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DIREITO E ARTE
O Estado de Direito e os 100 anos da visita dos reis belgas ao Brasil
Marcílio Toscano Franca Filho
28/07/2020
Georges Martyn[1] & Marcílio Franca[2]
Os civilistas François Laurent e Henri De Page, o jus-filósofo Chaïm Perelman, os historiadores do direito John Gilissen e Raoul Van Caenegem e os internacionalistas Philippe Couvreur e Koen Lenaerts são alguns dos juristas belgas de ontem e de hoje, que estão presentes na cultura jurídica brasileira, graças, de um lado, ao prestígio de universidades como as de Bruxelas, Liège, Lovaina e Gante e, de outro, à ampla difusão transatlântica de centenárias casas editoriais belgas como Bruylant e Larcier.
Muito além do diálogo na seara do direito, Bélgica e Brasil mantém uma profícua relação de amizade há tempos, selada, desde 1834, com a celebração do Tratado de Comércio e Navegação entre o Império do Brasil e o Reino da Bélgica (nação independente desde 1830), e reafirmada em episódios marcantes como o arbitramento do Rei Leopoldo I em favor do Brasil na “questão Christie” (que opôs Brasil e Reino Unido), em 1863, a criação da S.A. du Gaz de Rio de Janeiro, em 1876, a fundação da Compagnie Auxiliaire des Chemins de Fer au Brésil, em 1898, ou a instituição do Banque de l’Union Belgo-Brésilienne, em 1911.
Um dos pontos mais altos e importantes desse diálogo belgo-brasileiro completa justamente um século neste ano de 2020 e merece ser celebrado com entusiasmo. Trata-se da visita do Rei Alberto I, o Rei Soldado ou Rei Cavaleiro, e da Rainha Elisabeth da Bélgica ao Brasil, entre 19 de setembro e 16 de outubro de 1920, a primeira visita de um chefe de Estado europeu ao Brasil. E não se tratou de qualquer chefe de Estado, afinal o Rei Alberto é, sem tirar nem pôr, o rei mais honrado e mais estimado de todos os monarcas belgas. O príncipe herdeiro Leopoldo (mais tarde rei Leopoldo III) também se juntou à comitiva real, na visita ao Brasil, entre Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais.
Tanto para a Bélgica como para o Brasil, a Primeira Guerra mundial significou o fim de uma neutralidade internacional. Essa neutralidade tinha sido uma condição do reconhecimento do novo estado belga nos anos 1830. Durante os anos iniciais do conflito, a jovem república do Brasil declarara-se neutra. A neutralidade só seria rompida em 1917, graças, entre outros motivos, ao firme empenho do senador Rui Barbosa, grande luminar da cultura jurídica nacional e baluarte da II Conferência de Haia. Em uma famosa conferência na Faculdade de Direito de Bueno Aires, Rui atacou duramente a neutralidade brasileira: “Entre os que destroem a lei e os que a observam não há neutralidade admissível. Neutralidade não quer dizer impassibilidade: quer dizer imparcialidade; e não há imparcialidade entre o direito e a injustiça.” O retrato art nouveau de Rui Barbosa, ilustrado com as tábuas da lei, a espada e a balança, símbolos de justiça, reproduzido aqui (assim como as demais imagens deste texto), faz parte de um álbum com que o governo brasileiro presenteou o Rei Alberto I e a Rainha Elisabeth, com os principais momentos e personagens da visita real.
Para os visitantes belgas, a vinda, além de servir para prospectar negócios para um país em ampla reconstrução pós-bélica, significou o seu reconhecimento pelo apoio brasileiro durante a Grande Guerra, de 1914 a 1918, e, em seguida, durante a Conferência de Paz de Paris, que resultou no Tratado de Versalhes. Para os anfitriões da jovem república brasileira, receber o casal de soberanos belgas, às vésperas de completar o primeiro centenário da Independência, era a chance de emitir sinais de estabilidade, solidez e segurança jurídica do seu Estado de Direito, capazes de atrair investimentos no cenário internacional. Uma diplomacia do Law & Economicsavant la lettre.
Justamente por conta disso, um aspecto essencial da visita foi ressaltar, em mais de uma oportunidade, a Suas Majestades e à imprensa que cobria a visita o desenvolvimento, a maturidade, a importância e a estabilidade do aparato jurídico nacional. Não apenas a agenda oficial refletia essa preocupação, mas também muitos detalhes da iconografia da visita, como visto nas peças que ilustram este texto, encontrados nos Archives du Palais Royal, em Bruxelas.
O convite para vir ao Brasil, havia sido formulado aos reis belgas pelo presidente eleito Epitácio Pessoa, sua esposa Mary e filha mais velha Laurita, em visita a Bruxelas, entre 8 e 11 de maio de 1919. Pessoa, mesmo fora do Brasil, acabara de vencer as eleições presidenciais e precisava deixar Paris, onde chefiava a delegação brasileira na Conferência de Paz que resultaria no Tratado de Versalhes, para tomar posse, no Rio de Janeiro. No trajeto de volta ao Brasil, visitou o Rei Alberto I e a Rainha Elisabeth (uma Bragança, pelo lado materno) e formulou o convite. Durante a Grande Guerra, o Brasil oferecera à Bélgica inúmeros gestos de solidariedade e o rei não demorou em aceitar aquele chamado.
Em sua longa trajetória como homem público, Epitácio Pessoa sempre demonstrou enorme apego à racionalidade jurídica. Foi, antes de tudo, ao longo de toda a vida, um jurista. O ex-senador fluminense Hamilton de Lacerda Nogueira chega a dizer que Epitácio “era um soldado da lei, jamais admitindo, para a salvação da República e no interesse do bem comum, soluções extralegais. Poderia mesmo fazer suas estas palavras, escritas em letras douradas no pórtico do Palácio Federal de Berna [a capital suíça]: ‘In legibus, salus civitatis posita est’”. Nas leis, o bem-estar da comunidade está definido – cf. lib. I, cap. IV, De Arte Rhetorica, de Aristóteles. Isso certamente influenciou na decisão brasileira de sublinhar aos soberanos belgas aspectos do desenvolvimento alcançado pelo sistema jurídico brasileiro. A iconografia e o protocolo da visita revelam essa preocupação em exaltar o jovem Estado de Direito tropical.
O governo brasileiro fez chegar aos reis belgas, por exemplo, uma carta do senador Rui Barbosa, internacionalmente conhecido desde a 2ª Conferência da Paz, de 1907, em Haia, em que ressaltava “a força do direito” no Reino da Bélgica. Segundo o jornal O Paiz, ademais, em 15 de outubro, o próprio senador Rui Barbosa (vencido pelo anfitrião Epitácio Pessoa nas eleições presidenciais do ano anterior) almoçou com os soberanos belgas no Palácio da Guanabara. À tarde do mesmo dia, no Palácio do Catete, os soberanos receberam uma “rica e luxuosa encadernação de um volume da Constituição Brasileira e outra do Código Civil Brasileiro, acondicionada em uma bela caixa de veludo verde escuro guarnecida de ouro, tendo gravada na tampa as armas da República”, ofertada pelo diretor da Imprensa Nacional, sr. Castelo Branco.
O rei também visitou alguns tribunais durante a sua visita. O Supremo Tribunal Federal, no Rio de Janeiro, em 20 de setembro; o Tribunal da Relação, em Belo Horizonte, a 2 de outubro, e o Tribunal do Júri, em São Paulo, a 5 de outubro. Durante o seu discurso na corte mineira, o soberano belga pontificou: “Plus un pays avance dans la civilisation, plus le pouvoir judiciaire y occupe une situation indépendante et respectée.”
O jornal O Paiz noticiou, em sua edição de 2 de outubro, que, no dia anterior, a eminente Congregação da Faculdade de Direito da Universidade do Rio de Janeiro (atual UFRJ) ainda decidiu conferir o título de Doutor Honoris Causa para o rei Alberto da Bélgica, mas não há registro de que a imposição das insígnias doutorais tenha-se concretizado. Para os últimos dias da passagem pelo estado de São Paulo também estava marcado uma visita à Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. De todo modo, um decreto do presidente Epita?cio Pessoa, assinado a 14 de outubro, concedeu a sua Majestade a cidadania brasileira e lhe conferiu a patente de marechal do exe?rcito nacional.
Durante a sua visita, o rei Alberto condecorou Epitácio Pessoa e alguns outros brasileiros com a “Ordem de Leopoldo II”. Hoje, na Bélgica, quando são atacados monumentos dedicados ao rei Leopoldo II, considerado responsável pela morte de milhões de negros no Congo, há um debate público sobre a extinção daquela ordem honorífica belga. Curioso é notar que a então vigente constituição brasileira de 1891, no art. 72, § 29, ordenava que “os que aceitarem condecoração ou títulos nobiliárquicos estrangeiros perderão todos os direitos políticos”. Em uma longa mensagem dirigida ao Senado da República, em 1921, o presidente Epitácio Pessoa apontou a injustiça, a inconveniência e a ilegitimidade daquele dispositivo constitucional, advogando a sua irrazoabilidade e, portanto, contrariedade ao direito.
O advogado, deputado federal e senador Irineu Machado também teve um trecho de suas históricas declarações, na Câmara Federal, ricamente ilustrado com a espada e a balança da justiça e os ramos de oliveira, representando a paz, para virar presente de Estado para os soberanos belgas. No trecho do discurso, datado de 8 de agosto 1914 (apenas quatro dias depois da invasão alemã na Bélgica), Machado ressalta e enobrece o recurso ao direito internacional para a solução dos diferendos internacionais. A mensagem brasileira era clara: L’état de droit e rule of law deveriam ser as balizas para as relações internacionais. A Bélgica ficou muito tocada com aquela firme condenação brasileira à invasão alemã, já no inicio da Grande Guerra, mesmo sendo o Brasil um país neutro àquela altura.
A visita dos reis belgas ao Brasil foi um estrondoso sucesso, em distintas direções. No plano pragmático imediato, consolidou as relações político-econômicas com a Bélgica, cujo resultado mais concreto foi a criação da mineradora e metalúrgica Belgo-Mineira, em 1921. No micro-universo das relações pessoais, ainda, a visita deu lugar, segundo o embaixador Carlos Alberto Pessôa Pardellas, neto de Epitácio Pessoa, a uma amizade duradoura entre as duas famílias:
“A admiração recíproca e uma série de afinidades mantiveram viva a amizade. Epitácio, sua mulher e suas filhas, passaram a deter?se, a partir de 1923, todos os anos na Bélgica a caminho da Haia, para atender a convite dos reis e almoçarem ou jantarem no Palácio de Bruxelas ou no de Laaken em seus arredores. A correspondência entre o ex-presidente do Brasil e o rei dos belgas continuou assídua até a morte trágica de Alberto, em 1934, em consequência de uma queda quando praticava alpinismo nas Ardenas. Mary Pessôa e a rainha trocavam cartas até a Segunda Guerra Mundial” (Pardellas, Carlos Alberto Pessôa. Epitacio Pessôa: na Europa e no Brasil. Brasília: FUNAG, 2018, p. 56)
Numa dimensão mediata, consolidou a inserção internacional do Brasil no teatro das relações internacionais. No mesmo ano, logo em seguida, viriam ao Brasil, Vittorio Orlando, ex-primeiro-ministro da Itália (e colega de Epitácio em Versalhes), e Bainbridge Colby, secretário de Estado norte?americano, representante do presidente Woodrow Wilson. Em 1922, as comemorações do primeiro centenário da Independência brasileira, trouxeram o presidente de Portugal, Antonio José d’Almeida, e delegações de vinte países da Europa, da Ásia e das Américas. Pelo resto de suas vidas, o Rei Soldado e o Soldado da Lei guardaram as melhores recordações daqueles dias na jovem república brasileira.
[1] Georges Martyn é Professor Catedrático de História do Direito na Universidade de Gante (Ghent University) na Flandres (Bélgica), advogado honorário da ordem dos advogados de Gante e juiz de paz substituto em Kortrijk. Doutor em Direito pela Universidade de Lovaina (Bélgica).
[2] Marcílio Franca é Professor de Direito da Arte do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba e Procurador-Chefe da Força-Tarefa do Patrimônio Cultural do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da Paraíba. Foi Professor Visitante do Departamento de Jurisprudência da Universidade de Turim e Research Fellow do Collegio Carlo Alberto. Doutor em Direito pela Universidade de Coimbra (Portugal). Pós-doutorado em Direito no Instituto Universitário Europeu de Florença (Itália), onde foi Calouste Gulbenkian Fellow. Árbitro Suplente do Tribunal Permanente de Revisão do Mercosul.
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