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A decisão do STF sobre o art. 19 do Marco Civil da Internet

Ana Frazão
15/07/2025
O Supremo Tribunal Federal finalmente concluiu o julgamento sobre o art. 19 do Marco Civil da Internet, ocasião em que, por um placar de 8 a 3, entendeu que o referido dispositivo é parcialmente inconstitucional[1]. Ficaram vencidos os ministros André Mendonça, Nunes Marques e Edson Fachin.
Antes de ingressar no exame da tese fixada pela maioria do tribunal, é importante lembrar que o art. 19 do Marco Civil da Internet foi pensado para uma realidade muito distinta daquela que se observa na atualidade e, além de tudo, tem um propósito específico – não responsabilizar as plataformas por atos de terceiro, salvo mediante ordem judicial – que já deveria delimitar o seu alcance.
Logo, há pelo menos quatro aspectos que merecem nossa atenção ao tratar do tema à luz do presente:
- Ao contrário do que se pensou inicialmente, a internet não é propriamente uma praça pública espontânea e de livre acesso, em que todos podem se manifestar em iguais condições. Há agentes poderosos que, por meio de diversas estratégias ilícitas, muitas das quais alimentam o que se chama de indústria da desinformação, conseguem dominar o debate público, o que é tolerado e fomentado pelo modelo de monetização das plataformas digitais. A consequência disso é um verdadeiro caos informacional, já que os critérios de priorização de conteúdos cada vez mais se distanciam da qualidade e progressivamente decorrem de iniciativas maliciosas e sem qualquer compromisso com discussões sérias e baseadas em evidências. Soma-se a isso o fato de que cada vez mais as informações são geradas por robôs, o que mostra que as plataformas se tornam praças públicas artificiais e muitas vezes destinadas a manipular os cidadãos.
- Ao contrário do que se pensava inicialmente, boa parte do fluxo informacional não decorre da interação espontânea de cidadãos, mas sim de conteúdos pagos. A falta de transparência impossibilita que os usuários identifiquem conteúdos espontâneos dos conteúdos pagos, aí incluídos os casos de publicidade disfarçada, o que já seria ilegal pelo Código de Defesa do Consumidor.
- Ao contrário do que se pensou inicialmente, as plataformas não são neutras em relação à parte significativa dos conteúdos que trafegam em sua rede. Na verdade, assumem um grande protagonismo neste fluxo informacional, pois atuam como verdadeiros gestores informacionais, na medida em que filtram, ranqueiam, priorizam e selecionam as informações que cada usuário deverá receber. Assim, há que se observar que a regra do art. 19 do Marco Civil da Internet, que parte da premissa de que a plataforma não poderia responder por atos de terceiro, não se aplica a casos em que a plataforma responde por ato próprio, ou seja, pelo ato de gestão informacional, especialmente quando ele é remunerado diretamente;
- Ao contrário do que se pensou inicialmente, os usuários das plataformas não recebem informações apenas no seu melhor interesse, mas, muitas vezes, a partir de estratégias que se aproveitam de suas fraquezas e vulnerabilidades para manipulá-los por meio de informações sabidamente falsas ou que possam interferir indevidamente em seus processos decisórios.
É inequívoco que todos esses aspectos precisam ser considerados para entendermos o contexto em que a decisão do STF foi proferida. Muitas das características acima mencionadas exigem que o art. 19 do Marco Civil seja interpretado de forma atenta à realidade concreta e ainda tendo em vista os valores constitucionais e as demais regras legais que também se aplicam às plataformas digitais.
Em face desses desafios, é compreensível que a maioria do STF tenha entendido que o art. 19 do Marco Civil da Internet, pelo menos do jeito que estava sendo interpretado e aplicado, não poderia ser considerado constitucional. Na verdade, tal artigo, aplicado irrestritamente a todos os conteúdos que trafegam nas plataformas digitais, estava criando um espaço de imunidade e irresponsabilidade para estas, com a geração de inúmeros danos a bens jurídicos da mais alta importância.
Embora tenha havido divergências mesmo entre os votos vencedores, o Tribunal estabeleceu uma consistente tese, baseada em diversos pontos[2], sendo que que a sua primeira parte diz respeito precisamente ao reconhecimento da inconstitucionalidade parcial e progressiva do art. 19 do MCI nos seguintes termos:
“1. O art. 19 da Lei 12.965/2014 (Marco Civil da Internet), que exige ordem judicial específica para a responsabilização civil de provedor de aplicações de internet por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros, é parcialmente inconstitucional. Há um estado de omissão parcial que decorre do fato de que a regra geral do art. 19 não confere proteção suficiente a bens jurídicos constitucionais de alta relevância (proteção de direitos fundamentais e da democracia)”.
A partir daí o STF fixou os critérios de interpretação do art. 19 do Marco Civil da Internet, com foco nas plataformas que são realmente gerenciadoras informacionais. Daí por que o item 6, da tese, ressalva que o art. 19 do Marco Civil continua se aplicando para os seguintes serviços:
(a) provedor de serviços de e-mail; (b) provedor de aplicações cuja finalidade primordial seja a realização de reuniões fechadas por vídeo ou voz; (c) provedor de serviços de mensageria instantânea (também chamadas de provedores de serviços de mensageria privada), exclusivamente no que diz respeito às comunicações interpessoais, resguardadas pelo sigilo das comunicações (art. 5º, inciso XII, da CF/88)”.
Pelas mesmas razões, esclarece o item 7 que “os provedores de aplicações de internet que funcionarem como marketplaces respondem civilmente de acordo com o Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90)”.
Feitos esses esclarecimentos, passa-se então para os pontos principais da tese em relação às plataformas que exercem o gerenciamento informacional, a começar pela interpretação do art. 19 do MCI.
Inicialmente, é importante ressaltar que, nos termos do item 2 da tese, “enquanto não sobrevier nova legislação, o art. 19 do MCI deve ser interpretado de forma que os provedores de aplicação de internet estão sujeitos à responsabilização civil, ressalvada a aplicação das disposições específicas da legislação eleitoral e os atos normativos expedidos pelo TSE”.
Fica claro, portanto, que a matéria eleitoral fica excluída deste comando, deixando para o TSE a fixação da responsabilidade das plataformas digitais.
Para os demais casos, a regra geral passa a ser a de que a responsabilidade da plataforma deixa de depender exclusivamente de ordem judicial, podendo ser deflagrada a partir de qualquer tipo de notificação.
É o que consta do item 3 da tese, segundo o qual “o provedor de aplicações de internet será responsabilizado civilmente, nos termos do art. 21 do MCI, pelos danos decorrentes de conteúdos gerados por terceiros em casos de crime ou atos ilícitos, sem prejuízo do dever de remoção do conteúdo. Aplica-se a mesma regra nos casos de contas denunciadas como inautênticas”.
Vale lembrar que o art. 21 do Marco Civil excetuava a regra geral do art. 19 para os casos de conteúdos de nudez ou atos sexuais de caráter privado, hipóteses em relação as quais a plataforma seria considerada responsável após notificação extrajudicial pela vítima ou seu representante legal.
Com efeito, o seu texto afirma que “o provedor de aplicações de internet que disponibilize conteúdo gerado por terceiros será responsabilizado subsidiariamente pela violação da intimidade decorrente da divulgação, sem autorização de seus participantes, de imagens, de vídeos ou de outros materiais contendo cenas de nudez ou de atos sexuais de caráter privado quando, após o recebimento de notificação pelo participante ou seu representante legal, deixar de promover, de forma diligente, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço, a indisponibilização desse conteúdo”.
Esclarece o seu parágrafo único que “a notificação prevista no caput deverá conter, sob pena de nulidade, elementos que permitam a identificação específica do material apontado como violador da intimidade do participante e a verificação da legitimidade para apresentação do pedido”.
Assim, o STF determinou que a regra do art. 21 – deflagração da responsabilidade mediante notificação extrajudicial – fosse estendida para os demais casos de crimes e atos ilícitos. A solução pode gerar algumas controvérsias, como advertiu a professora Caitlin Mulholland no mais recente episódio do podcast Direito Digital que trata do tema, ao mencionar que o art. 21 fala em responsabilidade subsidiária, o que não parece ser a melhor solução.
Entretanto, de forma geral, o entendimento do STF, ao lastrear a responsabilidade da plataforma no seu conhecimento da violação – o que pode ocorrer por qualquer tipo de notificação – mostra-se muito mais consentâneo com a realidade atual, especialmente nas hipóteses em que as plataformas atuam como gerenciadoras do fluxo informacional.
O STF teve o cuidado de excetuar da regra do art. 21 os crimes contra a honra, mantendo-os sob a incidência do art. 19: “Nas hipóteses de crime contra a honra aplica-se o art. 19 do MCI, sem prejuízo da possibilidade de remoção por notificação extrajudicial” (item 3.1).
Trata-se de solução interessante, considerando as dificuldades naturais para se delimitar as fronteiras entre o exercício regular da liberdade de expressão e as ofensas à honra. Com isso, o STF mostra a sua sensibilidade com o fato de que a tese fixada precisa ser compreendida e executada com certa objetividade pelas plataformas.
Todavia, o item 3.2 prevê determinação importante, afirmando que “em se tratando de sucessivas replicações do fato ofensivo já reconhecido por decisão judicial, todos os provedores de redes sociais deverão remover as publicações com idênticos conteúdos, independentemente de novas decisões judiciais, a partir de notificação judicial ou extrajudicial”.
Trata-se também de solução interessante pois, se já há decisão judicial a respeito do mesmo fato, as plataformas terão um critério objetivo e seguro para a remoção do conteúdo assim que puderem identificá-lo.
Como se pode observar, o tribunal foi cuidadoso ao deixar claro que a responsabilidade das plataformas é sempre subjetiva e, em qualquer caso, deve depender da prévia constatação dos deveres de cuidado. Em outras palavras, não pretendeu exigir das plataformas deveres inexequíveis ou de fim, mas tão somente que ajam de forma diligente para conter as violações de direito que podem ocorrer em suas redes.
Na próxima coluna, tratarei dos demais aspectos da tese fixada pelo STF e entrarei igualmente na discussão sobre se o STF usurpou a competência do Poder Legislativo.

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NOTAS
[1]https://noticias.stf.jus.br/postsnoticias/stf-define-parametros-para-responsabilizacao-de-plataformas-por-conteudos-de-terceiros/
[2]https://noticias-stf-wp-prd.s3.sa-east-1.amazonaws.com/wp-content/uploads/wpallimport/uploads/2025/06/26205223/MCI_tesesconsensuadas.pdf