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50 anos da implementação do laboratório neoliberal chileno

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50 anos da implementação do laboratório neoliberal chileno

Ana Frazão

Ana Frazão

05/12/2023

Há cinquenta anos, mais precisamente no dia 11.09.1973, ocorreu o golpe militar no Chile, ao que se seguiu, dentre diversas consequências, a introdução de medidas econômicas neoliberais radicais capitaneadas pelos chamados Chicago Boys, economistas chilenos que tiveram sua formação na Universidade de Chicago.

A importância da data justifica uma reflexão sobre o saldo dessas medidas e o que podemos aprender com a experiência chilena. Aliás, eu já havia dedicado uma coluna a esse tema, à luz do livro The Shock Therapy, em que Naomi Klein mostra como o neoliberalismo foi implementado no Chile por meio de reformas drásticas, que jamais seriam possíveis em situações de normalidade democrática. Daí terem sido executadas por meio de ordens militares, sem qualquer crítica ou oposição e ainda às custas de muitas mortes, violência e transtornos sociais.

 The Chile Project

Nesta oportunidade, utilizarei o recente e interessante livro de Sebastian Edwards The Chile Project. The story of theChicago Boys and the downfall of neoliberalism, até porque se trata de análise que tenta fugir às abordagens maniqueístas que normalmente caracterizam o tratamento do tema.

É interessante ressaltar que o autor define o neoliberalismo como um conjunto de crenças e recomendações de políticas que enfatizam o uso de mecanismos de mercado para resolver a maior parte dos problemas e das necessidades sociais, incluindo provisão e alocação de serviços sociais, tais como educação, pensões por idade, saúde, apoio para artes e transporte público. Assim, o neoliberalismo seria uma forma pura de capitalismo, em que os mercados são permitidos a funcionar na maior parte das esferas.

No livro, Edwards expõe como os Chicago Boys, que inicialmente tinham pouca influência no Chile, foram alçados aos arquitetos da política econômica com o golpe de 11 de setembro de 1973, tornando o Chile um verdadeiro laboratório neoliberal.

Verdade seja dita que Sergio De Castro, um dos expoentes dos Chicago Boys da época, foi intimado – e não propriamente convidado – para participar do governo militar como braço direito do então Ministro da Economia. Entretanto, uma vez no poder, Sérgio de Castro e os demais Chicago Boys sentiram-se bastante à vontade para, mesmo convivendo com um regime militar tão violento, posicionarem-se de forma apartada, para o fim de implementarem a reforma neoliberal.

Contando com amplo apoio dos Estados Unidos e das elites chilenas, o projeto dos Chicago Boys era radical: envolvia liberalização total de preços e taxas de juros, diminuição de tarifas de importação, privatização de empresas estatais, instituições de “vouchers-escola”, criação de contas individuais de pensão por aposentadoria e desregulação dos negócios e dos bancos.

Para Edwards, durante os quase vinte anos em que perdurou o laboratório neoliberal – uma vez que a redemocratização apenas ocorreu em 1990 – o projeto neoliberal foi executado e apresentou importantes conquistas. Não é sem razão que ele sintetiza a história da experiência neoliberal no Chile com duas palavras: sucesso e negligência.

Sucesso porque as medidas econômicas geraram rápido crescimento econômico e reduziram a pobreza, fazendo com que o Chile superasse a Argentina em todos os indicadores econômicos e se tornasse a maior renda per capita da América Latina em 2002. Negligência porque o projeto descuidou de várias questões importantes, notadamente o aumento da desigualdade – incluindo a de gênero – e a desproteção ambiental.

De toda sorte, foram provavelmente as conquistas econômicas que ocorreram no período que fizeram com que, por mais de trinta anos após o fim do regime militar, o projeto neoliberal continuasse a ser apoiado por diversos partidos políticos chilenos, incluindo o socialista. Aliás, muitas das atuais tensões políticas e econômicas do Chile refletem isso, embora Edwards conclua sua análise com a percepção de que o neoliberalismo estaria em declínio, especialmente na América Latina, sendo indícios disso as eleições de Gustavo Petro na Colômbia e Lula no Brasil. 

Entretanto, é preciso considerar que houve vários problemas na implementação do ideário neoliberal, a começar pela separação artificial entre a esfera econômica e política. Com efeito, a partir do momento em que crescimento econômico do país é colocado como valor supremo e que o funcionamento da economia se torna mais importante do que a vida das pessoas, tem-se cenário extremamente preocupante.

Mais do que isso, a indevida separação entre a esfera econômica e a política gera uma das contradições insuperáveis do projeto neoliberal: o apoio a regimes ditatoriais e as atrocidades por eles praticadas. Não é sem razão que grandes neoliberais da época, como Hayek e Friedman, fizeram visitas ao Chile durante a ditadura militar, tendo Hayek chegado a dizer que preferia um ditador liberal do que uma democracia sem liberalismo.

Tais assertivas, além de deturparem por completo a própria noção de liberalismo e de refletirem uma inaceitável tolerância com um regime conhecido por suas violações a direitos humanos, ainda parte de uma noção de liberdade econômica bastante restritiva, em que apenas uma porção ínfima da população – as elites econômicas mancomunadas com o regime – têm direito à liberdade econômica, ficando todos os demais membros da sociedade desprovidos do mesmo direito, notadamente a classe trabalhadora. 

Isso porque o regime ditatorial chileno assegurou enormes vantagens às elites que o apoiavam, o que foi um fator importante não apenas para práticas nefastas de capitalismo de camaradagem, mas também para aumento de concentração de renda e de desigualdade.

Aliás, sobre o assunto, Edwards faz provocações interessantes no subcapítulo Did the Chicago Boys know about human right violations?, mostrando que os Chicago Boys se esquivavam convenientemente do tema, sob o fundamento de que havia uma rígida divisória entre a economia e a política e cabia a eles lidar apenas com a primeira.

Mesmo sob uma ótica estritamente econômica, tanto não foi possível essa separação que Edwards mostra que, na prática, o projeto neoliberal não impediu inúmeros favorecimentos indevidos a determinados agentes econômicos, gerando grandes conglomerados.

Outro grande problema do laboratório neoliberal foi o de, seguindo o receituário da Escola de Chicago, entender as teorias econômicas como universais e absolutas, o que acabou gerando nos economistas muita arrogância e descolamento dos problemas do mundo real. Por essa razão, Edwards mostra que os Chicago Boys subestimaram várias das falhas de mercado, tais como os problemas de colusão entre empresas e de crony capitalism.

Por fim, uma falha grave do laboratório neoliberal foi se preocupar exclusivamente com a redução da pobreza, sem adotar medidas para contenção do aumento da desigualdade que, como todos sabemos, é hoje um problema econômico – que é capaz de comprometer até mesmo o crescimento – mas também político – que é capaz de comprometer até mesmo a estabilidade democrática em muitos países.

Reflexões sobre o laboratório neoliberal chileno

Por essa razão, mesmo passados cinquenta anos, a experiência chilena nos faz pensar em questões que até hoje fazem parte do nosso debate público: 

  • como metas desejáveis, o crescimento econômico e a redução da pobreza justificam a aniquilação da democracia? 
  • há algum ganho econômico que justifique o horror que ocorreu no Chile?
  • há justificativas plausíveis – tanto sob a ótica econômica como sob outras óticas – para a aniquilação das democracias e para a apologia ou tolerância às ditaduras? 
  • qual é o papel dos economistas, dos cientistas sociais e dos técnicos em situações como a do Chile: simplesmente cumprirem o seu papel burocrático, sem nenhuma reflexão ou responsabilidade diante das atrocidades praticadas pelo regime a que serviam? 
  • faz sentido a afirmação de Hayek de que a ditadura pode proteger a liberdade, na figura do que chamou de um “ditador liberal”? 
  • é possível dizer que a “ditadura liberal” de Pinochet assegurou liberdade econômica para todos quando a maioria esmagadora dos chilenos era desprovida de qualquer tipo de liberdade, incluindo a econômica? 
  • é possível haver liberdade econômica sem liberdade política e de expressão?
  • é realmente possível a separação entre a dimensão política e a econômica da experiência chilena?

A resposta a tais perguntas certamente não pode ser dada apenas com base na técnica, pois ela é essencialmente filosófica e valorativa. Envolve um olhar abrangente sobre o mundo, sobre a democracia e sobretudo sobre o valor, papel e a responsabilidade das pessoas. 

Se há evidências de que o laboratório neoliberal no Chile trouxe ganhos econômicos para o país, também há evidências de que o preço que foi pago pela população chilena – especialmente por parte daqueles que perderam suas vidas ou seus parentes e amigos – foi desproporcionalmente alto, não apenas em termos econômicos, diante do acirramento da desigualdade, mas sobretudo em termos democráticos, sociais e humanos. 

*Essa passagem do livro de Sebastian Edwards (Op.cit., p. 74) é particularmente interessante: “Three days after the coup, Sergio de Castro, the most senior of the Chicago Boys, was called in by admiral José Toribio Merino, one of the members of the junta. The admiral shook his hand and told De Castro that he was appointing him as senior adviser to General Rodolfo González the new minister of economics. De Castro immediately realized that this was not a job offer; it was a military order.”

Fonte: Jota

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