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Alteração Administrativa do Prenome e do Gênero nos Assentos de Nascimento e Casamento de Transgênero
Marcelo Rodrigues
02/08/2018
Introdução
A partir da edição do Provimento 73 (28.06.2018), da Corregedoria Nacional de Justiça, faculta-se aos interessados, autopercebidos como pessoa transgênero, requerer diretamente ao oficial do registro civil de pessoas naturais a averbação da alteração do prenome e do gênero no(s) assento(s) de nascimento e/ou casamento. A normativa se refere a “transgênero”, ao passo que o precedente do Supremo Tribunal Federal (ADI 4.275/DF, j. em 1º.03.2018), tomado como uma de suas bases axiológicas, pelo qual foi conferida ao art. 58 da Lei 6.015, de 31 de dezembro de 1973, interpretação conforme à Constituição da República, reconhecendo o direito da pessoa que desejar, independentemente de cirurgia de redesignação ou da realização de tratamentos hormonais ou patologizantes, à substituição de prenome e gênero diretamente no ofício do RCPN diz respeito, especificamente, à “transexualidade”, espécie de menor amplitude que aquela (v. comentário a seguir).
Legitimação
Apto a deflagrar o procedimento é o(a) maior de 18 anos de idade e habilitado(a) à prática de todos os atos da vida civil ( plenamente capaz). O art. 2º da normativa se refere à locução “Toda pessoa”, todavia a norma é exclusivamente destinada à pessoa do “transgênero” (art. 1º), que, livre e conscientemente, manifesta a vontade de alterar sua identidade civil (prenome) e designação sexual nos assentos de nascimento e casamento (se for o caso). Assim, melhor seria dizer “toda pessoa transgênero”, maior e plenamente capaz, a quem é facultado o exercício, a qualquer tempo, da opção de promover referidas averbações mediante o cumprimento de certas exigências. O requerimento respectivo, com a indicação precisa da(s) alteração(ões) pretendida(s), deve ser assinado pela pessoa requerente na presença do registrador do RCPN (art. 4º, §§ 2º e 3º). Não se impõe, nesses termos, a representação processual (ou procedimental que seja) de advogado ou defensor público. A norma não esclarece, mas será lícito supor que, nos casos em que o(a) interessado(a) não souber assinar, valerá sua assinatura “a rogo”, desde que aposta na presença do oficial registrador civil, que, valendo-se de sua fé pública, reconhecerá a validade do ato. Nesse caso, será aposta a impressão digital da parte requerente no formulário de requerimento. Essenciais aqui são, além da identificação, a capacidade e o discernimento do(a) interessado(a) para manifestar livre e conscientemente a vontade, predicados relativamente aos quais constitui atribuição funcional do oficial constatar. Os portadores de deficiência auditiva, de fala e/ou visual que necessitarem, devem ser assistidos por tradutor ou intérprete da Língua Brasileira de Sinais (Libras ou Sistema Braile), cabendo apresentar, além do documento de identificação, seu certificado ou habilitação emitido pelas instituições competentes. Sempre que houver eventual juízo de qualificação negativo e a formulação de exigências, cabe, a pedido expresso da parte requerente, a confecção de nota devolutiva por escrito e encaminhamento do expediente ao juiz de Direito de Registros Públicos para dirimir a dúvida, aqui empregado o vocábulo em sua acepção técnico-jurídica, seguindo o rito do art. 198 e seguintes da Lei Federal 6.015/1973.
Transgênero, transexual e travesti. Conceitos distintos
Existem diferenças conceituais entre os termos transgênero, transexual e travesti. Um dos pilares da sexualidade humana é a identidade de gênero (seguida pelo sexo biológico, expressões de gênero e orientação sexual). A identidade de gênero corresponde a como a pessoa se sente – homem, mulher e agênero. É um sentimento íntimo e indissociável de sua personalidade. Por outro lado, existem pessoas que não se sentem 100% masculinas ou femininas. Recebem a denominação de agêneros. A pessoa pode se identificar simultaneamente com os dois gêneros ou mesmo com nenhum (os não binários). O sexo biológico é aquele com o qual se nasce, de acordo com a genitália, cromossomos, gônadas e hormônios. Nesse enfoque, a pessoa pode ser do sexo feminino, do sexo masculino ou intersexo. A pessoa intersexo nasce com uma anatomia sexual que não se encaixa no masculino nem no feminino, é uma mescla das genitálias, hormônios, cromossomos e gônadas. Expressões de gênero são as formas de se vestir, pentear, andar, ou seja, é a linguagem do corpo. Esses atributos são culturais, podendo ser feminino (associado às mulheres), masculino (associado aos homens) ou andrógino (mescla entre masculino e feminino ou nenhum – inovador). A identidade de gênero também não se confunde com a orientação sexual. Esta se traduz na orientação do desejo, o sentimento de atração de uma pessoa por outra. Essa orientação pode ser: a) Heterossexual: pessoa que sente atração sexual por pessoas do sexo oposto; b) Homossexual: pessoa que sente atração sexual por pessoas do mesmo sexo; c) Bissexual: pessoa que sente atração sexual por pessoas do mesmo sexo e do sexo oposto; d) Pansexual: pessoa que sente atração sexual por homem, mulher, travesti, transgênero, transexual, drag queen, ou seja, por todos os gêneros; e) Assexuada: pessoa que não sente atração sexual. Em relação ao transgênero, aplica-se o prefixo “trans”, que significa “além de”, “através de”, ou seja, as pessoas que estão em trânsito entre os gêneros (masculino e feminino). Transgridem as normas de gênero impostas pela cultura, estão para além do feminino e do masculino. Logo, o termo transgênero é, por essência, um amplo guarda-chuva, que contempla travestis, transexuais, não binários, crossdressers e drag queens. Por sua vez, no caso das pessoas transexuais, a identidade de gênero não corresponde ao sexo biológico. O homem, com os órgãos sexuais masculinos, sente-se uma mulher; uma mulher no corpo de um homem. A mulher, com os órgãos sexuais femininos, sente-se um homem. Um homem no corpo de uma mulher. Essas inconformidades podem causar um sofrimento em viver com a genitália que não se adequa à sua personalidade, ao seu sentimento de pertencer. A pessoal transexual pode ansiar por uma mudança de sexo e se submeter à cirurgia sexual (redesignação sexual), ou não, se for o caso. A travesti veste roupas e acessórios associados ao sexo oposto. O conceito está ligado às expressões de gênero. Vive parte do dia ou até mesmo o dia a dia como sendo do sexo oposto. É uma identidade feminina. Muitas modificam seus nomes, corte de cabelo, modos, trejeitos e timbre de voz. Algumas podem utilizar hormônios e realizar cirurgias plásticas. Mas, como geralmente não há o desconforto com seu sexo de nascimento, não costumam fazer a cirurgia de redesignação. Por fim, a drag queen é uma personagem. Não é uma expressão de gênero, já que a pessoa não vive travestida no dia a dia, se produz – roupa, maquiagem, penteado – para uma performance artística. Pode ser de qualquer gênero ou orientação sexual. (FREITAS, Carolina. A diferença entre transexual, travesti e transgênero. Disponível em: [https://sexosemduvida.com/a-diferenca-entre-transexual-travesti-e-transgenero]. Acesso em: 17 jul. 2018).
Objeto e alcance. Alteração versus mudança
O provimento estabelece as diretrizes a serem observadas pelos oficiais do registro civil de pessoas naturais quanto aos requerimentos de averbação para “alteração” de prenome, agnome e gênero nos assentos civis de nascimento e casamento (se for o caso). Em verdade, quando a norma em tela menciona “alterar”, deixa implícita a ideia de “mudar”, de conteúdo e alcance mais abrangente. Alterar é diferente de mudar e de retificar. Na alteração não se cogita reparar erro; modifica-se o que era certo e definitivo, geralmente implicando acréscimo. Na mudança há a substituição de um nome (ou prenome) por outro, envolvendo propósito mais amplo do que a alteração. Quem muda, adota outro nome ou o transforma completamente. Já quem altera, introduz modificação que não retira do nome o seu caráter anterior, permanecendo reconhecível, ao passo que na retificação se corrige um erro ou se repara uma omissão na redação do assento de nascimento em qualquer de seus elementos obrigatórios por lei (RODRIGUES, Marcelo Guimarães. Tratado de registros públicos e direito notarial. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2016. p. 118).
Prenome e agnome. Conceitos e natureza jurídica
O prenome é elemento obrigatório dos assentos civis de nascimento (art. 54, § 4º, da LRP), casamento (art. 70, § 1º, da LRP) e óbito (art. 80, § 3º, da LRP). Trata-se de direito da personalidade nato, vale dizer, inexiste direito adquirido a ele, constituído que é com certa liberdade de escolha, restringindo o Estado o registro de prenome vexatório, constrangedor ou ridículo (art. 55, parágrafo único, da LRP). E, em que pese seja situação de índole subjetiva, cumpre ser verificada com objetividade. Civilistas germânicos consideraram que o registro do prenome no assento de nascimento tem eficácia constitutiva, dado que se cuida de direito nato. Torna-se obrigatório o emprego de prenome duplo no caso de registro de nascimento de gêmeos ou simplesmente irmãos com igual prenome, de forma que possam ser diferenciados. Agnome é o elemento do nome civil usado para designar um indivíduo, distinguindo-o de seus homônimos. De fato, algumas famílias possuem membros com os mesmos prenome e sobrenome, de modo que, para diferenciá-los, é acrescido um agnome, como Júnior, Filho, Neto, Sobrinho etc. Frise-se que a mudança de prenome não compreende qualquer interferência nos nomes de família e não pode ensejar a identidade de prenome com outro membro da família. Isso se explica diante da natureza jurídica distinta dos sobrenomes, na medida em que se prestam a identificar não propriamente o indivíduo, mas sim todo o grupo familiar, como entidade. Nessa perspectiva, lícito não é, em regra, ao indivíduo dispor de algo que não lhe pertence. Convém lembrar que o novo prenome será definitivo dentro do sexo a que corresponder e sua alteração somente poderá ser promovida mediante decisão judicial.
Designação de gênero
A normativa da Corregedoria Nacional de Justiça prevê a possibilidade de “alteração” (rectius: mudança) do gênero indicado nos assentos de nascimento e de casamento. Todavia, a designação do sexo é obrigatória apenas nos assentos de nascimento e óbito. Esse elemento não é indicado no assento de casamento em nenhuma circunstância no texto da Lei dos Registros Públicos, tal como se vê em vigor (art. 70, 1º a 10 e seu parágrafo único). Sua inclusão no assento civil de casamento, ainda que por opção do interessado, abrirá margem a uma disrupção, na medida em que ao lado dos assentos que por lei não abrigam tal elemento outros surgirão que, com base no aludido provimento, poderão contê-lo. A averbação, nesse caso, haverá de ser realizada na perspectiva de uma verdadeira retificação do assento, de modo a preencher uma lacuna registral que, diga-se de passagem, não deriva da lei em sentido formal. Faz-se de conta que o registro de casamento apresenta uma omissão em um de seus elementos informativos, pela opção exclusiva do interessado. Creio não ter sido essa a melhor opção.
Natureza jurídica
Não se trata de ação, mas sim de procedimento de índole administrativa. Inexiste lide. O procedimento será realizado com base na autonomia da pessoa requerente, que deverá declarar, perante o registrador do RCPN, a vontade de proceder à adequação da identidade mediante a averbação do prenome, do gênero ou de ambos. E independe de prévia autorização judicial ou da comprovação de realização de cirurgia de redesignação sexual e/ou de tratamento hormonal ou patologizante. O registrador deverá identificar a pessoa requerente mediante coleta, em termo próprio, conforme modelo constante do anexo desse provimento, de sua qualificação e assinatura, além de conferir os documentos pessoais originais. O requerimento será assinado pela pessoa requerente na presença do registrador do RCPN, indicando a alteração pretendida. Não é exigida a representação processual por profissional da advocacia ou da Defensoria Pública.
Averbação obrigatória do CPF, identidade civil e título de eleitor
Antes da averbação da alteração de gênero e prenome, o registrador deverá realizar a averbação do número do Cadastro de Pessoa Física – CPF e anotação da Carteira de Identidade e do número do Título de Eleitor, nos termos do Provimento 63 da Corregedoria Nacional de Justiça. Cabe destacar que será realizado um ato de averbação pela mudança do prenome e do sexo, outro ato de averbação para a inclusão do CPF, gratuita e ressarcível, nesse caso, e outro ato para a anotação da identidade civil e título de eleitor. Essa averbação adicional, em caráter excepcional, será realizada previamente e de ofício pelo oficial registrador, vale dizer, independentemente de requerimento da parte interessada, em atenção ao princípio fundante da especialização subjetiva. Aos reconhecidamente pobres, que assim se declararem, é assegurado que todos os atos mencionados serão gratuitos.
Laudo médico ou psicológico
O atendimento do pedido apresentado ao registrador civil independe da apresentação de laudo médico ou psicológico, nos termos do referido provimento. Segundo as notas taquigráficas do julgamento da ADI 4.275/DF, o relator originário, ministro Marco Aurélio, restou vencido nesse aspecto, dado que estabelecia em seu voto a necessidade de um diagnóstico conclusivo por equipe médica especializada e multidisciplinar, no sentido de atestar a definitividade da mudança. A exigência, longe de se constituir em entrave burocrático, resguardaria a segurança jurídica preventiva imanente ao sistema de publicidade registral. E a estabilidade do registro é aspecto que muito contribui para a garantia desse objetivo. Como ficou exposto, favorece idas e vindas em ponto nuclear da identificação civil, mormente de indivíduos propensos à instabilidade emocional, inseguros à autodeterminação do próprio gênero. Afinal, o registro estaria franqueado, de certa forma, aos influxos de uma indesejável fluidez. Em Portugal, i.e., vetou o Presidente da República (devolveu sem promulgação) – professor de direito constitucional, advogado e jornalista Marcelo Rebelo de Sousa – projeto de lei aprovado na Assembleia da República (75/XII, 09.05.2018) com o mesmo objetivo e finalidade, ponderando em suas razões incluir um relatório médico para a mudança de sexo no registo civil, nomeadamente para pessoas entre 16 e 18 anos de idade: “A razão de ser dessa solicitação não se prende com qualquer qualificação da situação em causa como patologia ou situação mental anômala, que não é, mas com duas considerações muito simples. A primeira é a de que importa deixar a quem escolhe o máximo de liberdade ou autonomia para eventual reponderação da sua opção, em momento subsequente, se for caso disso. O parecer constante de relatório médico pode ajudar a consolidar a aludida escolha, sem a predeterminar”. Isso porque, “Hipoteticamente, poderia haver uma escolha frustrada, ao menos em parte, pelo juízo clínico formulado para efeitos de adaptação do corpo à identidade de gênero, quando tal for a opção”. Lembrou S. Exa. – nota que perfeitamente se encaixa na situação brasileira, a partir do teor do Provimento 73 da Corregedoria Nacional de Justiça –, “que a mudança de gênero e do prenome não podem ser consideradas, numa perspectiva intertemporal, como inteiramente livres, já que prevê uma decisão judicial para uma segunda e eventual alteração” (Disponível em: <http://www.presidencia.pt/archive/doc/Carta_AR_20180509.pdf>. Acesso em: 18 jul. 2018).
Repristinação parcial dos assentos de nascimento e casamento no RCPN
A normativa em comento prevê a possibilidade de ser desconstituída na via administrativa, mediante autorização do juiz corregedor permanente (em Minas Gerais, juiz de Direito com competência para a matéria de Registros Públicos, em procedimento de jurisdição voluntária), ou na via judicial (idem, em procedimento contencioso), a alteração (rectius: mudança) do prenome e do gênero (art. 2º, § 3º). Vale dizer, autorizou uma espécie de repristinação parcial do conteúdo dos assentos civis de nascimento e casamento, mas não por erro evidente que conduziria à situação de nulidade ou anulabilidade do assento, como, em regra, seria ditado pela praxis registral, e sim, antes, pela simples confissão da pessoa requerente, ainda que implícita, acerca da falta de uma perfeita compreensão de sua própria identidade autopercebida. O restabelecimento do gênero e do prenome originários pode ser procedido a qualquer momento, sem prazo mínimo de carência, segundo consta pelo próprio interessado, e somente por ele (legitimação ativa). Todavia, já aqui haverá de ser representado no procedimento ou processo judicial por advogado ou defensor público mediante pedido devidamente fundamentado e instruído. No completo silêncio da normativa, que, lacônica, ficou a dever maiores regramentos a respeito, parece ser a interpretação sistemática que mais se ajusta às suas diretrizes e à própria organicidade do Direito.
Atribuição especial de circunscrição territorial relativa
A averbação do prenome, do gênero ou de ambos poderá ser realizada diretamente no ofício do RCPN em que o(s) assento(s) foi(ram) lavrado(s). Todavia, há previsão também para a formulação do pedido em ofício do RCPN diverso do que lavrou o assento (art. 3º, parágrafo único). Nesse caso, deverá o registrador encaminhar o procedimento ao oficial competente, às expensas da pessoa requerente, para a averbação pela Central de Informações do Registro Civil (CRC). Preferencialmente, apura-se por simetria que esse “ofício diverso” a que se refere a normativa em tela será o do domicílio atual do requerente, em consonância com a previsão legal similar para a prática de outros atos de atribuição do registro civil (arts. 50, caput e § 1º, e 67, § 4º, ambos da LRP). Sem prejuízo, em que pese a omissão da norma em comento, cabe aqui a exigência de prática de ato de ofício voltado à comunicação escrita, preferencialmente por meio eletrônico (em tempo real), entre as unidades interligadas de Registro Civil, tendo em conta que se trata de ato vinculado do oficial registrador civil de pessoas naturais, em prol da segurança jurídica (arts. 93, 103 e 106, parágrafo único, todos da LRP).
Inexistência de processo judicial
A pessoa requerente, que estipula o provimento, deverá declarar a inexistência de processo judicial que tenha por objeto a alteração pretendida, como verdadeira condição de procedibilidade (art. 4º, § 4º). Em complemento, é fixado que a “tramitação anterior de processo judicial cujo objeto tenha sido a alteração pretendida será condicionada à comprovação de arquivamento do feito judicial” (art. 4º, § 5º). “Arquivamento” seguramente não terá sido o vocábulo mais adequado para o fim desejado, na medida em que se trata de ato processual de mero expediente que pode resultar dos mais variados motivos, conduzido por diferentes resultados e, nesses vieses, comportando múltiplos significados. Na seara de Direito Formal, a precisão é a tônica e quanto menor a margem para ambiguidades e juízos discricionários mais ganham a segurança jurídica e a eficácia como objetivos maiores de produzir os efeitos jurídicos desejados. O arquivamento pode ocorrer quando cessam todos os atos que poderiam ser praticados pelas partes ou pelo juiz. Ou, no caso de inércia das partes interessadas – desde que previamente intimadas e omissas permaneceram –, o juiz manda que “os autos sejam arquivados”, em princípio, apenas (em tese) provisoriamente. Dependendo do motivo do arquivamento, a parte poderá requerer o seu desarquivamento e retomar os trâmites da ação outrora interrompidos. Em outros casos não há mais meios que permitam movimentar novamente aquele processo, como se dá na situação em que a pretensão foi alcançada pela prescrição intercorrente. Ou, ainda, quando extinto o feito por julgamento definitivo, revestida a decisão pela coisa julgada material. Portanto, “arquivamento” dos autos é expressão ambígua, imprecisa e atécnica, podendo significar ao mesmo tempo o ato ou efeito de arquivar, depositar, guardar em arquivo, autos encerrados, provisoriamente ou definitivamente, com ou sem julgamento definitivo, revestidos ou não da coisa julgada etc. Pertinente, então, se mostra a indagação sobre qual o tipo e a natureza jurídica do ato que, no caso concreto, levou ao arquivamento do anterior feito judicial cujo objeto tenha sido a alteração pretendida, agora formulada novamente perante o oficial do registro civil. Todos esses questionamentos serão válidos e poderão resultar em formulação de exigências pelo oficial registrador a serem cumpridas pela pessoa requerente no caso concreto, desde que as certidões dos distribuidores cíveis e criminais exigidas previamente não sejam aptas – e normalmente não serão – para ilustrar com precisão o que de direito sucedeu na tramitação do anterior processo judicial. Vale antecipar que, ao menos, diante de sentença anterior transitada em julgado em processo contencioso (coisa julgada material), impedido(a) estará o(a) interessado(a) de renovar a mesma pretensão em juízo ou fora dele.
Escrituração
A normativa prevê a confecção de um índice específico – físico ou eletrônico –, de forma que permita a localização do(s) assento(s) averbado(s) tanto pelo nome original quanto pelo nome alterado. Trata-se de uma simples lista contendo cada averbação de gênero e prenome em nomes individuais, assim como a data respectiva para facilitação das buscas. De modo geral, é imperioso à consecução do objetivo de segurança jurídica que exista uma rede completa e interligada de informações sobre os atos praticados em cada serventia. Essa rede de segurança pressupõe, ainda, as remissões recíprocas perfeitamente atualizadas, inclusive entre diferentes ofícios de registro civil mediante a providência – sempre obrigatória – das comunicações escritas, seja por meio físico, seja por meio digital, conforme o caso. Como se sabe, os assentos de nascimento são averbados na terceira coluna do Livro A e os de casamento, na terceira coluna do Livro B (arts. 33, I a V, e 106 da LRP). Quanto às serventias do RCPN mais antigas das sedes de comarca, que escrituram, em acréscimo, o Livro E (art. 89 e seguintes da LRP), as certidões de nascimento, casamento, nascimento de filho, óbito e dos demais atos que forem ali escriturados não poderão conter referência à substituição de prenome, sexo, ou ambos, que for promovida na forma do aludido provimento, salvo se mediante requisição judicial.
Restrição de publicidade
Na certidão emitida, após a mudança de gênero e prenome, deverá constar a informação da existência de “averbação à margem do termo”, conforme prevê o art. 21 e parágrafo único da Lei Federal 6.015/1973, e os números do CPF, da Carteira de Identidade e do Título de Eleitor, conforme prevê o art. 6º, §§ 2º e 3º, do Provimento 63 do mesmo órgão correicional. Já a certidão de inteiro teor poderá ser emitida a requerimento expresso do registrado, de procurador com poderes específicos, ou ainda mediante autorização judicial.
Anuência prévia como condição de procedibilidade
A subsequente averbação da mudança do prenome e do gênero no registro de nascimento dos descendentes da pessoa requerente dependerá da anuência deles quando relativamente capazes ou maiores, bem como da de ambos os pais (art. 8º, § 2º), assim como a subsequente averbação da alteração do prenome e do gênero no registro de casamento dependerá da anuência do cônjuge (art. 8º, § 3º). Em caso de discordância dos pais ou do cônjuge quanto às averbações mencionadas nos parágrafos anteriores, o consentimento deverá ser suprido judicialmente (art. 8º, § 4º). Em relação ao registro de casamento, trata-se de assento que, por natureza, não é individual, lavrado sempre em nome de dois indivíduos, ambos ostentando a titularidade de direitos e deveres recíprocos perante a lei civil, conforme o ordenamento jurídico em vigor. Assim, é coerente que se aponte a necessidade de prévia anuência do consorte para a mudança dos caracteres individuais obrigatórios lançados anteriormente no registro. Desde que rompido o vínculo pelo divórcio ou pelo óbito devidamente comprovado, não mais subsiste base jurídica para a exigência contida no aludido provimento. Outra situação, relativamente frequente, será a do simples desaparecimento ou abandono da moradia conjugal, sem paradeiro ou contato conhecido. Aqui, haverá necessidade do suprimento judicial. Importante frisar que, para a subsequente averbação da mudança do prenome e do gênero no registro de nascimento dos descendentes da pessoa requerente, valerá como pressuposto a anterior averbação no assento de casamento, evidenciando a manutenção de uma cadeia sequencial de atos civis obrigatórios por lei (princípio da continuidade registral). Quanto aos descendentes, ainda no caso de casamento civil de seus genitores, necessitam declarar sua anuência para a averbação do ato – mudança do gênero e prenome do pai ou da mãe – em seus assentos de nascimento, caso já maiores e capazes, dado que essa subsequente averbação não se opera de forma automática, pois alcança direito de terceiros.
Conclusão
Uma das causas da reconhecida explosão de demandas no Judiciário brasileiro tem sido a omissão do Poder Legislativo em enfrentar temas espinhosos que eventualmente desagradem setores consideráveis da sociedade e de grupos políticos com ascendência sobre as respectivas bancadas. À luz dessas anomalias, o debate democrático, próprio de uma sociedade plural e desigual, é subtraído de seu foro natural e deslocado ao Poder Judiciário em fenômeno que, por sua vez, favorece a deflagração de outra situação excepcional, matéria de debates entre estudiosos, denominada de ativismo judicial. O certo é que, por imperativo legal, é vedado ao juiz deixar de julgar a demanda proposta pela parte requerente, ainda que não contenciosa, sob o argumento de inexistência de lei específica (art. 4º da LINDB). E o fato social, como se sabe, não espera a regulamentação legislativa, exigindo do magistrado a reclamada resposta do estado na tutela dos direitos invocados no caso concreto. Por outro lado, o sistema de publicidade registral tal como concebido no ordenamento jurídico em vigor, formatado sob as diretrizes do Notariado Latino, tem por premissa maior a prevenção dos litígios na busca da segurança jurídica preventiva. Nesse viés, salutar se mostra a edição do aludido provimento pela Corregedoria Nacional de Justiça, na esteira do julgamento, pelo Pleno do Supremo Tribunal Federal, da ADI 4.275/DF, pelo qual se extraiu, a requerimento da Procuradoria-Geral da República, interpretação ao art. 58 da Lei dos Registros Públicos, consoante a Constituição em vigor, mormente em matéria tão expressiva à cidadania cujo ponto nuclear principia nos denominados direitos da personalidade. A normativa, a par de bem-intencionada, apresenta aspectos que merecem algum aperfeiçoamento, conforme já anotado. O ponto de inflexão maior, talvez, seja marcado por sua temporalidade intrínseca, dado que se constata – e apenas se trata aqui de uma constatação, nada mais. As democracias tradicionais dos países ocidentais do continente europeu e alguns estados norte-americanos claramente avançam para a institucionalização do gênero “neutro” nos assentos de nascimento, a esvaziar, com o passar do tempo, toda essa sorte de providências e dispêndios estatais inclusive no que diz respeito à necessidade de modificação dos prenomes.
(Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2018/05/28/internacional/1527518795_375351.html>; <https://moemafiuza.jusbrasil.com.br/noticias/114880399/genero-neutro-e-reconhecido-pela-suprema-corte-da-australia>; <http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/572891-estados-unidos-genero-neutro-no-ato-de-nascimento>; <https://internacional.estadao.com.br/noticias/nytiw,escolas-da-suecia-eliminam-pronomes-de-genero,70002248441>. Acesso em: 23 jul. 2018).
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