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Imposto de renda e a Selic dos depósitos judiciais: análise do efeito vinculante da tese so tema 962/STF
30/06/2022
No Recurso Extraordinário (RE) nº 1.063.187, o Supremo Tribunal Federal (STF) firmou a seguinte tese de repercussão geral: “É inconstitucional a incidência do IRPJ e da CSLL sobre os valores atinentes à taxa Selic recebidos em razão de repetição de indébito tributário” (Tema nº 962). Essa decisão, que tem efeito vinculante, vem suscitado diversas dúvidas entre os operadores do direito, especialmente no que se refere aos juros e multas contratuais de natureza privada e aos depósitos judiciais. Nenhuma delas foi analisada no leading case. Porém, após o julgamento, tem se observado uma crescente judicialização dessas matérias. No presente estudo, o objetivo será examinar o caráter vinculante da decisão em relação aos casos discutindo a incidência do IRPJ (Imposto de Renda da Pessoa Jurídica) e da CSLL (Contribuição Social sobre o Lucro Líquido) sobre a Taxa Selic nos depósitos judiciais.
Em primeiro lugar, é preciso ressaltar que, de acordo com o Código de Processo Civil, a tese firmada pelo STF no julgamento do recurso extraordinário deve ser obrigatoriamente adotada em todos os recursos fundados em idêntica controvérsia de direito (CPC, arts. 1.036[1] e 1.039[2]). Além disso, a tese e os fundamentos determinantes – a ratio decidendi da decisão – devem ser aplicados como precedente vinculante (art. 489, VI[3]) aos processos idênticos e semelhantes, até ser superado (overruling) ou salvo em caso de distinção(distinguishing). Não há vinculação em relação ao obter dictum, isto é, ao argumento sem relação direta com a resolução do caso, dispensável para a conclusão final, mas que consta na fundamentação a título de observação, comentário, razão complementar ou de reforço. [4]
Aplicação obrigatória da tese aos recursos fundados em idêntica controvérsia de direito e caráter vinculante da ratio decidendi aos casos idênticos ou semelhantes
Dessa maneira, duas questões que devem ser diferenciadas: a aplicação obrigatória da tese aos recursos fundados em idêntica controvérsia de direito; e o caráter vinculante da ratio decidendi aos casos idênticos ou semelhantes.
Quanto ao primeiro aspecto, não há dúvidas. A tese aplica-se aos recursos em que se discute a não incidência do IRPJ e da CSLL (assim como a exclusão da base de cálculo) da Taxa Selic devida na repetição de indébito tributário, independentemente do meio de pagamento e da instância em que foi reconhecido ou determinado: judicial ou administrativa; transferência bancária; precatório; requisição de pequeno valor; e compensação, inclusive mediante PER/DCOMP (Pedido Eletrônico de Restituição, Ressarcimento ou Reembolso e Declaração de Compensação).
Não são idênticos os recursos envolvendo a Selic incidente sobre depósitos judiciais. Isso afasta, sem dúvida alguma, a vinculação nos termos dos arts. 1.036 e 1.039 do CPC. Porém, o precedente também pode ser obrigatório na forma art. 489, VI, do CPC, o que, por sua vez, depende da identificação da ratio decidendi e a avalição da similitude.
RE nº 1.063.187
Dessa maneira, deve-se ter presente que o RE nº 1.063.187 teve como fundamento determinante: (a) o conceito jurídico de renda; e (b) a natureza jurídica da taxa Selic incidente sobre a repetição do indébito. Como já era pacificado na jurisprudência e na doutrina, o STF entendeu que renda constitui um acréscimo patrimonial (riqueza nova)[5]. Assim, considerando que a Taxa Selic visa a recompor efetivas perdas (danos emergentes), decidiu que o IRPJ e a CSLL não poderiam incidir sobre esses ingressos:
“Recurso extraordinário. Repercussão geral. Direito Tributário. IRPJ e CSLL. Incidência sobre os valores atinentes à taxa Selic recebidos em razão de repetição de indébito tributário. Inconstitucionalidade.
1. A materialidade do imposto de renda e a da CSLL estão relacionadas com a existência de acréscimo patrimonial. Precedentes.
2. A palavra indenização abrange os valores relativos a danos emergentes e os concernentes a lucros cessantes. Os primeiros, que correspondem ao que efetivamente se perdeu, não incrementam o patrimônio de quem os recebe e, assim, não se amoldam ao conteúdo mínimo da materialidade do imposto de renda prevista no art. 153, III, da Constituição Federal. Os segundos, desde que caracterizado o acréscimo patrimonial, podem, em tese, ser tributados pelo imposto de renda.
3. Os valores atinentes à taxa Selic recebidos em razão de repetição de indébito tributário visam, precipuamente, a recompor efetivas perdas (danos emergentes). A demora na restituição do indébito tributário faz com que o credor busque meios alternativos ou mesmo heterodoxos para atender a suas necessidades, os quais atraem juros, multas, outros passivos, outras despesas ou mesmo preços mais elevados.
4. Foi fixada a seguinte tese para o Tema nº 962 de repercussão geral: “É inconstitucional a incidência do IRPJ e da CSLL sobre os valores atinentes à taxa Selic recebidos em razão de repetição de indébito tributário”.
5. Recurso extraordinário não provido”.[6]
Os depósitos judiciais podem ser realizados para fins de suspensão de exigibilidade do crédito tributário em ações ordinárias ou em mandados de segurança visando à repetição de indébito tributário (CTN, art. 151, II). Mas também podem ocorrer em ações que não tenham esse objeto, como, por exemplo, as ações de consignação em pagamento (CTN, art. 164) e nas execuções fiscais como garantia do juízo (Lei nº 6.830/1980, art. 9, I). A primeira hipótese, mas não as demais, guarda similitude inequívoca com o RE nº 1.063.187. A única diferença é que, ao invés de pagar as prestações vencidas ou vincendas durante a tramitação do processo, o contribuinte deposita o valor do crédito tributário em juízo, para fins de suspensão da exigibilidade (CTN, art. 151, II). O pagamento da Taxa Selic, nas duas hipóteses, é realizado pela Fazenda Pública. É certo que, no depósito judicial, há interveniência da Caixa Econômica Federal (Lei nº 9.703/1998, art. 1º, § 3º, I). Mas essa não responde pelo pagamento da Selic, uma vez que, desde o ano de 1998, os depósitos são repassados para a Conta Única do Tesouro Nacional, independentemente de qualquer formalidade, no mesmo prazo fixado para recolhimento dos tributos (art. 1º, § 2º). Dessa forma, após o encerramento da lide, de acordo com o § 4º do art. 1º da Lei nº 9.703/1998, “os valores devolvidos pela Caixa Econômica Federal serão debitados à Conta Única do Tesouro Nacional, em subconta de restituição”. O contribuinte que paga e aquele que deposita em juízo geram o mesmo ganho financeiro para o Tesouro Nacional, que fica com a disponibilidade do recurso durante a tramitação da lide. Por outro lado, sofrem o mesmo dano emergente que é reparado pela incidência da Selic.
Ademais, não se pode equiparar o recebimento da Selic nos depósitos judiciais com os juros auferidos em uma aplicação financeira em instituição financeira privada. Nesses casos, o contribuinte conserva a liquidez e a disponibilidade do numerário, que pode ser levantado em caso de necessidade ou para aplicação mais rentável. O depósito constitui um investimento realizado por quem tem excedentes de recursos. Essa realidade é bastante diferente da observada em um depósito judicial. Esse não é um investimento, mas uma exigência legal realizada para fins de suspensão da exigibilidade do crédito tributário. Trata-se de uma providência realizada até mesmo por quem não tem excedentes, exigindo o uso de reservas emergências, de capital de giro e, até mesmo, de empréstimos para evitar medidas coercitivas, como, v.g., a inclusão no Cadastro Informativo de Créditos Não Quitados do Setor Público Federal (Cadin), a representação aos bancos públicos para fins de não liberação de créditos oriundos de fundos públicos, repasses e financiamentos, inclusive de parcelas de financiamentos ainda não liberadas, a exclusão de benefícios e incentivos fiscais, relativos a tributos administrados pela RFB, o encaminhamento do débito para inscrição em Dívida Ativa da União (DAU), sobre o qual incidirá 20% de encargo legal, e o ajuizamento de execução fiscal, com penhora ou arresto de bens[7]. Outra diferença relevante é que, durante a tramitação da lide, o contribuinte fica sem a disponibilidade do recurso, impedindo o uso em caso de necessidade, de emergência ou a alocação em investimento mais rentável.
Por isso, a aplicabilidade da tese aos depósitos judiciais já vem sendo reconhecida em algumas decisões. Destaca-se, nesse sentido, o acórdão da 3ª Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, relatado pelo Desembargador Federal Antonio Carlos Cedenho:
“PROCESSO CIVIL. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. INCIDÊNCIA DE IRPJ E CSSL SOBRE TAXA SELIC APLICADA EM REPETIÇÃO DE INDÉBITO. TEMA 962/STF. ARTIGO 1.022 DO NOVO CPC. OCORRÊNCIA DE VÍCIOS NO JULGADO. OMISSÃO. LEVANTAMENTO DE DEPÓSITO. INCLUSÃO NA HIPÓTESE, POSSIBILIDADE. EMBARGOS DECLARATÓRIOS DO CONTRIBUINTE ACOLHIDOS. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO DA UNIÃO FEDERAL REJEITADOS.
[…]
4. Analisando as razões do agravo e os fundamentos do acórdão, pode-se ver que houve omissão quanto ao tema da exclusão do IRPJ e da CSSL incidentes sobre a Taxa Selic aplicada sobre os depósitos judiciais levantados.
5. O julgamento do Tema 962 (RE 1063187/SC) pelo Supremo Tribunal Federal em sede de repercussão geral encerrou a questão ao definir que o valor resultante da incidência de correção monetária e juros de mora (aplicação da Taxa Selic) tem natureza jurídica de danos emergente, estando, portanto, fora do alcance das exações, diferentemente do assentado no Superior Tribunal de Justiça, por ocasião do julgamento do REsp nº 1.138.695/SC em sede de recurso repetitivo.
6. O relator do recurso extraordinário paradigma, Ministro Dias Tofolli, debruçou-se sobre a questão de fundo, primeiramente analisando a materialidade dos IRPJ e do CSSL, consistente em tributar o acréscimo patrimonial. Há entendimento pacífico, em especial do STJ, de que a Taxa Selic tem natureza híbrida, ou seja, é composta de correção monetária e juros de mora.
7. Neste contexto, é tranquilo afirmar que a incidência de correção monetária tem natureza indenizatória, pois sua função é apenas recompor o valor do patrimônio atingido pela eventual desvalorização ocorrida em função do decurso do tempo.
8. Os juros de mora possuem natureza de danos emergentes, de acordo com o próprio STF no julgamento do RE 855.091, que tratou apenas da incidência do IRPF.
9. É possível se concluir que não incidem IRPJ e CSSL sobre juros de mora incidentes sobre valores pagos indevidamente a título de tributo.
10. A repetição de indébito é o direito do contribuinte pleitear a devolução dos valores pagos indevidamente a título de tributo. A expressão comporta caráter mais genérico, da qual pode-se extrair as conhecidas modalidades equivalente para se aperfeiçoar a devolução dos valores, tais como a compensação, a restituição ou ressarcimento, como também o levantamento de depósito efetuado como garantia processual de suspensão de exigibilidade, no caso de decisão já transitada em julgado que afastou uma exação.
11. A respeito do depósito judicial, ainda que previsto como modalidade de suspensão do crédito tributário (artigo 151, inciso II, do CTN), é certo, no caso dos autos, o seu eventual levantamento, parcial ou total, diante da declaração de inconstitucionalidade da incidência do IRPJ e CSSL sobre a Taxa Selic aplicada no montante depositado, de modo que a hipótese, diante do reconhecimento da natureza indenizatória atribuída à Selic ora demonstrada, também deve ser albergada.
12. Embargos declaratórios do contribuinte acolhidos. Embargos da União rejeitados.”[8]
Em síntese, portanto, a tese e a ratio decidendi do precedente do STF, nos termos do art. 489, VI, do CPC, devem ser obrigatoriamente aplicados aos casos relativos à incidência do IRPJ (Imposto de Renda da Pessoa Jurídica) e da CSLL (Contribuição Social sobre o Lucro Líquido) sobre a Taxa Selic nos depósitos judiciais. Porém, não qualquer depósito, apenas os realizados para fins de suspensão de exigibilidade do crédito tributário em ações ordinárias ou em mandados de segurança visando à repetição de indébito tributário, excluídas as ações de consignação em pagamento e as penhoras em dinheiro nas execuções fiscais.
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[1] “Art. 1.036. Sempre que houver multiplicidade de recursos extraordinários ou especiais com fundamento em idêntica questão de direito, haverá afetação para julgamento de acordo com as disposições desta Subseção, observado o disposto no Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal e no do Superior Tribunal de Justiça.”
[2]“Art. 1.039. Decididos os recursos afetados, os órgãos colegiados declararão prejudicados os demais recursos versando sobre idêntica controvérsia ou os decidirão aplicando a tese firmada.”
[3]“Art. 489. São elementos essenciais da sentença: […] VI – deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento”.
[4]MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. 6. ed. São Paulo: RT, 2019, p. 302; MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo Código de Processo Civil comentado. 3. ed. São Paulo: RT, 2007, p. 1137.
[5]Não há divergências a esse respeito, ressalvado o fato de que, para alguns autores, o conceito de renda decorre do art. 43 do Código Tributário Nacional, enquanto que, para outros, diretamente no texto constitucional. Sobre o tema, cf.: GONÇALVES, José Artur Lima. Imposto sobre a renda: pressupostos constitucionais. São Paulo: Malheiros, 1997; LEMKE, Gisele. Imposto de renda – os conceitos de renda e de disponibilidade econômica e jurídica. São Paulo: Dialética, 1998; OLIVEIRA, Ricardo Mariz De. Fundamentos do imposto de renda. São Paulo: Quartier Latin, 2008; CARRAZZA, Roque Antonio. Imposto sobre a renda: perfil constitucional e temas específicos. São Paulo: Malheiros, 2005; MOSQUEIRA, Roberto Quiroga. Renda e proventos de qualquer natureza: o imposto e o conceito constitucional. São Paulo: Dialética, 1996; ÁVILA, Humberto. Contribuições e imposto sobre a renda: estudos e pareceres. São Paulo: Malheiros, 2015.
[6]STF. T. Pleno. RE 1.063.187. Rel. Dias Toffoli. DJe 16/12/2021. Ressalte-se que, no julgamento de embargos de declaração opostos pela União, o STF definiu promover a “modulação dos efeitos da decisão embargada, estabelecendo-se que ela produza efeitos ex nunc a partir de 30/9/21 (data da publicação da ata de julgamento do mérito), ficando ressalvados: a) as ações ajuizadas até 17/9/21 (data do início do julgamento do mérito); b) os fatos geradores anteriores à 30/9/21 em relação aos quais não tenha havido o pagamento do IRPJ ou da CSLL a que se refere a tese de repercussão geral”.
[7]Essas medidas são relacionadas no art. 2º da Portaria RFB nº 1.265/2015.
[8] TRF3. 3ª T. AI 5018890-42.2021.4.03.0000. J. 17/12/2021.