do podcast Direito Digital, que será lançado no dia 31, terá como objeto a mencionada decisão da Meta, que deu margem a um interessante debate entre mim e a professora Caitlin Mulholland[5].

Fonte: Jota

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NOTAS
[1]https://www.gov.br/anpd/pt-br/assuntos/noticias/anpd-determina-suspensao-cautelar-do-tratamento-de-dados-pessoais-para-treinamento-da-ia-da-meta.

[2]https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/a-lgpd-e-o-legitimo-interesse-01062022?non-beta=1

[3] Já tive a oportunidade de tratar do assunto em duas colunas anteriores: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/o-que-sao-dark-patterns-12072023 e https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/como-conter-as-dark-patterns-12062024

[4]https://teletime.com.br/04/07/2024/cade-formaliza-apuracao-sobre-dados-pessoais-no-treinamento-de-ia-da-meta/

[5]www.podcastdireitodigital.com.br

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