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REFORMA TRIBUTÁRIA
TRIBUTÁRIO
O pacto federativo e a reforma tributária sobre o consumo da EC 132/23
Marcus Abraham
12/04/2024
É comum, ao falarmos sobre a reforma tributária, voltarmos nossos olhos apenas para os aspectos tributários, ou seja, para os novos tributos e seu modelo de cobrança. Entretanto, não podemos perder de vista o outro lado desta moeda, que envolve a repartição e destinação dos recursos arrecadados e os seus efeitos no federalismo fiscal brasileiro e respectivas implicações.
Como se sabe, o federalismo fiscal brasileiro reflete a relação política e financeira para uma convivência cooperativa entre os entes federativos – União, estados, Distrito Federal e municípios – na realização dos papéis conferidos a cada um, em suas diferentes esferas, face ao modelo de distribuição entre meios e fins, para consecução das finalidades estatais, cuja complexidade é potencializada pela multiplicidade de interesses e diferenças regionais de natureza cultural, social e econômica.
O grande desafio de nossa federação é cumprir adequadamente as atribuições constitucionalmente distribuídas a cada um dos entes – deveres para com a sociedade e com o cidadão –, através de uma repartição vertical e horizontal de poderes e competências, por meio do modelo que foi estabelecido pela Constituição Federal de partilha de recursos financeiros (modelo que agora está sendo alterado), em um Brasil que possui dentro de si vários outros “Brasis” muito diferentes.
Emenda Constitucional 132/2023
A impressão que se tem, a partir dos contornos das mudanças introduzidas pela Emenda Constitucional 132/2023, que traz no seu bojo a reforma tributária sobre o consumo, parece-nos bastante positiva para a estrutura federativa do Brasil, em especial diante das imensas diferenças e heterogeneidade que nos caracterizam.
Ao destacarmos algumas das características desta reforma tributária, podemos desde logo antever os resultados que se espera obter, principalmente quanto à busca da redução das desigualdades regionais socioeconômicas e quanto ao aperfeiçoamento do equilíbrio político-financeiro entre os entes federativos.
Em primeiro lugar, vale destacar a escolha na adoção do modelo de IVA dual (Imposto sobre Valor Agregado), através da instituição do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) de competência compartilhada dos estados, Distrito Federal e municípios (art. 156-A) e da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) de competência da União (art. 195, V), dois tributos de esferas federativas distintas e com parcelas de arrecadação proporcionalmente distribuídas de forma automática e incondicional para os respectivos entes, mas que incidirão única e simultaneamente sobre o mesmo fato gerador, com regras idênticas, através da mesma legislação uniforme em todo o país.
Este modelo “dual” (compartilhado), por si só, já revela claramente a preocupação do constituinte derivado com o pacto federativo, almejando o equilíbrio na arrecadação e repartição dos novos tributos e a garantia da autonomia dos entes federativos, ao estabelecer que cada estado e cada município poderá definir sua alíquota padrão do IBS.
Inclusive, a criação do Comitê Gestor do IBS, entidade responsável, dentre outras funções, pela administração e distribuição do produto do tributo arrecadado aos entes federativos, prevê a sua composição paritária, integrado por 27 representantes dos estados e Distrito Federal e 27 representantes dos municípios, de caráter eminentemente técnico, tomando decisões por meio de regras pré-estabelecidas em lei complementar e aprovadas desde que haja maioria absoluta de votos.
Modelo de tributação de bens e serviços no destino
O segundo aspecto que merece destaque é a adoção do modelo de tributação de bens e serviços no destino, por meio do qual a arrecadação da tributação deixará de se concentrar na origem (onde as grandes empresas, investidores e contribuintes já se encontram) e passará do local da produção para o local do consumo, beneficiando aqueles estados e municípios menos desenvolvidos, promovendo a redistribuição de receitas e reduzindo as desigualdades regionais.
É induvidoso que o modelo tributário que atualmente temos – de tributação na origem – só amplia e agrava ainda mais as nossas desigualdades regionais, por ocasionar a retenção do produto da arrecadação do tributo no próprio local da produção, retroalimentando uma engrenagem já bastante desgastada e disfuncional. Portanto, com a adesão do “princípio do destino” ao sistema de tributação brasileiro, o montante dos tributos pagos deixará de se acumular na origem produtiva e se deslocará para onde o consumidor se encontrar, ocasionando uma melhor distribuição de renda.
Outro relevante efeito positivo com a mudança do modelo de tributação na origem para o destino é o esperado fim da guerra fiscal e os malefícios causados por este deletério fenômeno, ao reduzir a disputa entre os entes federativos pela atração de novos investimentos e empreendimentos por meio da concessão de benefícios fiscais (desonerações tributárias). Além de se desconhecer quantitativamente se os efeitos da renúncia fiscal foram positivos e se compensaram a abdicação da arrecadação (eficácia econômica do incentivo fiscal), por uma visão una e global do país, a federação como um todo é que acaba por perder, não apenas pela desarmonia federativa, mas também pela privação dos recursos financeiros que foram renunciados.
Diversidade regional e cultural de alimentação do brasileiro
Mais um aspecto interessante da reforma tributária é a forma com que ela está tratando a diversidade regional e cultural de alimentação do brasileiro, ao estabelecer que sejam reduzidas a zero as alíquotas do IBS e da CBS dos produtos destinados a alimentação humana que comporão a nova Cesta Básica Nacional de Alimentos, a ser definida em lei complementar, considerando as diferenças e particularidades dos hábitos e costumes alimentares em cada região do Brasil. Assim, o direito fundamental de alimentação saudável e nutricionalmente adequada do cidadão brasileiro será realizado em observância às diferenças regionais do país.
Também não podemos deixar de destacar a criação de dois importantes fundos: i) o Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional, que terá o objetivo de reduzir as desigualdades regionais e sociais, mediante a entrega de recursos da União aos Estados e ao Distrito Federal para a realização de estudos, projetos e obras de infraestrutura; o fomento a atividades produtivas com elevado potencial de geração de emprego e renda, incluindo a concessão de subvenções econômicas e financeiras; e a promoção de ações com vistas ao desenvolvimento científico e tecnológico e à inovação; ii) o Fundo de Sustentabilidade e Diversificação Econômica do Estado do Amazonas, que será constituído com recursos da União e por ela gerido, com a efetiva participação do estado do Amazonas na definição das políticas públicas, com o objetivo de fomentar o desenvolvimento e a diversificação das atividades econômicas no Estado.
A propósito, mantém-se o tratamento tributário favorecido aos bens produzidos na Zona Franca de Manaus (ZFM), pela utilização de instrumentos fiscais, econômicos ou financeiros, conforme o que dispuser lei complementar, que deverá estabelecer os mecanismos necessários, com ou sem contrapartidas, para manter, em caráter geral, o diferencial competitivo assegurado ao polo industrial amazonense e às áreas de livre comércio (ALCs) criadas para o desenvolvimento das cidades de fronteiras internacionais localizadas na Amazônia Ocidental e em Macapá e Santana (art. 92-B, ADCT).
Nas operações contratadas – compras governamentais – realizadas pela administração pública direta, por autarquias e por fundações públicas, inclusive suas importações, o produto da arrecadação do IBS e da CBS sobre elas incidentes será integralmente destinado ao ente federativo contratante, mediante redução a zero das alíquotas do imposto e da contribuição devidos aos demais entes e equivalente elevação da alíquota do tributo devido ao ente contratante.
Critérios de partilha da arrecadação do IBS
Ademais, a reforma tributária mantém as partilhas e vinculações constitucionais existentes em relação a tributos que serão substituídos. Quanto à partilha do produto da arrecadação do IBS distribuído aos estados, a parcela de receita pertencentes aos municípios serão creditadas conforme os seguintes critérios:
- I – 80% na proporção da população;
- II – 10% com base em indicadores de melhoria nos resultados de aprendizagem e de aumento da equidade, considerado o nível socioeconômico dos educandos, de acordo com o que dispuser lei estadual;
- III – 5% com base em indicadores de preservação ambiental, de acordo com o que dispuser lei estadual;
- IV – 5% em montantes iguais para todos os municípios do estado.
Por último, além do período de transição para a vigência e incidência dos novos tributos, existe também uma transição de natureza financeiro-federativa de quase 50 anos, que se inicia em 2029 e vai até 2077, referindo-se à repartição dos recursos arrecadados e respectiva distribuição aos estados e municípios, e que afeta apenas estes entes federativos (art. 131, ADCT).
Criou-se, ainda, um período complementar que vai de 2078 até 2097 a consagrar uma espécie de “seguro-receita” de 5% do IBS (art. 132, ADCT) para compensar os entes com maior queda de participação no total da receita. Este modelo de transição financeiro-federativa é necessário para suavizar o impacto da reforma tributária sobre a arrecadação dos estados e municípios cuja participação no total das receitas venha a ser reduzida em função da unificação do ICMS com o ISS pela criação do IBS e da adoção do princípio de destino.
Conciliar a necessidade urgente de modificação em nosso sistema tributário incidente sobre o consumo – que é excessivamente regressivo – com a descentralização de nosso modelo federativo, juntamente com a manutenção das capacidades institucionais e da autonomia financeira e política dos entes subnacionais, na busca do desenvolvimento socioeconômico e da redução das desigualdades regionais, penso ser uma das grandes virtudes da reforma tributária introduzida pela EC 132.
A reforma tributária sobre o consumo decolou, e certamente haverá turbulências ao longo do caminho, mas uma aterrissagem suave é o que se espera no final do trajeto.
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