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DIREITO COMPARADO
TRIBUTÁRIO
Planejamento tributário, propósito negocial e abuso de formas
22/08/2022
O controle do planejamento tributário abusivo é uma realidade no direito comparado, constituindo, em razão de previsão legal ou de construção jurisprudencial, uma reação jurídica para as vantagens fiscais decorrentes de montagens puramente artificiais destituídas de uma justificativa econômica ou de um propósito comercial. É o que ocorre, v.g., nos Estados Unidos da América do Norte, Reino Unido, Canadá, Austrália, Nova Zelândia, Alemanha, Espanha, Argentina, Portugal, Itália, África do Sul, China, Áustria, Hungria, Eslovênia, Holanda, Suécia, entre outros[1]. Não deixa de ser, ao menos no plano pragmático, uma realidade também entre nós.
Nos últimos anos, tem sido comum a lavratura de autos de lançamento pela Receita Federal diante de planejamentos tributáriosconsiderados abusivos, mediante aplicação casuística – e, quase sempre, pouco rigorosa – dos conceitos de abuso de forma, fraude à lei e de business purpose.
O Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), por sua vez, não tem manifestado oposição a essa prática, admitindo a discussão da abusividade assentada nesses conceitos[2]. Há um alto grau de subjetivismo nessas exigências fiscais, criando uma insegurança jurídica em torno dos limites da economia lícita de tributos no direito brasileiro.
Direito Americano
O business purpose, na verdade,é apenas uma parte do teste de aceitabilidade de planejamentos fiscais aplicado da economic substance doctrine. Trata-se de uma construção da Suprema Corte Norte-Americana realizada no leading case Gregory v. Helvering, julgado em 1935 (293 U.S. 465, 1935), que foi aperfeiçoada em julgados posteriores, em especial, mais recentemente, no ACM Partnership v. Commissioner (157 F.3d 231, 1998).
A economic substance doctrine permite a desconsideração de planejamentos fiscais realizados por meio de uma ou mais operações destituídas de propósito econômico, unicamente para a obtenção de uma vantagem tributária não pretendida pelo legislador. Não há uma uniformidade na aplicação do princípio. Contudo, de maneira geral, a operação é avaliada dentro de um duplo teste: (i) no primeiro (objective economic substance test) é medido o efeito econômico potencial da operação, indagando se essa representa uma oportunidade de lucro plausível, além do ganho fiscal, suficiente para justificar o investimento de um empresário razoável padrão (reasonable businessman standard) na realidade do setor; e (ii) no segundo é realizado o teste do propósito negocial (business purpose test ou subjective economic substance test), no qual são analisados os motivos e as expectativas do contribuinte ao realizar a operação, avaliando a presença de uma intenção negocial (não-fiscal) útil ou legítima.[3]
Alguns julgados exigiam a satisfação dos dois requisitos, enquanto outros entendiam que apenas um já se mostra suficiente para a aceitação da operação[4]. Essa divergência foi resolvida no ano de 2010, com a aprovação da Codifications of Economic Substance Doctrine and Penalties pelo Congresso dos Estados Unidos[5], que definiu o caráter cumulativo dos requisitos. Nele também foi previsto, entre outras disposições, que a lucratividade potencial aferida no objective economic substance test deve ser substancial em relação aos ganhos fiscais e que o termo “transação” abrange as operações isoladas e em série (step transactions).
Na avaliação do business purpose test, vários fatores têm sido ponderados pela jurisprudência norte-americana, tais como a ocorrência de um efetivo comprometimento ou investimento de capital por parte do contribuinte na operação; a existência de uma relação de dependência entre o contribuinte e terceiros eventualmente envolvidos, inclusive o exercício prévio e posterior de negócios legítimos; se o ganho fiscal excedeu significativamente o investimento do contribuinte; e evidências de que um investimento prudente teria ou poderia ter atingido objetivos semelhantes por meio de métodos muito mais simples ou diretos.[6]
Já foram considerados propósitos negociais legítimos a separação de negócios para permitir uma maior eficiência operacional; as diferenças entre acionistas (desentendimentos fundamentais, que podem afetar o negócio de maneira séria); pressões de consumidores (empresas que atuam em mais de um segmento – importação e serviços logísticos – que não são contratadas por outros importadores que não atuam em serviços logísticos, porque são concorrentes no ramo da importação); reorganizações societárias exigidas por lei ou determinadas por autoridades regulatórias.[7]
O interessante é que, na definição dos parâmetros para o controle dos planeamentos fiscais agressivos(aggressive tax planning) no âmbito internacional, tem se observado uma tendência de conjugação da economic substance doctrine com o abuso das possibilidades de configuração jurídica do direito alemão. Esse é previsto no § 42 do Código Fiscal Alemão de 1977 (Abgabenordnung – AO), alterado no ano de 2008, configurando-se quando: (i) é escolhida uma forma jurídica inadequada que, em comparação com a forma adequada, conduza a vantagens fiscais não previstas em lei para o contribuinte ou terceiro; e (ii) o contribuinte não apresenta provas de razões não fiscais para a opção selecionada que sejam relevantes quando vistas de uma perspectiva global.[8]
Trata-se, assim, de uma espécie amálgama de conceitos jurídicos de sistemas de referência distintos, mas que parece refletir a expressão contemporânea do princípio da vedação ao abuso no direito tributário. Essa tendência é nítida no art. 15 da Lei Geral Tributária (LGT) da Espanha[9], no art. 10-bis do Estatuto dos Direitos dos Contribuintes da Itália[10] e na Diretiva (UE) 2016/1164, que implementa os compromissos assumidos pela União Europeia no âmbito do Projeto BEPS (Base Erosion and Profit Shifting) da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico).[11]
Direito brasileiro
No direito brasileiro, o tema do planejamento tributário abusivo já foi bastante estudado pela doutrina, especialmente após a Lei Complementar nº 104/2001, que incluiu o parágrafo único no art. 116 do Código Tributário Nacional: “Parágrafo único. A autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária”. Nos últimos anos, contudo, houve uma perda de interesse dos autores pelo tema. Os estudos existentes, ademais, salvo poucas exceções, mais se preocuparam em negar a admissibilidade do controle de planejamentos fiscais abusivos do que em definir limites dogmáticos para a economia lícita de tributos.
No Judiciário, por sua vez, as poucas decisões existentes indicam uma tendência de não reconhecimento de base legal para a desconsideração de atos e negócios jurídicos com base nesses fundamentos. Destaca-se, a esse propósito, o acórdão paradigmático do TRF da 4ª Região: “2. Assim, a desconsideração de ‘planejamentos tributários’pela administração pública somente se legitima quando as operações empregadas forem ilícitas (dolosas, fraudulentas ou simuladas), cabendo ao legislador a edição de normas específicas que impeçam ou neutralizem eventual economia tributária quando o planejamento envolver atos lícitos. […] 6. Assim, a reorganização patrimonial realizada pelo contribuinte, quando levada a efeito por meio de negócios jurídicos e operações verdadeiros, ainda que tenha por resultado a economia de tributos, não autoriza o Fisco a desconsidera-los, pois não existe – e nem poderia existir, porque ofenderia o artigo 170 da Constituição Federal – uma norma geral que obrigue o administrado a, frente a possibilidade de submeter-se a dois regimes fiscais, optar pelo mais gravoso”.[12]
Jurisprudência de planejamento tributário no Brasil
Um dos casos de maior repercussão no País, envolvendo o planejamento tributário do ágio interno, foi julgado recentemente pela 2ª Turma do TRF da 4ª Região. Na oportunidade, por maioria, o Tribunal entendeu que “a interpretação fundada na substância econômica das operações de reorganização societária não autoriza que a autoridade administrativa transforme atos jurídicos perfeitos em imperfeitos na ótica exclusivamente tributária com o escopo de encaixá-los em uma tributação mais favorável aos interesses fazendários, violando a autonomia da vontade, a liberdade econômica, a proteção da confiança, a segurança jurídica e o princípio da legalidade”.[13]
Houve interposição de recursos especiais e extraordinário admitidos na origem. Portanto, em breve, a matéria deverá ser apreciada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) e pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Espera-se que, na falta de interesse doutrinário pelo tema e, sobretudo, de uma regulamentação adequada no plano legislativo, os Tribunais finalmente ofereçam parâmetros para a contenção do alto grau de subjetivo em torno dessa matéria no direito brasileiro.
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NOTAS
1 XAVIER, Alberto. Tipicidade da tributação, simulação e norma antielisiva. São Paulo: Dialética, 2001, p. 87; BROWN, Karen B.. Comparative regulation of corporate tax avoidance: an overview. In: BROWN, Karen (edit.). Comparative look at regulation of corporate tax avoidance. Netherlands: Springer, Kindle Edition, 2012.
2 Há diversos acórdãos admitindo o controle de planejamentos abusivos no Carf, dentre os quais, por exemplo: Ac. 107-07596; Ac. 1401-00155; Ac. 9202-01.194; 3403-002.519; Ac. 1202-001.060; Ac. 1202-001.076; Ac. 2202-002.732.
3 PIETRUSZKIEWICZ, Christopher M. Economic Substance and the Standard of Review. Alabama Law Review, v. 60, p. 339-376, 2008; DESLOGE, Summer. Clarity or Confusion?: The Common Law Economic Substance Doctrine and Its Statutory Counterpart. Journal of Legislation, v. 46, p. 329 e ss.; ARMSTRONG, Monica D.. OMG! ESD Codified!: the overreaction to codification of the economic substance doctrine. 9 Fla. A&M University Law Review., p. 113-143, 2013; TABOADA, Carlos Palao. La aplicación de las normas tributarias y la elusión fiscal. 2. ed. Madrid: Civitas, 2021, p. 301 e ss.
4 PIETRUSZKIEWICZ, op. cit., p. 344-349.
5 Essa positivação da economic substance doctrine foi recebida com espanto pela doutrina (BROWN, Comparative…, op. cit., lc. 515).
6 PIETRUSZKIEWICZ, op. cit., p. 347-349.
7 RIGSBY, Stephen. The business purpose doctrine in corporate divisions. Akron Law Review, vol. 11:2, p. 275 e ss..
8 O § 42 AO recebeu tem a seguinte redação, na tradução não-oficial para o inglês do Ministério da Fazenda Federal Alemão:
“Section 42
Abuse of tax planning schemes
(1) It shall not be possible to circumvent tax legislation by abusing legal options for tax planning schemes. Where the element of an individual tax law’s provision to prevent circumventions of tax has been fulfilled, the legal consequences shall be determined pursuant to that provision. Where this is not the case, the tax claim shall in the event of an abuse within the meaning of subsection (2) below arise in the same manner as it arises through the use of legal options appropriate to the economic transactions concerned.
(2) An abuse shall be deemed to exist where an inappropriate legal option is selected which, in comparison with an appropriate option, leads to tax advantages unintended by law for the taxpayer or a third party. This shall not apply where the taxpayer provides evidence of non-tax reasons for the selected option which are relevant when viewed from an overall perspective” (Disponível em: https://www.gesetze-im-internet.de/englisch_ao/englisch_ao.html. Acesso: 14/07/2022).
No original:
Ҥ 42
Missbrauch von rechtlichen Gestaltungsmöglichkeiten
(1) Durch Missbrauch von Gestaltungsmöglichkeiten des Rechts kann das Steuergesetz nicht umgangen werden. Ist der Tatbestand einer Regelung in einem Einzelsteuergesetz erfüllt, die der Verhinderung von Steuerumgehungen dient, so bestimmen sich die Rechtsfolgen nach jener Vorschrift. Anderenfalls entsteht der Steueranspruch beim Vorliegen eines Missbrauchs im Sinne des Absatzes 2 so, wie er bei einer den wirtschaftlichen Vorgängen angemessenen rechtlichen Gestaltung entsteht.
(2) Ein Missbrauch liegt vor, wenn eine unangemessene rechtliche Gestaltung gewählt wird, die beim Steuerpflichtigen oder einem Dritten im Vergleich zu einer angemessenen Gestaltung zu einem gesetzlich nicht vorgesehenen Steuervorteil führt. Dies gilt nicht, wenn der Steuerpflichtige für die gewählte Gestaltung außersteuerliche Gründe nachweist, die nach dem Gesamtbild der Verhältnisse beachtlich sind.””
9 “Artículo 15.Conflicto en la aplicación de la norma tributaria.
- Se entenderá que existe conflicto en la aplicación de la norma tributaria cuando se evite total o parcialmente la realización del hecho imponible o se minore la base o la deuda tributaria mediante actos o negocios en los que concurran las siguientes circunstancias:
- a) Que, individualmente considerados o en su conjunto, sean notoriamente artificiosos o impropios para la consecución del resultado obtenido.
- b) Que de su utilización no resulten efectos jurídicos o económicos relevantes, distintos del ahorro fiscal y de los efectos que se hubieran obtenido con los actos o negocios usuales o propios.
- Para que la Administración tributaria pueda declarar el conflicto en la aplicación de la norma tributaria será? necesario el previo informe favorable de la Comisión consultiva a que se refiere el artículo 159 de esta ley.
- En las liquidaciones que se realicen como resultado de lo dispuesto en este artículo se exigirá el tributo aplicando la norma que hubiera correspondido a los actos o negocios usuales o propios o eliminando las ventajas fiscales obtenidas, y se liquidarán intereses de demora”.
10 “1. Configurano abuso del diritto una o più operazioni prive di sostanza economica che, pur nel rispetto formale delle norme fiscali, realizzano essenzialmente vantaggi fiscali indebiti. Tali operazioni non sono opponibili all’amministrazione finanziaria, che ne disconosce i vantaggi determinando i tributi sulla base delle norme e dei principi elusi e tenuto conto di quanto versato dal contribuente per effetto di dette operazioni.
- Ai fini del comma 1 si considerano:
- a) operazioni prive di sostanza economica i fatti, gli atti e i contratti, anche tra loro collegati, inidonei a produrre effetti significativi diversi dai vantaggi fiscali. Sono indici di mancanza di sostanza economica, in particolare, la non coerenza della qualificazione delle singole operazioni con il fondamento giuridico del loro insieme e la non conformità dell’utilizzo degli strumenti giuridici a normali logiche di mercato;
- b) vantaggi fiscali indebiti i benefici, anche non immediati, realizzati in contrasto con le finalità delle norme fiscali o con i principi dell’ordinamento tributario.”
Regra geral antiabuso
- Para efeitos do cálculo da matéria coletável das sociedades, os Estados-Membros devem ignorar uma montagem ou série de montagens que, tendo sido posta em prática com a finalidade principal ou uma das finalidades principais de obter uma vantagem fiscal que frustre o objeto ou a finalidade do direito fiscal aplicável, não seja genuína tendo em conta todos os factos e circunstâncias relevantes. Uma montagem pode ser constituída por mais do que uma etapa ou parte.
- Para efeitos do nº 1, considera-se que uma montagem ou série de montagens não é genuína na medida em que não seja posta em prática por razões comerciais válidas que reflitam a realidade económica.
- Caso as montagens ou série de montagens não sejam tomadas em consideração nos termos do nº 1, a coleta é calculada nos termos do direito nacional” (Tradução oficial para o português. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu. Acesso: 14/07/2022). A parte inicial (“Para efeitos do cálculo da matéria coletável…”) e a parte final (“…a coleta é calculada nos termos do direito nacional”) no texto em questão pode ser melhor compreendida da seguinte forma: “Para efeitos do cálculo do imposto devido…” e “… o imposto devido será calculado nos termos do direito nacional” (“Ai fini del calcolo dell’imposta dovuta…” e “l’imposta dovuta è calcolata in conformità del diritto nazionale”.
12 TRF4. 2ª T. AC 5009900-93.2017.4.04.7107/RS. Rel. Des. Fed. Rômulo Pizzolatti. J. 10/12/2019.
13 TRF4. 2ª T. AC. 5058075-42.2017.4.04.7100. Rel. Des. Fed. Rômulo Pizzolatti. Rel. p/ Ac. Juiz Federal Convocado Alexandre Rossato da Silva Ávila. J. 08/04/2021.