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Lei complementar e a reforma tributária

Solon Sehn

Solon Sehn

08/01/2024

A promulgação da Emenda nº 132/2023 é apenas a primeira etapa da Reforma Tributária. A implementação dos novos tributos – a CBS (Contribuição sobre Bens e Serviços), o IBS (Imposto sobre Bens e Serviços) e a IS (Imposto Seletivo) – dependerá da definição da hipótese de incidência, das regras de não cumulatividade, dos deveres formais (“obrigações acessórias”), da forma de cobrança, fiscalização, o contencioso administrativo fiscal, entre outros aspectos relevantes que ficaram submetidos à reserva de lei complementar. Para o início da cobrança no ano de 2026, será necessária a aprovação de pelo menos três leis complementares. Nelas deverão ser definidos mais de 70 pontos relevantes para a operacionalização dos tributos.

Dessa forma, para compreender adequadamente os novos tributos introduzidos pela Emenda nº 132/2023, deve-se não apenas conhecer o conteúdo das futuras leis, mas também – e principalmente – conhecer o regime jurídico constitucional das leis complementares.

A tarefa, infelizmente, não é das mais fáceis, em razão do laconismo do texto constitucional. O único aspecto do regime jurídico da lei complementar definido pela Constituição foi o quórum de aprovação: “Art. 69. As leis complementares serão aprovadas por maioria absoluta”. Outras questões relevantes, como a diferenciação das demais espécies legislativas e a hierarquia, não foram objeto de disciplina expressa. Isso faz com o intérprete, como bem observou Manoel Gonçalves Ferreira Filho, acabe forçado “a apoiar-se exclusivamente na opinião da doutrina, quando o estuda”1.

No livro Curso de Direito Tributário, que será lançado em breve pela Editora Forense, o regime jurídico da lei complementar tributária é estudado no Capítulo I da Parte Geral. Nele é destacado, em primeiro lugar, que a lei complementar constitui uma espécie legislativa caracterizada sob os aspectos formal e material. Trata-se de uma lei que demanda um quórum de maioria absoluta para aprovação (aspecto formal) e que, ao mesmo tempo, disciplina matérias expressamente previstas pelo texto constitucional (aspecto material). Não há, portanto, discricionariedade na escolha das questões que podem ser reguladas por essa espécie legislativa. As hipóteses reservadas à lei complementar são predeterminadas pelo texto constitucional. O legislador não pode ampliá-las, porque o quórum qualificado representa uma limitação formal à liberdade de conformação legislativa, algo que apenas pode ser disciplinado pela Constituição Federal.

A caracterização formal e material da lei complementar foi reafirmada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 01:

“A jurisprudência desta Corte, sob o império da Emenda Constitucional n. 1/69 – e a atual não alterou esse sistema –, se firmou o entendimento no sentido de que só se exige lei complementar para as matérias para cuja disciplina a Constituição expressamente faz tal exigência, e, se porventura a matéria, disciplinada por lei cujo processo legislativo observado tenha sido o da lei complementar, não seja daquelas para que a Carta Magna exige essa modalidade legislativa, os dispositivos que tratam dela se têm como dispositivos de lei ordinária”2.

Dessa forma, como o cabimento da lei complementar é predeterminado, a lei aprovada com esse nomen iuris fora das hipóteses expressamente previstas pelo texto constitucional tem natureza de lei ordinária, mesmo quando observado o quórum de maioria absoluta3. Tem-se o que a doutrina denomina lei complementar aparente ou falsa lei complementar, que pode ser revogada por uma lei ordinária posterior4. Nesses casos, como ensina Sacha Calmon Navarro Coêlho, a lei complementar sofre uma quebra de status, passando a valer tanto quanto uma lei ordinária federal. Considerando a identidade do órgão legislativo, ainda segundo o professor mineiro, aplica-se o princípio pas de nullité sans grief (não há nulidade sem prejuízo), admitindo a conservação do ato normativo, porque, em matéria de competência, “quem pode o mais pode o menos”5.

Outra questão estudada no Curso de Direito Tributário é a hierarquia da lei complementar. Nessa parte do livro é ressaltado que há três diferentes teorias acerca da hierarquia. Todas, porém, convergem para reconhecer que a lei ordinária não pode contrariar validamente o conteúdo normativo da lei complementar:

“Em síntese, atualmente, três são as teorias a respeito da hierarquia da lei complementar. De acordo com a doutrina da posição intercalar, sempre há hierarquia entre a lei complementar e a lei ordinária. Já para os que acompanham o entendimento de Borges, a preeminência hierárquica existe apenas quando a lei complementar estabelece o fundamento de validade de outras espécies legislativas. Nos demais casos, a questão seria um falso problema. Eventuais conflitos devem ser solucionados de acordo com o princípio da competência: se a lei ordinária invadir o campo reservado ao legislador complementar, será formalmente inconstitucional; se a lei complementar invadir o campo próprio da lei ordinária, será considerada uma falsa lei complementar6. Já para quem nega a relação hierárquica, a incompatibilidade deve ser resolvida a partir dos princípios da competência e da reserva legal. Em todas essas concepções, no entanto, a lei ordinária não pode contrariar validamente o conteúdo normativo da lei complementar”7.

Quer ler mais sobre a lei complementar tributária? Aguarde, em breve, o lançamento do Curso de Direito Tributário.

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NOTAS

1 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Do processo legislativo. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1995. p. 241.

2 Voto do Ministro Relator, p. 124, na ADC 1, Tribunal Pleno, Rel. Min. Moreira Alves, DJU 16.06.1995. No mesmo sentido, cf.: RE 138.284-8, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Velloso, DJU 28.08.1992.

3 BORGES, José Souto Maior. Lei complementar tributária. São Paulo: RT, 1975. p. 26.

4 Nesses casos, como explica Celso Bastos, “essa ‘pseudo’ lei complementar pode ser revogada por lei ordinária, dispensando desta maneira a necessidade de votação por maioria absoluta” (BASTOS, Celso. Lei complementar: teoria e comentários. 2. ed. São Paulo: Celso Bastos Editor, 1999. p. 144).

5 COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Comentários à Constituição de 1988: sistema tributário. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 99.

6 BORGES, José Souto Maior. Lei complementar tributária. São Paulo: RT, 1975. p. 25-27.

7 SEHN, Solon. Curso de direito tributário. Rio de Janeiro: Forense, no prelo.

8 Cabe à lei complementar: (a) especificar as aquisições de bens ou serviços consideradas de uso ou consumo pessoal, para fins de vedação ao creditamento do IBS e da CBS (art. 156-A, § 1º, VIII; art. 195, § 15); (b) os termos em que será fixada a alíquota de referência para cada unidade federativa por parte do Senado Federal (art. 156-A, § 1º, XII; art. 195, § 15); (c) definir como sujeito passivo do IBS e da CBS a pessoa que concorrer para a realização, a execução ou o pagamento da operação, ainda que residente ou domiciliada no exterior (CF, art. 156-A, § 3º; art. 195, § 15); (d) dispor sobre as regras para a distribuição do produto da arrecadação do IBS (CF art. 156-A, § 5º, I); (e) o regime de compensação do IBS e da CBS (CF art. 156-A, § 5º, II; art. 195, § 15); (f) a forma e o prazo para ressarcimento de créditos acumulados pelo contribuinte do IBS e da CBS (CF art. 156-A, § 5º, III; art. 195, § 15); (g) os critérios para a definição do destino da operação do IBS e da CBS (CF art. 156-A, § 5º, IV; art. 195, § 15); (h) a forma de desoneração da aquisição de bens de capital pelos contribuintes do IBS e da CBS (CF art. 156-A, § 5º, V; art. 195, § 15); (i) hipóteses de diferimento e desoneração do IBS e da CBS aplicáveis aos regimes aduaneiros especiais e às zonas de processamento de exportação (CF art. 156-A, § 5º, VI; art. 195, § 15); (j) o processo administrativo fiscal do IBS (CF art. 156-A, § 5º, VII; art. 195, § 15); (k) as hipóteses de devolução do IBS e da CBS (cashback) a pessoas físicas (CF art. 156-A, § 5º, VIII; art. 195, § 15); (l) critérios para as obrigações tributárias acessórias do IBS e da CBS, visando sua simplificação (CF art. 156-A, § 5º, IX; art. 195, § 15); (m) disciplinar os regimes específicos de tributação do IBS e da CBS (CF, art. 156-A, § 6º; art. 195, § 15); (n) prever exceções à regra de anulação do crédito das operações anteriores isentas (CF, art. 156-A, § 7º, II art. 195, § 15); (o) estabelecer o conceito de operações com serviços, seu conteúdo e alcance (CF, art. 156-A, § 8º; art. 195, § 15); (p) determinar o cálculo e a concessão da devolução do IBS e da CBS no momento da cobrança da operação nas operações com fornecimento de energia elétrica e com gás liquefeito de petróleo ao consumidor de baixa renda (CF, art. 156-A, § 13; art. 195, § 15).

9 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Do processo legislativo. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1995. p. 241.

10Doutrinária foi a denominação empregada por Geraldo Ataliba (ATALIBA, Geraldo. Lei complementar na Constituição. São Paulo: RT, 1971. p. 30) e clássica, por Celso Bastos (BASTOS, Celso. Lei complementar: teoria e comentários. 2. ed. São Paulo: Celso Bastos Editor, 1999. p. 24 e ss.).

11 BASTOS, Celso. Lei complementar: teoria e comentários. 2. ed. São Paulo: Celso Bastos Editor, 1999. p. 28 e ss.; BORGES, José Souto Maior. Lei complementar tributária. São Paulo: RT, 1975. p. 34; ATALIBA, Geraldo. Lei complementar na Constituição. São Paulo: RT, 1971. p. 30.

12 A observação deve-se a Miguel Reale que, após a revogação da Emenda 4, recomendou o restabelecimento da lei complementar, para dar maior estabilidade a regras que, sem gozar da “rigidez dos textos constitucionais”, ficariam resguardadas de “decisões ocasionais ou fortuitas que às vezes surpreendem o próprio Parlamento e a opinião pública” (Conferência. Reforma do Poder Legislativo no Brasil, s.l., s.d., p. 112).

13 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003. p. 33. Ademais, como observou Geraldo Ataliba, “a exigência de quórum qualificado importa restrição ao Poder Legislativo e alteração qualificativa de sua competência, o que só a Constituição pode estabelecer. […] Aí o principal motivo pela qual a lei complementar não pode, direta ou indiretamente, criar inibições ao legislador ordinário. Estas somente podem conter-se em disposição constitucional” (ATALIBA, Geraldo. Lei complementar na Constituição. São Paulo: RT, 1971. p. 38).

14 MACHADO, Hugo de Brito. Posição hierárquica da Lei Complementar. Revista Dialética de Direito Tributário, São Paulo, n. 14, p. 20-21: “[…] a rigor, não há vigente na Constituição qualquer norma, ou princípios, que expressa ou implicitamente autorize a conclusão de que a lei complementar somente pode cuidar de matérias a estas reservadas pela Constituição. Existem é certo, dispositivos que tornam determinadas matérias privativas de lei complementar, o que é coisa rigorosamente diversa”.

15 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003. p. 33.; ATALIBA, Geraldo. Lei complementar na Constituição. São Paulo: RT, 1971. p. 38.

16 SEHN, Solon. Curso de direito tributário. Rio de Janeiro: Forense, no prelo.

17 O entendimento em questão foi acolhido por alguns julgados do STJ, como no AGRESP 253.984 (1ª T., Rel. Min. José Delgado, DJU 18.09.2000, p. 105).

18 Voto do Ministro Relator, p. 124, na ADC 1, Tribunal Pleno, Rel. Min. Moreira Alves, DJU 16.06.1995. No mesmo sentido, cf.: RE 138.284-8, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Velloso, DJU 28.08.1992.

19 BORGES, José Souto Maior. Lei complementar tributária. São Paulo: RT, 1975. p. 26.

20 Nesses casos, como explica Celso Bastos, “essa ‘pseudo’ lei complementar pode ser revogada por lei ordinária, dispensando desta maneira a necessidade de votação por maioria absoluta” (BASTOS, Celso. Lei complementar: teoria e comentários. 2. ed. São Paulo: Celso Bastos Editor, 1999. p. 144).

21 COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Comentários à Constituição de 1988: sistema tributário. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 99.

22 BORGES, José Souto Maior. Lei complementar tributária. São Paulo: RT, 1975. p. 25-27.

23 Sobre o tema, cf.: VAZ, Manoel Afonso. Lei e reserva de lei: a causa da lei na Constituição Portuguesa de 1976. Porto: Universidade Católica Lusitana, 1992. p. 389-391; MONCADA, Luís Cabral de. A reserva de lei no actual direito público alemão. Lisboa: Universidade Lusíada, 1992. p. 9 e ss.

24 GUASTINI, Riccardo. Estudios de teoría constitucional. México: UNAM, 2001. p. 47.

25 SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 1998. p. 246-247.

26 GUASTINI, Riccardo. Estudios de teoría constitucional. México: UNAM, 2001. p. 49.

27 SEHN, Solon. Curso de direito tributário. Rio de Janeiro: Forense, no prelo.

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