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AIDS (SIDA) – um enfoque ético-político

AIDS

SIDA

VIREMIA

Genival Veloso de França

Genival Veloso de França

11/03/2016

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Resumo: O autor além de relacionar a AIDS com a situação atual, focaliza a gravidade desta doença e chama a atenção principalmente para os preconceitos em torno de seus aspectos epidêmicos e morais.  Insiste em dizer que é obrigação do poder público dar as condições necessárias para tratar esses doentes com a dignidade que merece a condição humana e relata as deficiências da legislação frente às diversas formas de relação com estes pacientes. Faz ver à sociedade que a única forma de vencer este mal é protegendo e amparando os que estão sendo atingidos.

Unitermos: Aids – enfoque ético-social. SIDA. Viremia.

Preliminares

Acreditamos que, em nenhum momento da existência humana, houve um inimigo biológico tão sombrio e cruel, capaz de trazer mais desafios e de confundir tanto a opinião pública como a AIDS. Certamente, ainda vamos permanecer atônitos e perplexos por muito tempo, mesmo depois da descoberta do seu tratamento, porque inúmeras são as implicações dessa nova ordem no contexto das relações sociais. Nenhuma doença trouxe, no seu conjunto, tanta complexidade e inquietação quanto a AIDS, seja no seu aspecto epidêmico, moral ou imunológico, seja no seu caráter incurável e letal. E não poderia ser de outro modo.

No entanto, a partir do instante de uma reflexão mais atenta, começamos a enxergar uma multidão de fatos que alucina e dá à AIDS um rótulo maldito e fatal. Mas tão contraditório, a ponto de não existir ainda uma resposta imediata para justificar o seu aparecimento, se ela é ou não uma doença atual e qual a razão de sua trágica rapidez. Seria ela uma nova doença tão ao gosto das mentes especulativas ou apenas a reorganização sistemática de uma propedêutica sobre o que já existia?

Mesmo que a intuição científica nos dê a esperança de que estamos marchando para a cura da AIDS, muitas verdades médicas ainda não foram reveladas, e o preconceito continua a crescer como uma avalanche medonha e avassaladora. O perigo de tal avanço é que essa doença saia do corpo dos pacientes e permaneça na imaginação de todos, estigmatizada pela discriminação odiosa e fantasiada pelo modismo que contamina os doentes, a sociedade e os próprios médicos. O risco, portanto, é se transformar a AIDS em uma metáfora, ou criar-se uma ideologia política autoritária capaz de promover o medo como controle social mais rigoroso. Antes, a tuberculose era uma doença impregnada por uma aura romântica. A AIDS não. Ela tem um estigma comprometedor e pode se transformar em uma síntese do mal como se a natureza estivesse se vingando dos horrores do mundo. De uma maneira ou de outra, as doenças sempre foram usadas como metáforas contra uma sociedade que é amoral ou injusta, como quem emite um apelo racional.

Quando se disse, no início, que ela seria uma entidade dos homossexuais, era de fato dos homossexuais porque apenas neles se procurou a doença. Depois, afirmou-se que podia ser ainda dos consumidores de drogas injetáveis e passou a ser igualmente deles. Agora, é também dos heterossexuais, e a sua incidência, segundo essa visão, é cada vez maior. Já se sabe que, sendo a AIDS uma virose clássica e tendo como via principal de contágio o ato sexual, e admitindo-se que as pessoas são, em sua maioria, heterossexuais, hoje a prevalência dos pacientes e infectados seria de heterossexuais.

O fato é que hoje, em toda parte, os portadores de AIDS enfrentam uma situação constrangedora. Sofrem o horror de uma doença que os estigmatiza no convívio social e os avilta na luta pelos meios de sobrevivência. São doentes marginais do desprezo e do abandono, mesmo dos que lhes são próximos. Negam-lhes tudo: o afeto, a estima, a solidariedade e, até, o direito de morrer com dignidade.

Vejamos a seguir algumas dessas situações.

Esterilização dos HIV-positivos

Qualquer que seja o andamento da discussão que favorece a esterilização humana, como proposta de inserção em uma política de planejamento demográfico, não existe nenhuma justificativa de ordem ética ou legal capaz de legitimar essa prática em pessoas portadoras de sorologia positiva para o vírus da imunodeficiência humana (HIV), porque qualquer forma de insinuação eugênica traz sempre o ranço do constrangimento e as marcas da intolerância.

Mais grave do que esterilizar um homem ou uma mulher, mesmo doente, é invadir a intimidade de um ser humano, aviltando-o na sua dignidade e mutilando-o nas suas funções, unicamente com o sentido de privar a sociedade da responsabilidade, da vigilância e dos cuidados, pelo fato de ser portador mais de um estigma do que de uma doença, deixando bem claro o indisfarçado preconceito contra esses indivíduos, expostos quase sempre às manobras da hipocrisia e do egoísmo.

O aborto e a gravidez da mulher infectada pelo HIV

Mesmo que exista o risco de contaminação ou de doença do feto, não se permite legalmente nem se considera eticamente defensável a prática do abortamento da mulher infectada pelo HIV. O Código de Ética Médica em vigor, em consonância com a legislação penal brasileira, só admite o aborto em duas situações: para salvar a vida da gestante ou nos casos de gravidez resultante de estupro.

Pelo fato de se tratar de uma matéria sem resposta definitiva, no que diz respeito à influência da sorologia positiva no processo gestacional e da própria saúde do feto, nossa opinião é que não existe nenhum argumento ético, jurídico ou técnico capaz de fundamentar a interrupção de uma gravidez em mulher portadora de HIV ou mesmo da doença AIDS, a não ser que suas condições de saúde sejam agravadas pela gestação, que cessada a gravidez cesse o perigo e que não haja outro meio de salvar-lhe a vida.

Ainda que exista uma possibilidade de morte precoce, de sofrimento oriundo da doença, de riscos de contaminação do feto e de informações desestimuladoras, esses fatos nem sempre têm desanimado as mulheres HIV-positivas na sua decisão de engravidar. Não se sabe ainda, por exemplo, a época exata da contaminação – se durante a vida intrauterina ou se no momento do parto – mas uma coisa é certa: a gravidez, nesta hipótese, não melhora nem piora as condições imunológicas das gestantes.

Assim, seja qual for o entendimento que se tenha a respeito da transmissão, das formas de infecção e do mecanismo de contágio, o médico não pode impedir essa mulher de engravidar e ter seu filho, se esse é o seu desejo. Mas, tão somente, oferecer-lhe todos os meios e recursos necessários e disponíveis para uma gestação nestas condições. Nenhum médico e nenhuma instituição de saúde pode negar-lhe assistência, pois isso é um ditame ético exigido a todos aqueles que professam a medicina, mesmo que possam ter um entendimento diverso sobre a questão, no seu plano conceitual e doutrinário.

Qualquer que seja a posição no sentido de que todas as gestantes façam ou não o teste sorológico, ou apenas aquelas de comportamento de risco, dois fatos são imperativos: primeiro, que o teste seja voluntário e que diante de sua negativa seja assegurado o acompanhamento do pré-natal e do parto; segundo, que seja garantido o sigilo do resultado.

Atualmente alguns especialistas nesta área apoiam a intenção dos soropositivos engravidarem, desde que respeitem determinadas condições de redução de riscos, entre elas fazer sexo desprotegido apenas na data provável do período fértil; estar com carga viral baixa; ter o CD4 (células de defesa) elevado; e não serem portadoras de outras doenças que agravem sua imunidade. Segundo estes especialistas se a carga viral estiver bem baixa e a doença sob controle rigoroso, o risco de transmissão é praticamente zero. Todavia, é preciso considerar que esta liberação não pode ser absoluta e que cada caso deve ser considerado per si para que a possibilidade de um soropositivo ter um filho sadio seja uma decisão segura.

A infecção pelo HIV e o recém-nascido

Ninguém discute aqui o valor e a procedência do diagnóstico precoce da infecção, permitindo à mulher utilizar-se de processos contraceptivos capazes de evitar a gravidez em tal estado, ou como forma de orientação de cuidados pré e pós-natais, no sentido de reduzir ao máximo risco de contaminação do feto ou do recém-nascido, além dos procedimentos necessários ao infante eventualmente infectado. Aqui também o exame deve ser facultativo, embora se deva registrar em prontuário a recusa da mãe gestante, principalmente se é ela do grupo chamado de procedimento de risco. O sigilo, quanto ao resultado, torna-se da mesma maneira obrigatório.

A infecção pelo HIV e o paciente terminal

No que se refere ao paciente terminal, acometido de AIDS, a conduta médica deve ser a mesma que se recomenda para todos os pacientes nesta situação de insalvável, que não esteja nas condições dos doentes privados da vida de relação e do controle da vida vegetativa. Deste modo não há como se permitir qualquer postura que não seja a da obrigação do médico em cuidar do paciente, utilizando-se dos recursos de manutenção da vida na sua fase terminal, independente da vontade dos familiares e, até mesmo, do próprio paciente nos chamados “testamentos em vida”, o qual não pode sujeitar o profissional a atitudes de confronto com sua consciência, com a norma e com seu Código de Ética.

O sigilo como instrumento social

É imperioso lembrar que a proteção do segredo médico é um direito do paciente, como forma definitiva de conquista da cidadania, e somente a ele cabe abrir mão desse privilégio. A não ser naquilo que o Código de Ética Médica desobriga: por justa causa ou por dever legal. O paciente infectado pelo HIV não foge a essa regra.

Se o paciente, neste particular, manifesta o desejo de que seus familiares não tenham conhecimento de suas condições, deve o médico respeitar tal decisão, persistindo essa proibição de quebra de sigilo mesmo após a sua morte. No entanto, é providencial que se exija do portador HIV-positivo a designação de uma pessoa de sua inteira confiança para servir de intermediário entre ele e quem o assiste, e que o paciente colabore no sentido de cientificar aos seus parceiros sexuais ou membros de grupo de uso de drogas pesadas, no intuito de evitar a propagação do mal. Por outro lado, é obrigatória a notificação à autoridade Sanitária de todos os casos com diagnóstico confirmado de AIDS. Não deve haver notificação dos casos de pessoas simplesmente infectadas pelo HIV.

Desse modo, só será permitida a quebra do sigilo profissional quando houver expressa autorização do paciente ou de seus responsáveis legais; por dever legal, nos casos de notificação compulsória à autoridade sanitária ou em preenchimento de atestados de óbito de portadores de AIDS; ou, por justa causa, nas situações de proteção da vida e da saúde de terceiros – membros de grupos de uso de drogas injetáveis ou comunicantes sexuais, quando o próprio paciente recusar-se a fornecer-lhes informações quanto à sua condição de infectado.

Se os portadores de HIV confiarem na preservação do sigilo das informações prestadas às equipes multiprofissionais que cuidam desses casos, e que somente na condição de doentes de AIDS haveria comunicação aos setores sanitários responsáveis, além da certeza do respeito a sua privacidade, estaria resolvida, em parte, a questão dos exames periódicos voluntários, contribuindo de forma significativa para o controle e a avaliação do quadro epidemiológico.

Em um caso no qual um paciente foi diagnosticado como portador do vírus HIV, a Terceira Turma do STJ negou invasão de privacidade e indenização por violação de intimidade em recurso contra um Hospital de São Paulo pelo fato de o exame específico ter sido solicitado por erro e sem o conhecimento do paciente.

O princípio adotado pela maioria foi o de que o direito à intimidade sucumbe diante de um direito maior, que é o direito à vida. O pedido já havia sido negado em primeira instância, entendimento confirmado no Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP).

O tribunal paulista considerou não ter havido nexo de causalidade (relação de causa e efeito) entre a conduta do hospital e o possível dano psíquico causado ao paciente. Afirmou, ainda, que nesse caso não houve comunicação errônea de uma doença, mas tão somente a comunicação de um resultado efetivamente positivo, o qual não foi divulgado para terceiros e que seu conhecimento beneficiaria o doente.

O paciente recorreu ao STJ insistindo que sua intimidade teria sido violada e que não seria necessário provar o nexo causal, pois ele não havia solicitado o exame para pesquisa do vírus HIV tampouco sido avisado sobre o mesmo.

Mesmo assim, a ministra Nancy Andrighi, relatora do processo, considerou haver negligência do Hospital, pois é indiscutível que houve erro no pedido de exame. Para a relatora, teria havido “investigação abusiva da vida alheia” e, portanto, uma agressão à intimidade. “A questão da constatação da doença propiciar melhores condições de tratamento, por si só, não retira a ilicitude de sua conduta – negligente – de realizar exame não autorizado.” A ministra considerou que o paciente faria jus à indenização.

Entretanto, o ministro Massami Uyeda, em voto-vista, considerou não ter havido violação de intimidade. “Esse direito [à intimidade] não é absoluto, como aliás não é qualquer direito individual”, afirmou. Argumentou que há um direito maior a preservar no caso, seja no prisma individual ou no coletivo, que é o direito à vida. Mesmo que o paciente não tivesse interesse ou desejo de saber sobre a enfermidade, a informação correta e sigilosa não ofenderia sua intimidade, diante do interesse maior à preservação da vida. Para esse ministro, já que houve interesse em realizar exames, é obvio existir interesse do paciente em preservar a própria saúde. O relator afirmou que não seria razoável que alguém, buscando saúde, alegue ter o direito de não saber ser portador de doença grave. Além disso, não haveria erro na conduta do hospital, apesar do engano nos exames. O hospital não poderia deixar de informar o paciente do resultado positivo, já que a busca pela saúde é o objetivo primordial da instituição. Sob o ponto de vista do interesse público, é essencial que o paciente de doença grave e transmissível, como a AIDS, tome providências para prevenir a disseminação da mesma. Acompanharam tal fundamentação os ministros Sidnei Beneti e Paulo de Tarso Sanseverino e o desembargador convocado Vasco Della Giustina (Fonte: STJ).

A inconveniência dos testes pré-admissionais

Uma das formas de preconceito mais evidente, na relação com possíveis portadores do HIV, é a solicitação de exames pré-admissionais que se vêm impondo como condição de ingresso no trabalho, na escola e, até mesmo, no internamento hospitalar, na expectativa de surpreender indivíduos sorologicamente positivos.

Entendemos que não existe qualquer justificativa técnica ou científica para tais exames. Quem necessita saber sobre esses resultados são os próprios indivíduos e as autoridades sanitárias que organizam suas campanhas e medem a extensão do problema. Agindo-se de tal maneira contra os soropositivos, além dos despropósitos ético e científico, o critério é humilhante e contrário aos interesses sociais, pois desagrega o indivíduo, empurrando-o para a marginalidade sem as possibilidades de trabalho, sem a assistência médica e sem as condições financeiras que favoreçam a sua sobrevivência.

Ninguém discute o direito dos empregadores de admitirem quem eles queiram. Todavia, os exames pré-admissionais devem ser feitos no sentido de proteger o trabalhador ou o funcionário público, e nunca como manobra vexatória e descabida, muitas vezes até fraudulenta, quando tais exames são feitos sem o conhecimento prévio dos candidatos. O pedido de testes, simplesmente para flagrar um ou outro portador do HIV, é imoral, constrangedor e atentatório à dignidade humana, pois não atende aos interesses do trabalho e do trabalhador, mas, tão só, no sentido de discriminar esses soropositivos.

No que se refere à posição dos médicos de empresas ou de juntas oficiais, todas as informações obtidas sobre esse assunto devem ser transmitidas apenas ao paciente. Qualquer informação sobre o empregado ao empregador limitar-se-á à aptidão ou à não aptidão do trabalhador e se temporária ou permanente para o desempenho de determinadas funções. A realização de testes sorológicos por imposição do empregador não encontra amparo técnico, científico ou moral, sendo esse assunto do interesse da autoridade sanitária. Até mesmo o poder público reconheceu seu equívoco, ao decidir, na Portaria Interministerial no 869, de 11 de agosto de 1992, dos Ministérios da Saúde e do Trabalho e da Administração, “proibir, no âmbito do serviço público, a exigência de testes de detecção de vírus da imunodeficiência adquirida, tanto nos testes pré-admissionais quanto nos exames periódicos de saúde”, considerando que a sorologia positiva não acarreta prejuízo da capacidade laborativa do seu portador, que os convívios social e profissional com portadores do vírus não configuram situações de risco, que a solidariedade e o combate à discriminação são fórmulas de que a sociedade dispõe para minorar o problema e que estas situações devem ser conduzidas segundo os preceitos da ética e do sigilo.

O Conselho Federal de Medicina determinou, por meio da Resolução CFM no 1.665/2003, que é vedada a realização compulsória da sorologia para HIV, em especial como condição necessária à internação hospitalar, pré-operatório, ou exames pré-admissionais ou periódicos e, ainda, em estabelecimentos prisionais.

Por fim, é bom que se enfatize ser a identificação de pacientes HIV-positivos em internamento hospitalar uma estratégia sem muita sustentação moral e nenhuma argumentação técnica, pois, na urgência, onde os aludidos riscos seriam mais evidentes, não haveria tempo para esperar o resultado sorológico. Haveria ainda o risco dos pacientes com viremia não serem atendidos e os sorologicamente negativos se negarem a realizar tais exames. Os pacientes, por sua vez, notadamente os submetidos a procedimentos invasivos, teriam também o direito de exigir, com muito mais razão, o teste dos médicos. O que se deve exigir urgentemente é um nível sério de cuidados, na proteção de todos os profissionais de saúde, com enfoque para aqueles casos em que a contaminação sanguínea seja possível. No entanto, se alguma instituição quiser exigir a triagem sorológica dos pacientes não emergenciais, para que esse modelo venha a ser eticamente discutível, é necessário que o exame seja voluntário e informado, que o paciente ao não aceitar o teste possa ser tratado sem nenhuma restrição, e que o paciente positivo tenha garantia do sigilo em relação ao resultado do exame e não sofra qualquer prejuízo na qualidade da assistência requerida.

O problema do menor infectado em estabelecimentos correcionais

Das tantas complexidades do problema, certamente a mais complicada é a do posicionamento a ser adotado pela equipe médica em face da solicitação de autoridade judicial ou administrativa sobre o fornecimento de dados relativos a menores infratores e detentos do sistema correcional, portadores de sorologia positiva para o HIV.

Em primeiro lugar, o médico não deve revelar às autoridades administrativas dos sistemas correcionais a identidade dos menores infratores com sorologia positiva. Não estaria justificada a quebra do sigilo pela suposta necessidade de adoção de medidas profiláticas, pois de nada adiantaria tal identificação, quando se sabe não existir nenhum procedimento que possa trazer benefícios ou que respeite a dignidade do menor, aumentando, isto sim, os riscos de segregação e de hostilidade. O que se deve fazer urgentemente é melhorar as condições do atendimento nessas instituições, hoje tão precárias e desumanas.

Depois, achamos conveniente revelar o fato aos pais ou aos seus responsáveis legais – no caso em tela, o juiz – por entender que aquele menor não tem a capacidade de avaliar seu problema e de conduzir-se por seus próprios meios para solucioná-lo, como recomenda o artigo 74 do Código de Ética Médica.

E, por fim, acreditamos ser necessária a revelação do segredo à equipe multiprofissional, que trata também do menor, por considerar que a solução do problema não é da exclusiva competência médica, mas de tantos outros profissionais, os quais, também, sujeitos à obrigatoriedade do sigilo.

A postura do médico infectado

Qual deve ser a postura do médico infectado pelo HIV ou portador de AIDS ou hepatite B  (VHB) e que necessita de exercer suas atividades profissionais?  Como todos os pacientes ele tem o direito à privacidade, ao sigilo e ao respeito que toda pessoa merece, não se podendo privar dele suas atividades no convívio social e do trabalho, respeitadas, é claro, as condições que seu estado de saú­de permite e o tipo de especialidade exercida.

Por outro lado, não se podem aceitar as recomendações do Centro de Controle de Doenças dos Estados Unidos (CDC), a partir de possibilidades remotas de transmissão do HIV, quando trata dos profissionais de saú­de infectados. Em primeiro lugar, não há razões de ordem técnica ou moral para a rea­li­zação sistemática e compulsória de sorologia anti-HIV em profissionais mais expostos, pois o risco de contaminação em alguns casos é quase nulo. Discute-se se existe ou não a necessidade da comunicação aos pacientes sobre a condição sorológica dos médicos infectados, que possam envolver-se nos chamados procedimentos invasivos (atos sujeitos a risco de contaminação por perfuração acidental percutâ­nea do profissional, por meio de contato do seu sangue com tecidos do paciente). Entendo que sim: o médico deve dizer ao paciente que é portador do HIV. Também não se vê a necessidade do impedimento de profissionais infectados de trabalharem normalmente em tarefas compatíveis com as suas condições de saú­de e com a modalidade de trabalho exercido, sem risco de contaminação.

No entanto, recomenda-se que o médico portador de sorologia positiva para o HIV, sponte sua, evite ou tome determinados cuidados em certos atos, principalmente nos procedimentos invasivos ou na manipulação de instrumental cortante ou perfurante capaz de passar sangue, acidentalmente, para o paciente, mesmo tendo em conta a probabilidade mínima de contaminação nesses casos. Não se considera errado o fato de a direção do corpo clínico discutir, caso a caso, a participação de cada profissional reconhecido como infectado, a partir do momento em que se evidenciam atitudes mais imprudentes por parte do médico em questão, pois deixar o problema sem nenhum controle também seria uma conduta irresponsável.

Em suma, o médico infectado pelo HIV ou hepatite  B  (VHB), como qualquer outra pessoa, deverá ter sua privacidade respeitada, não existindo a necessidade de ele informar sobre sua situação. Todavia, em procedimentos invasivos, o médico que conhece seu estado sorológico positivo está obrigado eticamente a levar o fato ao conhecimento das equipes de suporte e orientação, como, também, é dever dele informar ao paciente sobre o possível risco de contaminação. Sendo o médico não infectado e o paciente reconhecido como portador de sorologia positiva, havendo acidente em procedimento invasivo ou acidente com instrumental cortante ou pontiagudo, o médico tem que procurar aquelas equipes de orientação e submeter-se ao exame sorológico necessário.

Sobre este assunto o Conselho Federal emitiu a Recomendação CFM nº 7/2014.

A postura do médico ante os doentes
infectados pelo HIV

Nenhum médico pode recusar o atendimento profissional a pacientes portadores do vírus da imunodeficiência humana, pois essa assistência representa um imperativo moral da profissão médica. Assim se reporta em tom dogmático a Resolução CFM no 1.665, de 7 de maio de 2003.

Levando em conta que a medicina é uma profissão voltada para a saúde do ser humano e da coletividade e deve ser exercida sem nenhuma forma de discriminação; que a AIDS continua avançando e mudando seu perfil epidemiológico quando agride os diferentes grupos populacionais; e que o impacto da doença é medonho e limita o paciente, vulnerando-o física, moral, social e psicologicamente, tem-se de admitir que a obrigatoriedade do atendimento há de ser extensiva a todas as instituições de saúde, sejam elas públicas, privadas ou ditas filantrópicas.

É preciso também que esse atendimento seja integral e compatível com as normas de biossegurança recomendadas pela Organização Mundial de Saúde e pelo Ministério da Saúde, e, por isso, não se pode aventar qualquer forma de desconhecimento ou falta de condições técnicas para recusar a assistência. Essas instituições devem também propiciar a todos os profissionais de saúde condições dignas para o exercício da profissão, inclusive os recursos para a proteção contra a infecção, com base nos conhecimentos científicos disponíveis. A garantia dessas condições de atendimento é de responsabilidade do Diretor Técnico de cada estabelecimento de saúde.

Sobre os infectados pelo HIV, como já foi dito, o sigilo deve ser integralmente mantido, e isso implica, entre outros, os casos em que o paciente deseja que sua condição sorológica não seja revelada sequer aos familiares, continuando esse direito de manutenção do segredo mesmo após a morte do assistido (ver Declaração de Viena, sobre “Responsabilidade profissional dos médicos que tratam de pacientes com AIDS”, adotada pela 40a Assembleia Geral da AMM, em setembro de 1988, na Áustria).

As deficiências da legislação brasileira

Partindo do princípio de que as questões de saúde pública, primordialmente, representam um direito inerente à cidadania e uma irrecusável e fundamental obrigação do Estado, cabe, através de uma estratégia bem articulada junto ao Sistema Único de Saúde, uma atenção redobrada à prevenção, ao diagnóstico e ao tratamento da AIDS, assim como uma abordagem mais séria em favor dos infectados pelo HIV.

Ninguém pode desconhecer que essa doença é uma entidade sorológica grave, de evolução rápida e caminhando quase sempre para a morte e que, em face das suas características epidemiológicas, tende a se transformar em um sério problema de saúde pública, necessitando, também, de um encaminhamento que não deixe de contar com a participação de todos no seu controle e prevenção. Assim, é imperativa, antes de tudo, a participação democrática de todos os segmentos organizados e representativos da sociedade, a fim de pressionar o Estado que assuma, por decisão política, uma postura capaz de garantir a mais ampla cobertura sobre o problema.

Atualmente, muitos são os países que contam com normas específicas que regulam os direitos dos pacientes aidéticos e dos infectados, desde a proibição da rejeição de crianças sorologicamente positivas em escolas e creches, até a censura aos pedidos de testes para o HIV de pacientes em internamentos hospitalares.

Primeiro, é necessário que se assegure a esses pacientes o acesso ao tratamento adequado, seja no ambulatório, no hospital ou no domicílio, incluindo nisso o fornecimento gratuito de medicamentos específicos e eficazes no tratamento da AIDS, aprovados pelo Ministério da Saúde, a fim de que essas necessidades não se transformem em “casos de polícia”. Defendemos também a ideia, embora criticada por alguns, de que se estipule em cada hospital público ou privado, qualquer que seja sua especialidade, a obrigação de atendê-los, como forma de impedir que eles sejam rejeitados no internamento, por motivo de discriminação ou má vontade, mesmo sabendo da disponibilidade precária de leitos em nosso país.

Advogamos também a ideia de não se criarem leitos destinados aos pacientes apenas infectados pelo HIV, que porventura se internem nos hospitais para tratamento clínico ou cirúrgico, pois inevitavelmente seriam discriminados, dando-se, inclusive, oportunidade para a exigência dos testes pré-admissionais, convertendo-se em expediente vexatório, hostilizante e segregador.

Nessa legislação deve ficar bem claro o direito que tem o paciente HIV-positivo da manutenção do sigilo médico, do respeito à sua privacidade, o impedimento de demissão sem justa causa do seu trabalho, a proibição da divulgação do seu nome ou de seus parentes em listas de resultados de exames e o direito de ter solicitados seus exames complementares quando pedidos pelos seus médicos assistentes.

É necessário ainda que se estipulem em espaços gratuitos nos meios de comunicação para divulgação desses interesses a garantia dos pacientes aidéticos a todos os direitos trabalhistas, previdenciários e administrativos, além de assistência jurídica gratuita, acesso fácil e sem ônus ao tratamento dos hemofílicos como forma de prevenção à AIDS, o direito de receber visitas no hospital, de atendimento médico de urgência e de intercorrências clínicas, e o de ter seu corpo velado em locais de condições respeitosas, de acordo com a reverência que se deve à dignidade humana.

Outro fato é o da criação de serviços de diagnóstico gratuitos, estimulando-se assim os indivíduos ao autoexame, sem nenhum ônus e cujos resultados sejam dados através de meios que não identifiquem o paciente, mantendo-se o respeito à sua privacidade. Essa seria uma forma de fazer com que um maior número de pessoas procure esses exames.

Desestimular de uma vez por todas, não através de uma portaria, mas por meio de uma lei, a exigência de testes sorológicos para o HIV aos candidatos de concurso público ou ao acesso a empresas privadas, mesmo sabendo que um mandado de segurança, neste particular, seria um remédio tranquilo e eficaz.

Ficar evidente também, na legislação, a proibição da exigência de testes compulsórios de sorologia para o HIV, como condição obrigatória de internamento hospitalar, pré-operatório, assim como nos indivíduos recolhidos em estabelecimentos penitenciários, ou de internação, antes de serem recolhidos. Isto não tem nenhum subsídio técnico ou científico, nem ajudaria em nada esse problema, a não ser fomentar a discriminação e a intolerância.

Finalmente,  é necessário que se estipulem em lei especial as determinações da Resolução no 1.401/93, do Conselho Federal de Medicina, nas quais ficam obrigadas as empresas de seguro-
saúde, de medicina de grupo ou as cooperativas médicas, prestadoras direta ou indiretamente de assistência médico-hospitalar, ao atendimento de todas as enfermidades relacionadas no Código Internacional de Doenças da Organização Mundial da Saúde, não podendo impor restrições, quantitativas ou de qualquer natureza (ver Declaração de Madrid, sobre “AIDS”, adotada pela 39a Assembleia Geral da AMM, em outubro de 1987, na Espanha).

Conclusão

Se quisermos efetivamente lutar e vencer esse mal, devemos, em primeiro lugar, não procurar explicações absurdas para justificar nossa indiferença e as nossas limitações. Depois, ficar ao lado dos que estão sendo vitimados pelo flagelo da AIDS, nesse instante tão amargo da história da humanidade. Toda vez que discriminamos as vítimas, fortalecemos mais e mais este mal.

Mesmo admitindo-se que a AIDS seja, em parte, uma invenção nossa, ninguém pode escamotear a sua gravidade como entidade epidêmica, que agride o sistema imunológico de forma complexa, de assustadora rapidez e, até agora, incurável. E quando essa doença for privada de seu estigma discriminador e escapar da sua fatalidade, certamente a metáfora da AIDS perderá seu sentido.

Urge ainda – hoje, mais do que nunca – exigir do poder público as condições necessárias para tratar esses doentes com a dignidade que merece a condição humana, e fazer ver à própria sociedade que a única forma de vencer essa doença é protegendo e amparando os que estão sendo atingidos. E também denunciar todas as injustiças cometidas, mitigando as suas dores e compreendendo sua dolorosa solidão na hora do sofrimento e da morte.

A cura virá, não igualmente para todos. Mas, virá. É apenas uma questão de tempo.

Esta e outras epidemias passarão. Assim está escrito. O que fica, infelizmente, é a indiferença que o homem carrega consigo mesmo e a falta de convicção de que seu destino está inexoravelmente preso ao destino do outro. Se não, cabe mea culpa universal.


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