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TRIBUTÁRIO
Imposto de Renda retido na fonte sobre pagamento sem causa e a beneficiários não identificados: inconstitucionalidade do uso de tributos como sanção anômala

Solon Sehn
15/08/2025
O Imposto de Renda Retido na Fonte (IRRF) incidente nas hipóteses de pagamento sem causa ou a beneficiário não identificado encontra-se previsto no art. 61 da Lei nº 8.981/1995. Esse dispositivo submete a pessoa jurídica pagadora a uma tributação definitiva, exclusivamente na fonte, com alíquota nominal de 35% (que, após o reajustamento da base de cálculo previsto no § 3º do art. 61, implica uma carga tributária efetiva de 53,84% do rendimento):
“Art. 61. Fica sujeito à incidência do Imposto de Renda exclusivamente na fonte, à alíquota de trinta e cinco por cento, todo pagamento efetuado pelas pessoas jurídicas a beneficiário não identificado, ressalvado o disposto em normas especiais.
§ 1º A incidência prevista no caput aplica-se, também, aos pagamentos efetuados ou aos recursos entregues a terceiros ou sócios, acionistas ou titular, contabilizados ou não, quando não for comprovada a operação ou a sua causa, bem como à hipótese de que trata o § 2º, do art. 74 da Lei nº 8.383, de 1991.
§ 2º Considera-se vencido o Imposto de Renda na fonte no dia do pagamento da referida importância.
§ 3º O rendimento de que trata este artigo será considerado líquido, cabendo o reajustamento do respectivo rendimento bruto sobre o qual recairá o imposto”.
Características Punitivas da Tributação
Trata-se, como se vê, de um preceito com caráter nitidamente sancionatório. A alíquota nominal de 35% e a carga efetiva de 53,84% do IRRF (Lei nº 8.981/1995, art. 61, caput e § 3º) superam em muito as alíquotas de 15% do IRPJ (Imposto de Renda da Pessoa Jurídica) e de 27,5%, que é a maior do IRPF (Imposto de Renda da Pessoa Física). Essa majoração, por sua vez, não ocorre em função do aumento da capacidade contributiva do obrigado, mas unicamente devido à ocorrência de um pagamento sem causa ou a beneficiário não identificado.
Essas características, segundo ensina Sacha Calmon Navarro Coêlho, evidenciam o carácter punitivo da exação:
“Algumas legislações contemplam casos em que a prática de ilícito fiscal redunda em agravamento da tributação (a alíquota é majorada, a base de cálculo é ampliada ou o quantum debeatur é percentualmente acrescido). […] O fato de o legislador ter pretendido exacerbar o quantum do tributo em razão do contribuinte ter praticado ato ilícito e chamado a tal fenômeno de ‘agravação’ ou ‘majoração’ não significa, em verdade, fazer um acréscimo de natureza tributária. Trata-se, sem mais, de autêntica multa, apesar de nomen juris que se queira lhe dar.” (Teoria e prática das multas tributárias. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 61-62).
O Caráter Penal do Imposto de Renda Retido na Fonte
No mesmo sentido, discorrendo especificamente sobre a natureza do IRRF do art. 61 da Lei nº 8.981/1995, José Antônio Minatel ressalta que:
“Ainda que não queira dar crédito ao histórico que coloca a descoberto a razão da existência de regra jurídica criada, a investigação do seu binômio normativo – hipóteses e consequência – é suficiente para confirmar que a norma tem nítido caráter penal, com atribuição de consequência de cunho pecuniário (penalidade, multa de 35%) ao descumprimento de preceito que comanda a técnica dos registros das operações empresariais, notadamente a determinação para haver registro individualizado dos fatos econômicos que afetam, qualitativa ou quantitativamente, o patrimônio da entidade empresarial.” (Pagamento sem causa, ou a beneficiário não identificado: impossibilidade de exigência de 35% a título de IR-Fonte. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva; PEIXOTO, Marcelo Magalhães – coord.. Imposto sobre a renda e proventos de qualquer natureza: questões pontuais da Apet. São Paulo: MP, 2006, p. 239. g.n.)
Violação de Princípios Constitucionais
Ocorre que, no Estado de Direito, o uso sancionatório ou punitivo da agravação de um tributo, previsto no art. 61 da Lei nº 8.981/1995, não é compatível com o princípio constitucional da capacidade contributiva (CF, art. 145, § 1º), violando ainda o conceito de tributo expresso no art. 3º do CTN (Código Tributário Nacional):
“Art. 145. […] § 1º Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte.”
“Art. 3º Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada.”
O Princípio da Capacidade Contributiva
Um tributo, dessarte, não pode constituir, mesmo indiretamente, uma medida punitiva a um comportamento reprovável imputado ao sujeito passivo. Também não é possível, como fez a Lei nº 8.981/1995 (art. 61, caput e § 3º), adotar esse mesmo critério para fins de aplicabilidade de uma alíquota e de uma base de cálculo mais elevadas.
Como assinalam Queralt, Serrano, Ollero e Lopes: “Tributo y sanción responden a principios materiales de justicia absolutamente diferenciados: capacidad económica y restablecimiento de un orden vulnerado, respectivamente” (QUERALT, Juan Martín; SERRANO, Carmelo Lozano; OLLERO, Gabriel Casado; LÓPEZ, José M. Tejerizo. Curso de derecho financiero y tributario. 9. ed. Madrid: Tecnos, 1998. p. 92). César García Novoa ressalta que esse fundamento já foi adotado pelo Tribunal Constitucional da Espanha, na Sentença 194/2009, que afastou medidas tributárias de caráter sancionador (que o autor denomina sanção encoberta, atípica ou anômala) porque “[…] las mismas provocan un efecto represivo al que no se aplican las garantías propias de orden punitivo” (El concepto de tributo. Buenos Aires: Marcial Pons, 2012, p. 220).
De fato, o uso de um tributo ou a sua majoração como sanção encoberta ou anômala implica a violação ao princípio da culpabilidade, que decorre dos arts. 1º, III, 4º, II, 5º, caput e XLVI, da Constituição Federal. Esse princípio constitucional exige que, em matéria sancionatória, a responsabilização dependa da demonstração de culpa ou de dolo. Assim, como ressaltado pelo Ministro Luís Roberto Barroso, em contexto distinto, mas aplicável à hipótese: “sempre que o antecedente de uma norma for um comportamento reprovável e o consequente uma punição, é absolutamente indispensável fazer uma análise do elemento subjetivo da conduta” (STF, 1ª T., AI 727.872 AgR, Rel. Min. Roberto Barroso, DJe 18.05.2015). Como a intenção do agente não tem relevância para o surgimento das obrigações tributárias, um tributo com caráter punitivo viola essa garantia constitucional em matéria sancionatória.
Também há violação do princípio do ne bis in idem, já que o tributo empregado como sanção anômala (Lei nº 8.981/1995, art. 61, caput e § 3º) é exigido acrescido de multa de ofício de 75% a 150% (Lei nº 9.430/1996, art. 44, I e § 1º, VI e VII). Há, assim, uma dupla penalização que não seria válida, se não tivesse ocultada sob a forma de tributo.
O princípio do ne bis in idem, como ensina o Ministro Riberto Dantas, é um limite implícito ao poder estatal derivado da coisa julgada (CF, art. 5º, XXXVI) e de tratados internacionais firmados pela República Federativa do Brasil:
“[…] Embora não tenha previsão expressa na Constituição Federal de 1988, a garantia do ne bis in idem é um limite implícito ao poder estatal, derivada da
própria coisa julgada (art. 5º, XXXVI) e decorrente de compromissos internacionais assumidos pelo Brasil (art. 5º, § 2º). Isso porque a Convenção Americana de Direitos Humanos (art. 8º, n. 4) e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (art. 14, n. 7), incorporados ao direito brasileiro com status supralegal pelos Decretos 678/1992 e 592/1992, respectivamente, instituem
a vedação à dupla incriminação.” (STJ, 5ª T., REsp 1.847.488/SP, Rel. Min. Ribeiro Dantas, DJe 26.04.2021).
Ressalte-se que o STF (Supremo Tribunal Federal), em precedente anterior à Constituição Federal de 1988, já declarou a inconstitucionalidade de tributo com essa característica anômala. No RE 94.001, julgado no ano de 1982, a Suprema Corte invalidou a cobrança de um adicional de 200% ao imposto imobiliário de construções irregulares (sem “habite-se”, auto de vistoria e alvará de conservação), previsto no art. 15 da Lei Municipal 6.989/1966 (Código Tributário do Município de São Paulo, na redação da Lei Municipal 7.572/1970). Nesse julgamento, ainda atual, o Ministro Moreira Alves ressaltou que a lei não pode “transformar multa em tributo, outorgando àquela a proteção privilegiada – assim, no tocante às preferências (arts. 186 e segs. do C.T.N.) – que a legislação complementar federal atribui a este”:
“Se o município quer agravar a punição de quem constrói irregularmente, cometendo ilícito administrativo, que crie ou agrave multas com essa finalidade. O que não pode – por ser contrário ao artigo 3º do C.T.N., e, consequentemente, por não se incluir no poder de tributar que a Constituição Federal lhe confere – e criar adicional de tributo para fazer as vezes de sanção pecuniária de ato ilícito” (STF, Tribunal Pleno, RE 94.001/SP, Rel. Min. Moreira Alves, DJ 11.06.1982).
A Inconstitucionalidade do Art. 61 da Lei nº 8.981/1995
Em síntese, portanto, o art. 61 da Lei nº 8.981/1995 é inconstitucional, porque viola os princípios constitucionais da capacidade contributiva (CF, art. 145, § 1º), da culpabilidade (CF, arts. 1º, III, 4º, II, 5º, caput e XLVI), do ne bis in idem (CF, art. 5º, XXXVI, § 2º), além do próprio conceito de tributo previsto no art. 3º do CTN.

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