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Lockdown porque o Estado é mau?
Hugo de Brito Machado Segundo
08/04/2021
Não é raro ouvirmos, ou lermos, em discussões em torno das medidas tomadas pelo poder público para conter o avanço da pandemia causada pelo novo coronavírus (Covid-119) que a restrição ao exercício de atividades econômicas é fruto da perversidade de governantes. Insensibilidade para com as dificuldades enfrentadas pelos que exercem atividades econômicas.
O objetivo deste artigo não é propriamente o de defender, ou atacar, restrições como o lockdown, que muitos governadores de estado vêm implementando. Epidemiologistas, especialistas em saúde pública, e infectologistas talvez sejam mais habilitados para esse debate. À população que não detém os conhecimentos especializados inerentes a tais áreas caberia, portanto, alguma humildade para ouvir quem estudou um pouco mais a respeito do assunto. E para observar o que, em muitos outros países no mundo, foi ou está ainda sendo feito nesse sentido.
Em verdade, o que se pretende aqui é tão somente examinar o argumento segundo o qual os Estados implantariam medidas como o lockdown, toques de recolher e restrição nos horários de funcionamento de estabelecimentos comerciais, por insensibilidade, ou mera perseguição mesmo, relativamente àqueles que exercem atividades econômicas. A análise, portanto, dar-se-á exclusivamente sob o prisma tributário.
No mundo contemporâneo, não se tem mais o chamado “Estado patrimonial”, assim entendido aquele que era proprietário de terras, portos, minas, rios, e nessa condição os explorava para, daí, extrair os recursos necessários ao seu financiamento. Também não mais subsiste o chamado “Estado empresário”, detentor dos meios de produção e, assim, responsável pela geração das riquezas necessárias ao seu próprio sustento. Quanto a este último, o fracasso das economias em que a propriedade dos meios de produção era subtraída dos particulares fala por si. Contra fatos não há argumentos.
Vive-se hoje, portanto, a primazia do “Estado fiscal”, assim entendido aquele que faculta aos particulares o livre exercício da atividade econômica, dela participando apenas excepcionalmente, mas que se apropria de fração do resultado nela obtido, para financiar suas atividades. Trata-se da maneira de implementar a máxima liberal de permitir aos particulares o amplo exercício de uma extensa gama de liberdades, inclusive econômicas, mas fazê-lo de modo a garantir aos que se encontram em posições menos favorecidas meios, ou oportunidades, para ascender ou mudar de posição social.
Em suma, o Estado, em regra, não produz. Mas depende de quem produz. Não exerce atividades empresariais, mas tributa quem o faz. Sua principal fonte de custeio é a receita tributária, dita derivada, a saber, fruto da riqueza gerada por terceiros, que são compelidos pelo Estado a entregar-lhe fração dela.
Tais noções, de resto óbvias e elementares no âmbito do Direito Tributário, e das finanças públicas, são aqui lembradas para afastar a ideia de que medidas restritivas do exercício de atividades econômicas, como o lockdown, tomadas como forma de conter o avanço do vírus, são decorrentes da maldade, do egoísmo ou da insensibilidade de governantes. As medidas até podem ser passíveis de críticas, correções ou aperfeiçoamentos, mas não se pode dizer que sejam fruto do egoísmo ou da indiferença dos governantes.
A razão é simples. Se o poder público não produz riqueza; se, em regra, não gera os recursos de que necessita para atender os seus fins, dependendo para tanto da riqueza gerada pelos particulares, que lhe é transferida por intermédio dos tributos, então medidas que restringem o exercício de atividades econômicas obviamente prejudicam também o poder público.
Se o Estado, em regra, não produz, não vende, não é proprietário, mas tributa aqueles que produzem e vendem, medidas que restringem o exercício de atividades econômicas e diminuem a produção e a comercialização de bens e serviços têm impacto direto, por igual, na arrecadação de tributos, vale dizer, na receita pública.
Nessa ordem de ideias, o lockdown, além de não ter fundamento ideológico, até por estar sendo decretado em todo o mundo, conforme o grau de necessidade, por governos de direita ou de esquerda, não é medida que prejudique apenas o setor privado. Afeta, também, o setor público, que depende da economia e por ela é sustentado.
Aliás, em todo o mundo, a Covid-19 impõe ao poder público não apenas uma diminuição das receitas, mas um aumento de despesas, com o crescente gasto com internações, com a prestação dos serviços de saúde e a necessidade de ampliação dos leitos de UTI, e por igual com o pagamento de auxílios àqueles que se veem privados ou limitados em sua liberdade econômica. Um maior auxílio aos que se veem privados de sua liberdade econômica, isso, sim, pode ser validamente debatido, em vez de se cogitar da pressionar contribuintes, inclusive criminalmente, por uma maior arrecadação, como já foi examinado aqui nesta coluna. Daí por que o impacto nas contas públicas é duplo, pois se reduzem receitas e se aumentam despesas, com reflexos evidentes no aumento do déficit.
Tampouco se devem interpretar as medidas restritivas como punições, algo comum quando se diz que o empresário do varejo deste ou daquele setor não é o “culpado” pela proliferação do vírus, não podendo por isso sofrer os efeitos das medidas adotadas para conter sua propagação. Não se trata de castigo, a ser perfeitamente individualizado conforme o grau de imputabilidade ou de culpa, mas de medida necessária a diminuir o número de infectados e evitar o colapso do sistema de saúde, levando pessoas à morte simplesmente por não haver condições para que sejam atendidas, por falta de vagas nos hospitais. O setor a ser objeto de restrição deve ser aquele considerado menos essencial, e mais propício à propagação do vírus, e não aquele menos culpado por se ter chegado na situação atual.
Não se deve, por outro lado, argumentar que, em vez de lockdown, seria melhor aumentar, ainda mais, os leitos de UTI. Para além da questão de que se deve evitar que o país funcione como um “celeiro de variantes”, o aumento no número de doentes, exponencial, pode fazer com que seja simplesmente inócuo multiplicar leitos de hospitais, por mais que se tente. Aliás, não apenas o leito em si, mas os medicamentos necessários, e o oxigênio, entre outros insumos e suprimentos, para não referir os profissionais de saúde. Tais recursos são limitados, e cedo ou tarde serão insuficientes, por mais que se invista neles, sendo certo que há pessoas que mesmo internadas e submetidas ao melhor tratamento disponível, ainda assim vêm a óbito, o que poderia ser evitado, pelo menos até que uma parcela maior da população esteja vacinada. Nesse contexto, argumentar que em vez de adotar medidas restritivas o Estado deveria aumentar os leitos de UTI soa como defender a liberdade de dirigir alcoolizado e sem cinto de segurança, entendendo-se que caberia ao Estado remediar possíveis danos daí decorrentes com a construção de mais e mais hospitais especializados em traumatologia. As pessoas reclamam de um Estado excessivamente intervencionista, mas comportam-se de forma contraditória com essa reclamação, como se precisassem mesmo de um, na medida em que não reconhecem suas próprias responsabilidades diante do problema. Há certas coisas que não precisariam ser impostas pelos governantes para serem vistas como necessárias pela sociedade, se esta se deseja emancipar.
Pessoas que nunca se preocuparam com a fome no mundo, ou com o desemprego, rapidamente adotam essas bandeiras, quando em verdade estão preocupadas apenas com a redução, no curto prazo, de suas receitas. Em relação a elas, é preciso lembrar, porém, que, se vierem a óbito, essas receitas de nada lhes servirão. Mortos seus clientes, fornecedores, e colaboradores, tampouco sua atividade fará qualquer sentido. A economia é o conjunto de atividades realizadas por seres humanos com o objetivo de produzir, distribuir e consumir bens e serviços necessários ao bem viver, não chegando sequer a fazer sentido se não existirem seres humanos com saúde para realizar tais atividades.
Conclui-se, daí, que, se governadores de partidos das mais variadas ideologias têm decretado medidas destinadas a restringir o exercício de atividades econômicas, isso se deve ao fato de que tais medidas são realmente necessárias, ou pelo menos são vistas como tal pelos governantes e pelos especialistas que os assessoram. Não se trata de pura insensibilidade, até porque todos perdem com elas. A questão reside em aferir quais perdas são maiores: as decorrentes de sua decretação, ou de sua não decretação. Nesse contexto, a comparação com o que se fez e o que ocorreu em outros países talvez dê algum amparo empírico à discussão.
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