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Multas aduaneiras e prescrição intercorrente administrativa

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Multas aduaneiras e prescrição intercorrente administrativa

DIREITO ADUANEIRO

Solon Sehn

Solon Sehn

07/11/2023

A prescrição intercorrente no âmbito administrativo encontra-se prevista no § 1º do art. 1º da Lei nº 9.873/1999: “Incide a prescrição no procedimento administrativo paralisado por mais de três anos, pendente de julgamento ou despacho […]”. Esse dispositivo, entretanto, não é aplicável “aos processos e procedimentos de natureza tributária” (art. 5º), como reconhece a Jurisprudência do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf): “Não se aplica a prescrição intercorrente no processo administrativo fiscal”(Súmula nº 11).

Possibilidade de caracterização da prescrição intercorrente nas infrações e penalidades aduaneiras submetidas ao rito do procedimento administrativo fiscal

Recentemente, vem sendo debatida a possibilidade de caracterização da prescrição intercorrente – ou, como quer parte da doutrina, da preclusão intercorrente1 – nas infrações e penalidades aduaneiras submetidas ao rito do procedimento administrativo fiscal do Decreto nº 70.235/1972. Trata-se de um dos debates que tem causado maior polêmica entre os autores2.

No Poder Judiciário, os Tribunais Regionais Federais têm se dividido acerca da dessa matéria3. No Superior Tribunal de Justiça (STJ), por sua vez, recente decisão da 1ª Turma reconheceu a prescrição intercorrente em procedimento administrativo relativo à cominação da multa aduaneira do art. 107, IV, “e”, do Decreto-Lei nº 37/1966:

[…]

V – O dever de registrar informações a respeito das mercadorias embarcadas no SISCOMEX, atribuído às empresas de transporte internacional pelos arts. 37 do Decreto-Lei n. 37/1966 e 37 da Instrução Normativa SRF nº 28/1994, não possui perfil tributário, porquanto, a par de posterior ao desembaraço aduaneiro, a confirmação do recolhimento do Imposto de Exportação antecede a autorização de embarque, razão pela qual a penalidade prevista no art. 107, IV, e, do Decreto-Lei n. 37/1966, decorrente de seu descumprimento, não guarda relação imediata com a fiscalização ou a arrecadação de tributos incidentes na operação de exportação, mas, sim, com o controle da saída de bens econômicos do território nacional.

VI – As Turmas integrantes da 1ª Seção desta Corte firmaram orientação segundo a qual incide a prescrição intercorrente prevista no art. 1º, § 1º, da Lei n. 9.873/1999 quando paralisado o processo administrativo de apuração de infrações de índole não tributária por mais de 03 (três) anos e ausente a prática de atos de impulsionamento do procedimento punitivo. Precedentes.

VII – Recurso Especial parcialmente conhecido e, nessa extensão, improvido”4.

Os julgados que não reconhecem a prescrição intercorrente partem do art. 5º da Lei nº 9.873/1999: “Art. 5º O disposto nesta Lei não se aplica às infrações de natureza funcional e aos processos e procedimentos de natureza tributária”. Entendem, assim, que não há prescrição diante de infrações aduaneiras sujeitas ao rito do Decreto nº 70.235/1972. Outros, por sua vez, interpretam que os deveres aduaneiros típicos (tais como, v.g., promover o despacho de importação, classificar os produtos na NCM ou prestar informações sobre cargas transportadas, entre outros mais) seriam obrigações acessóriasdos tributos incidentes sobre o comércio exterior, estabelecidas pela legislação tributária no interesse de sua arrecadação ou fiscalização. Teriam, portanto, natureza tributária ex vi do § 3º do art. 113 do CTN.

Essas objeções não parecem procedentes. Em primeiro lugar, porque a natureza jurídica de um procedimento administrativo não decorre do nomen iuris do rito. O fator determinante, para esse fim, é o direito material aplicado5. Portanto, cumpre considerar que, nos procedimentos administrativos de infrações aduaneiras, não ocorre controle de legalidade de autos de lançamento de crédito tributário nem de autos de infração de multas de ofício decorrentes do não pagamento de tributos. Não há, enfim, aplicação do direito material tributário. Neles são julgados os atos administrativos de cominação de penalidades com características distintas, que decorrem da prática de condutas infracionais que têm o controle aduaneiro como bem jurídico tutelado. Essas infrações decorrem descumprimento de prestações devidas pelo sujeito passivo de uma relação jurídica aduaneira.

Negligência em relação ao direito aduaneiro

Até recentemente, o direito aduaneiro foi negligenciado pela doutrina brasileira, o que já foi observado por autores de outros países, a exemplo do professor argentino Ricardo Xavier Basaldua, ao lamentar que, no Brasil, “a matéria aduaneira não atraiu até um passado recente o interesse que despertaram outros ramos jurídicos”.6 Isso faz com que, entre nós, parte dos tributaristas ainda tenha certa dificuldade em compreender a autonomia da relação jurídica aduaneira em face da obrigação tributária.

A redução da relação jurídica aduaneira à obrigação de pagar tributos foi uma concepção sustentada pelas teorias fiscalistas no final do Século XIX e início do Século XX. Não há mais espaço para essa visão diante das funções da aduana moderna. Nos dias de hoje, o controle aduaneiro não pode mais ser considerado uma simples manifestação setorial do poder de polícia administrativa ou da fiscalização tributária. A aduana apresenta funções mais abrangentes, que também compreendem a fiscalização de medidas não-tarifárias (quotas de importação, proibições de ingresso ou de saída de produtos, o licenciamento, exigências técnicas, sanitárias e fitossanitárias) e a cobrança de direitos antidumping ou compensatórios em operações de importação. Outro papel relevante é o enfrentamento ao terrorismo, da lavagem de dinheiro, pirataria, tráfico de drogas, de animais, de plantas ou de bens do patrimônio histórico-cultural, o que ocorre de forma colaborativa com as autoridades policiais e com outros órgãos da administração pública intervenientes no comércio exterior (v.g., Ibama, Mapa, Inmetro, Iphan). Também cabe ao controle aduaneiro, como consagram os princípios e as regras do Acordo sobre a Facilitação do Comércio da OMC, a facilitação e a tutela do comércio internacional legítimo7.

A ampliação das funções da aduana moderna e do controle aduaneiro levou a uma autonomização da relação jurídica aduaneira. Foi percebido pela doutrina que, sob o aspecto jurídico, quando alguém promove o ingresso ou a saída de uma mercadoria do território de um país, nem sempre surge a obrigação de pagar tributos. De fato, como ninguém desconhece, há inúmeros atos de transposição de fronteira que não são tributados. Porém, ainda assim, esses atos implicam o surgimento de um vínculo jurídico relevante entre aquele que os realiza e o Estado para a verificação da observância, v.g., de medidas não tarifárias da mais absoluta relevância ou mesmo de defesa comercial8.

A autonomia da relação jurídica aduaneira pode não ser compreendida com facilidade quando se pensa em uma importação, já que os tributos aduaneiros incidem na maior parte dessas operações. Porém, fica nítida em uma exportação, que, como se sabe, não é tributada, salvo em situações especiais. Nela a saída do produto do território nacional não implica o surgimento de uma obrigação tributária, mas, independentemente disso, sempre existirá uma relação jurídica aduaneira. Dito de um outro modo, em qualquer caso haverá a instauração de um vínculo jurídico autônomo que garante ao Estado-aduana, mesmo sem qualquer repercussão fiscal efetiva ou potencial, o direito de exigir do particular a uma série de prestações necessárias ao controle aduaneiro da operação, inclusive para evitar, v.g., a exportação de mercadorias proibidas, a prática de ilícitos, como o tráfico internacional de drogas ou mesmo retirada de produtos de flora, fauna ou de valor histórico-cultural ao País9.

Destarte, em um cenário hipotético em que não exista mais cobrança de tributos sobre o comércio exterior, os deveres que exprimem o conteúdo da relação jurídica aduaneira continuarão necessários e exigíveis toda vez que ocorrer um ato de transposição da fronteira. Isso evidencia, como assinala Enrique Barreira, que esses deveres realmente não são acessórios das obrigações tributárias:

“Se a importação ou a exportação não fossem tributadas, esses deveres seriam igualmente mantidos para permitir o controle do cumprimento, tanto de outras restrições de caráter econômico e de caráter não econômico, como dos regimes econômicos de incentivo ao comércio, o que demonstra que, em qualquer caso, não são acessórios à obrigação tributária aduaneira, deixando claro que a relação jurídica “tributária” aduaneira não é o fim primordial buscado pelo direito aduaneiro”10.

Compreensão dos deveres aduaneiros típicos como obrigações acessórias dos tributos incidentes sobre o comércio exterior

Dessa forma, não se mostra apropriada a compreensão dos deveres aduaneiros típicos como obrigações acessórias dos tributos incidentes sobre o comércio exterior. Esses deveres são prestações exigíveis pelo Estado-aduana de todos que promovem a entrada ou a saída de produtos do território aduaneiro, não para fins arrecadatórios, mas no interesse do controle aduaneiro das operações de comércio exterior. Exprimem o conteúdo de uma relação jurídica aduaneira, que é autônoma em relação à obrigação tributária. Por conseguinte, as infrações que decorrem do seu descumprimento têm natureza aduaneira e não estão sujeitas aos § 2º e § 3º do art. 113 do CTN. Assim, a despeito do nomen iuris do rito, os procedimentos administrativos em que se realiza o controle interno de legalidade dos autos de infração e de penalidades aduaneiras estão sujeitos às regras de prescrição intercorrente da Lei nº 9.873/1999.

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VEJA TAMBÉM:


NOTAS

1JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 13. ed. São Paulo: RT, 2018. p. 1361.

2Veja-se, a propósito dessa discussão, os seguintes artigos publicados no “site” Consultor Jurídico: FEIL, Vera Lúcia; BRANCO, Leonardo. A prescrição intercorrente das multas aduaneiras. Consultor Jurídico – Território aduaneiro. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-nov-01/territorio-aduaneiro-prescricao-intercorrente-administrativa-multas-aduaneiras. Acesso em: 30/10/2023; TREVISAN, Rosaldo. Prescrição intercorrente e aduana: “Back to the future” (parte 1). Consultor Jurídico – Território aduaneiro. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-fev-28/artx-territorio-aduaneiro-prescricao-intercorrente-aduana-back-to-the-future-parte. Acesso em 30/10/2023; TREVISAN, Rosaldo. Prescrição intercorrente e Aduana: “Back to the future” (parte 2). Consultor Jurídico – Território aduaneiro. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-abr-04/territorio-aduaneiro-prescricao-intercorrente-aduana-back-to-the-future-parte. Acesso em 30/10/2023; TREVISAN, Rosaldo. Prescrição intercorrente e Aduana: “Back to the future” (parte 3). Consultor Jurídico – Território aduaneiro. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-mai-09/territorio-aduaneiro-prescricao-intercorrente-aduana-back-to-the-future-parte. Acesso em 30/10/2023; DANIEL NETO, Carlos Augusto; BRANCO, Leonardo. A prescrição intercorrente, o REsp 1.115.078 e o Carf: Eppur si muove! Consultor Jurídico – Direto do Carf. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-fev-15/direto-carf-prescricao-intercorrente-resp-1115078-carf-eppur-si-muove. Acesso em 30/10/2023; DANIEL NETO, Carlos Augusto. Prescrição intercorrente e aduana: uma réplica crítica e grata. Consultor Jurídico – Direto do Carf. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-mar-08/direto-carf-prescricao-intercorrente-aduana-replica-critica-grata. Acesso em: 30/10/2023. DANIEL NETO, Carlos Augusto. Prescrição Intercorrente e o PAF: on ne résiste pas a l’invasion des idées!. Consultor Jurídico – Direto do Carf. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-jul-05/direto-carf-prescricao-intercorrente-paf-invasao-ideias. Acesso em: 30/10/2023;

3Reconhecendo a incidência da prescrição intercorrente: TRF-4ª Região. 1ª T. APL 5002013-95.2016.4.04.7203. Rel. Des. Fed. Francisco Donizete Gomes. D. 28/08/2019. Afastando a sua caracterização: TRF4. 1ª T. AC 5003208-17.2022.4.04.7200. Rel. Des. Fed. Leandro Paulsen. Julgado em 21/09/2022. No mesmo sentido: TRF4. 1ª T. AC 5003519-07.2019.4.04.7008. Rel. Des. Leandro Paulsen. Julgado em 13/07/2022.

4STJ. REsp 1.999.532. Rel. Min. Regina Helena Costa. DJe 15/05/2023. No mesmo sentido: STJ. Decisão monocrática. REsp nº 2.048.597. Min. Herman Benjamin. DJe 17/02/2023: “a multa de que trata o art. 107, inc. IV, alínea ‘e’, do Decreto-Lei nº 37, de 1966, é aplicada no exercício do poder de polícia da Administração Aduaneira, possuindo natureza administrativa e não tributária. Incidem no caso, portanto, as normas da Lei 9.873, de 1999, que estabelece prazo de prescrição para o exercício de ação punitiva por parte da Administração Pública Federal”.

5ALVIM, Arruda. Processo tributário referente às áreas de direito tributário e direito processual civil. Revista do Ministério Público. Rio de Janeiro: Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, n. comemorativo, 1995, p. 81. Cf. ainda: ALVIM, Teresa Arruda; MARINS, James. Processo tributário. In: ALVIM, Teresa Arruda (coord.) Repertório de jurisprudência e doutrina sobre processo tributário. São Paulo: RT, 1994, p. 8-9. Discorrendo especificamente sobre a natureza jurídica do processo administrativo fiscal, Allan Fallet ensina que: “Dessa forma, o processo administrativo fiscal é o conjunto de relações jurídicas, de natureza administrativa, que se combinam e se materializam por meio do procedimento, sendo uma espécie de processo administrativo destinada a determinação e exigência do crédito tributário em razão de apresentar peculiaridades específicas na aplicação da legislação pela Administração Tributária, ao mesmo tempo em que obedece a regras de Direito Público […]” (FALLET, Allan. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Estudos Pós-Graduados em Direito, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2018, p. 100, também publicado em FALLET, Allan. A natureza jurídica do processo administrativo fiscal. São Paulo: Noeses, 2019).

6BASALDÚA, Ricardo Xavier. Reflexiones sobre el Codigo Aduanero del Mercosur. Revista del Instituto Argentino de Estudios Aduaneros, Buenos Aires, n. 10, p. 119, 2. sem. 1996-1. sem. 1997. Disponível em: http://www.iaea.org.ar. Original: “En Brasil, en cambio, es de lamentar que la materia aduanera no haya concitado hasta un pasado reciente el interés que despertaron otras ramas jurídicas, como es el caso del Derecho Civil y el Comercial, donde descollaran tantos juristas, empezando por el recordado Freitas, una luz que iluminó a Vélez Sarsfield”.

7SEHN, Solon. Curso de direito aduaneiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022. p. 2 e ss.

8SEHN, Solon. Curso de direito aduaneiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022. p. 24 e ss.

9 SEHN, Solon. Curso de direito aduaneiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022. p. 119 e ss..

10 BARREIRA, Enrique C. La relación jurídica tributaria y relación jurídica aduanera. Revista de Estudios Aduaneros nº 18. Buenos Aires: Instituto Argentino de Estudios Aduaneros, p. 69. Traduzimos, do original: “Si la importación o exportación no estuvieran gravadas con tributos, estos deberes igualmente se mantendrían para permitir que se controle el cumplimiento, tanto de otras restricciones de carácter económico y de carácter no económico, como de los regímenes económicos de aliento al comercio, lo que demuestra que, en todo caso, no son accesorias de la obligación tributaria aduanera, quedando en claro que la relación jurídica ‘tributaria’ aduanera no es el fin primordial buscado por el derecho aduanero”.

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