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A grande mídia como veículo da ortodoxia econômica

SALÁRIO MÍNIMO

Ana Frazão

Ana Frazão

28/09/2023

Quem acompanhou os recentes editoriais dos principais jornais do país sobre o aumento do salário mínimo deve ter constatado certa uniformidade nas posições, normalmente relacionadas às graves preocupações com a disciplina fiscal e o rombo das contas públicas.

Como exemplo, o título do editorial do jornal O Globo do sábado (26/8) já anunciava o tom da discussão: “Aumento do salário mínimo vai contra disciplina fiscal. Nova política de reajuste custará RS 82,4 bilhões até 2026. Governo precisa dizer de onde sairá o dinheiro”. Prosseguindo na leitura, fica claro o quanto o jornal adota todos os pressupostos da ortodoxia econômica para chegar à conclusão de que aumentar o salário mínimo para o valor de R$ 1.421, a pretexto de afagar o trabalhador, é perigosa demagogia populista.

editorial da Folha de S.Paulo do domingo (27/8) reflete as mesmas preocupações já no título: “Mínimo impensado. Regra para reajustes do piso salarial desconsidera novo contexto do Orçamento e da política social”. A leitura dos argumentos também mostra a total identidade com os pressupostos da ortodoxia econômica.

Outro aspecto que chama a atenção nos dois editoriais são os diagnósticos precisos e claros, como se a economia fosse uma ciência exata ou uma física social ou como se estivéssemos falando de assunto em relação ao qual não houvesse qualquer controvérsia. É a partir desse enquadramento que o aumento do salário mínimo é considerado medida absolutamente irresponsável e incompatível com a disciplina fiscal.

Ainda fica evidente a utilização de diversos argumentos elitistas, tais como o de que a iniciativa seria um afago ao trabalhador ou o de que haveria outros mecanismos para lutar contra a pobreza, como é o caso do Bolsa Família, argumento que foi especificamente utilizado pela Folha.

Com efeito, diante dos altos graus de pobreza e desigualdade existentes no Brasil, considerar uma proposta de aumento do salário mínimo para o valor de R$ 1.421 como um “afago populista e demagógico ao trabalhador” demonstra, no mínimo, grande insensibilidade diante da realidade triste daqueles que precisam (sobre)viver com uma quantia dessas por mês. O mínimo que se esperava em uma discussão pública de tal relevância seria que o aumento de bem-estar dos trabalhadores brasileiros fosse também considerado nessa equação.

A mesma insensibilidade está presente na tentativa de desvincular do salário mínimo o problema da pobreza e da desigualdade, uma vez que é indiscutível que as políticas assistencialistas, como o Bolsa Família, são complementares e não substitutivas de iniciativas que buscam assegurar cidadania a todos por meio de um trabalho e de uma remuneração dignos.

Importância do salário mínimo

Porém, o que mais chama a atenção nos referidos editoriais, que refletem a opinião majoritária ou quase totalitária da grande mídia brasileira, é a completa desconexão entre a abordagem do tema e os novos estudos e evidências empíricas que vêm revolucionando a forma como a própria economia vem compreendendo os efeitos do salário mínimo. Se há um ponto em relação ao qual a ortodoxia econômica tem precisado se reinventar é precisamente a questão do salário mínimo, tal como já adverti em artigo publicado no JOTA em 2021.

Naquela oportunidade, procurei mostrar os equívocos das premissas de que aumentos do salário mínimo necessariamente trazem efeitos nefastos para a economia, seja porque reduzem a oferta de emprego, seja porque comprometem os resultados econômicos como um todo. Novas evidências empíricas, inclusive as trazidas por David Card, ganhador do Prêmio Nobel, vêm mostrando que não há correlação entre o aumento do salário mínimo e os efeitos negativos que por décadas foram apontados pela ortodoxia econômica a partir de modelos abstratos.

Acresce que o aumento do salário mínimo, na medida em que traz impactos diretos para as camadas mais pobres da população, acaba gerando um importante efeito multiplicador, já que aumenta o poder de compra e o consumo, estimulando a demanda e dinamizando a economia, fator que a ortodoxia econômica faz questão de ignorar.

Mais recentemente, inclusive, pesquisas vêm demonstrando não somente a inexistência de efeitos negativos como a existência de efeitos positivos do aumento do salário mínimo, os quais certamente precisam ser contabilizados quando se está a analisar os efeitos de qualquer iniciativa governamental nesse sentido.

Salário mínimo e austeridade fiscal

Já no tocante ao atual modelo de austeridade fiscal, este é igualmente suscetível de inúmeras críticas, que procuram apontar que não faz qualquer sentido haver uma relação estática entre PIB e dívida pública, sem considerar a importância do gasto público que pode ser considerado investimento e motor para o maior crescimento econômico. Daí por que a ideia de austeridade é cada vez mais questionada por importantes autores, que mostram como o gasto público e o endividamento, se bem administrados, podem ser importantes indutores do crescimento econômico[1].

Logo, ao ignorar toda a complexidade da discussão econômica que está por trás do aumento do salário mínimo e também da dívida pública, esse tipo de postura acaba reverberando uma visão da economia que, além de ser reducionista e parcial, é claramente ideológica, na medida em que se descola das recentes evidências empíricas em torno do assunto. Aliás, é muito comum que medidas que beneficiam o povo sejam sempre taxadas de ideológicas ou populistas enquanto as que beneficiam as elites sejam consideradas como fruto de imperativos econômicos supostamente neutros e científicos e que ainda beneficiarão a todos.

Não é sem razão que Clara Mattei[2] afirma que a austeridade fiscal, embora se imponha com base em uma visão objetiva e neutra da teoria economia – a pure economics – é, na verdade, uma verdadeira arma na luta de classes, desempoderando a maioria e blindando o capitalismo contra a própria democracia.

Obviamente que não se está aqui sustentando que não deve haver preocupações com o gasto público nem muito menos se fazendo apologia da irresponsabilidade fiscal. O que se está sustentando é que a disciplina fiscal não pode ser alcançada a qualquer preço e que ainda precisa ser colocada em perspectiva quando o que está em jogo é a sobrevivência (minimamente) digna de inúmeros trabalhadores e pensionistas.

Daí por que um debate econômico em torno desse assunto precisa ser sério e aberto às controvérsias sobre os efeitos do salário mínimo e sobre o próprio alcance e razão da ser da austeridade fiscal. Ao não considerar esses fatores, o discurso da grande mídia reproduz o que Andre Lara Resende[3] chama de garrote ideológico, o que impede as pessoas de compreender que a exigência de equilíbrio das contas públicas, a qualquer preço e sob qualquer circunstância, paralisa a imprescindível atuação do Estado, impedindo que este atue tanto em prol do interesse público como do bom funcionamento do setor privado.

Não obstante, uma das principais formas pelas quais a ortodoxia econômica persiste e se alastra decorre de sofisticado network que une academia, grandes economistas, publicações importantes e estratégicas, think tanks, grande mídia e policy makers. O problema é que, como já se apontou em outras oportunidades, o mercado de ideias costuma ser bastante disfuncional, uma vez que tendem a prevalecer não propriamente as melhores ideias, mas sim as ideias que têm mais financiamento e canais de difusão e propagação.

Daí por que está mais do que na hora de pensarmos no papel que a grande mídia deve assumir no debate econômico a respeito das grandes questões da economia brasileira. Enquanto não criarmos mecanismos institucionais para viabilizar uma discussão econômica plural e atenta às evidências empíricas, a ideologia continuará se sobrepondo às evidências e ainda se apresentando como ciência neutra e avalorativa.

Fonte: Jota

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NOTAS

[1] Ver, dentre muitos, BLYTH, Mark,. Austerity. The History of a Dangerous Idea, Oxford: Oxford University Press, 2015; KELTON, Stephanie, The deficit myth. Modern Monetary Theory and the Birth of the People`s Economy, Public Affairs, 2020.

[2]The Capital Order. How economists invented austerity and paved the way to fascism. Chicago: University of Chicago Press, 2022. Ver também https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/austeridade-x-democracia-15032023

[3] RESENDE, André Lara. Camisa de força ideológica. A Crise da macroeconomia. São Paulo: Portfolio-Penguin, 2022, p. 13.

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