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CLÁSSICOS FORENSE
REVISTA FORENSE
TRIBUTÁRIO
Imposto de consumo – interpretação das leis fiscais
Revista Forense
11/10/2023
– A lei tributária comporta tôda e qualquer espécie de interpretação, contanto que dela resulte, como nos outros ramos do direito, a plena declaração do conteúdo legal.
– As palavras usadas pelo legislador tributário numa enunciação, podem sê-lo em caráter meramente exemplificativo ou taxativo, e, ainda, em sentido vulgar, técnico ou como formas elípticas.
– As camionetas ou “pik-ups”, pequenos caminhões que são, destinados ao transporte de carga, estão compreendidas na isenção do imposto de consumo.
Parecer
1. A hipótese é simples. Trata-se de importação de veículos, cujo tipo e características correspondem aos que comumente se denominam de pick-ups ou caminhonetas, destinados ao transporte de carga.
A Consolidação das Leis do Impôsto de Consumo, no inciso 3 da alínea I da Tabela A, dispõe que o impôsto de consumo incide sôbre “automóveis, excetuados os ônibus, caminhões e ambulâncias”.
Diante disso, levando a interpretação literal até as suas últimas e mais lamentáveis conseqüências, sustenta o fisco que a categoria de veículos de que se trata, tendo denominação que não soa exatamente em consonância com as expressões constantes da dição legal, está sujeita à incidência do impôsto de consumo instituído pelo inciso 3 da alínea I da Tabela A, acima transcrito. Tal é o tema, de que passaremos a ocupar-nos, para concluir, final, no sentido da isenção tributária em favor das caminhonetas ou pick-ups.
2. A caminhoneta ou pick-up nada mais é do que um caminhão de dimensões menos avantajadas. A sua classificação deve ser feita no genus caminhão. Não é a dimensão ou a capacidade, maior ou menor, que configura essa categoria de veículos, mas a conformação estrutural e a destinação ao transporte de carga. Ora, e êsse, exatamente, o caso dos veículos aqui apreciados. Apenas, convencionou-se, na linguagem comum, chamá-los, já que são mais reduzidas as dimensões e a sua capacidade, de caminhão pequeno, caminhoneta ou pick-up.
A denominação, pois, encara únicamente um detalhe, – mas não importa na criação de um genus à parte. Se o legislador tivesse o intuito de referir-se a uma categoria especifica de caminhões, ou seja, à dos mais avantajados, é claro que fixaria a tonelagem ou as dimensões mínimas.
Não o fazendo, ao intérprete e ao aplicador não é deixada margem para aditar condições ou exigências à incidência do preceito legal.
Inexiste, entre caminhão e caminhoneta, a mais leve diferença, a não ser aquela que ocorre entre as várias espécies compreendidas num gênero.
Também no gênero ônibus outras espécies, se compreendem, como é o caso dos micro-ônibus, que só se distinguem pelo detalhe de serem menores em dimensões e capacidade, mas que mantêm os mesmos caracteres essenciais, qual seja a estrutura e a destinação ao transporte coletivo de pessoas.
Vê-se, assim, que, mesmo utilizando o processo de interpretação literal, não pode existir dúvida razoável de que pela isenção concedida aos caminhões estão abrangidos os pequenos caminhões, a que, na linguagem comum, se dá o nome de caminhoneta ou pick-up.
3. Tal método, porém, não é satisfatório. A lei não é uma fórmula abstrata, cujas expressões tenham o dom cabalístico de operar determinados efeitos única e exclusivamente pelo modo como soam.
Ao contrário, a lei é uma realidade concreta, um comando, uma declaração de vontade, cujo sentido só se penetra pela análise do seu espírito (mens) e pela indagação do seu objetivo ou finalidade (teleologische Auslegungsmethode). O que a exegese procura proporcionar é a declaração do que está contido numa lei, em tôda a sua plenitude.
A interpretação, mais do que uma pesquisa léxica, é a atividade lógica, em decorrência da qual se declara o que está determinado numa lei.
Por muito tempo se porfiou sôbre o método de interpretação que fôsse compatível com o direito tributário. Inicialmente, foram defendidos critérios apriorísticos, que remontam ao direito romano e que consideravam que a lei tributária deveria ser interpretada ou num sentido que, ocorrendo dúvida, beneficiasse o fisco (ut fisco faveat), ou, como mais tarde e por muito tempo se pensou, com apoio na sentença de MODESTINO, favorecesse o contribuinte (nun puto delinquere cum qui in dubüs quaestionibus contra fiscum faeile responderia, ou como mais conhecida, in dubio contra fiscum).
Sucedeu-se um terceiro critério que, reputando odiosa e contrária à liberdade e à propriedade a lei tributária, recomendava uma inteligência restritiva da norma, de modo que a obrigação tributária só se considerasse subsistente quando resultasse clara e manifesta do texto legal.
Exigência de tributos
O aprofundamento do estudo da disciplina, entretanto, veio demonstrar que se trata de direito comum e que absolutamente não é odiosa ou restritiva de quaisquer direitos a exigência de tributos.
Entendeu-se, conseqüentemente, que a lei tributária comporta tôda e qualquer espécie de interpretação, contanto que dela resulte, como em qualquer outro ramo do direito, a plena declaração do conteúdo legal, quer pela determinação da consistência econômica dos fatos erigidos à condição de geradores de tributos (wirtschaftliche Betrachtungsweise), quer pelo exame das fórmulas jurídicas destinadas, no comum comércio, a traduzir os fatos e circunstâncias relevantes para a tributação (Typisicrungstheorie), quer pela penetração da finalidade ou função que o tributo instituído vai desempenhar (teleologische Auslegungsmethode, Interessenjurisprudenz ou soziologische Auslegungsmethode) (sôbre êsse aspecto, cf. EZIO VANONI, “Natureza e Interpretação das Leis Tributárias” trad., vários lugares, especialmente, capítulo I e a partir do capítulo V; RUBENS GOMES DE SOUSA, “Compêndio de Legislação Tributária”, págs. 50 a 56; DINO JARACH, “El hecho imponible”, vários lugares, especialmente págs. 127 a 129 e 105 a 116; AMÍLCAR DE ARAÚJO FALCÃO, “Interpretação e integração da lei tributária”, vários lugares; ERNST BLUMENSTEIN, “System des Steuerrechts”, págs. 15 a 26; WILHELM MERK, “Steurschuldrecht”, págs. 46 a 54; ANTÔNIO BERLIRI, “Principi di diritto tributario”, vol. I, págs. 55 a 91; A. D. GANNINI, “Il rapporto giuridico d’imposta”, págs. 153 a 163).
Hoje é plenamente pacífica, a partir de 1919, data da entrada em vigor da Reichsabgabenordnung, a amplitude dos métodos de interpretação no direito tributário, sendo conhecidas as suas aplicações práticas, registradas, entre outros, por RUBENS GOMES DE SOUSA (“Conteúdo econômico e forma jurídica, na interpretação da lei tributária”, in “Anuário da Fac. de C. Econômicas e Administrativas de São Paulo”, 1949-1950, páginas 173 e 192), VANONI (loc. cit.), BERLIRI (loc. cit.) e JARACH (loc. cit.).
É preciso acentuar que êsses princípios têm plena aceitação no direito brasileiro, e, ainda agora, acabam de ser incluídos no projeto de Cód. Tributário Nacional, que admite mesmo a investigação do conteúdo econômico do fato gerador e que, depois de acentuar que, “na aplicação da legislação tributária, são admissíveis quaisquer métodos ou processos de interpretação, observado o disposto neste título” (art. 73), acrescenta o seguinte: “Na conceituação de determinado ato, fato, ou situação jurídica, para efeito de verificar se configura ou não o fato gerador e de definir a alíquota aplicável, ter-se-á diretamente em vista o seu resultado efetivo, ainda quando não corresponda ao normal em razão da sua natureza jurídica, com o objetivo de que a resultados idênticos ou equivalentes corresponda tratamento tributário igual” (art. 84).
Isto pôsto, passemos a fixar elementos e dados que mais diretamente se aplicam ao caso, com utilização de tais critérios.
Disposições legais
4. As disposições legais, já se disse, têm uma finalidade, um espírito, um animus. Emanada a norma, ela se destacada sua fonte ejetora e passa a constituir uma vontade autônoma, capaz de solucionar, por fôrça dos princípios da plenitude da lei e da concentração lógica, todos os casos que se apresentem, de acôrdo com rigoroso critério sistemático. Por isso, a simples aplicação da fórmula verbal ou léxica (chamada interpretação literal) não satisfaz, sendo necessário verificar-se o conteúdo lógico do dispositivo.
As palavras usadas pelo legislador tributário numa enunciação, podem sê-lo em caráter meramente exemplificativo, ou em caráter taxativo e, de qualquer forma, podem ser tomadas em sentido vulgar, em sentido técnico, ou como meras fórmulas elípticas.
Para inteirar-se do seu sentido, o intérprete terá, em cada caso, de considerar o elemento lógico.
Assim, na enunciação exemplificativa, o legislador menciona certo número de fatos ou circunstâncias, que entre si guardam traços comuns, capazes de permitir a sua reunião numa categoria.
Inversamente, na enumeração taxativa, a enunciação é absolutamente exígua e os fatos ou circunstâncias deixam sobressair caracteres secundários, a traduzirem situações diversas em cada hipótese, tornando-se indeterminado, ou não aparecendo, qualquer elemento ou traço comum (cf. AMÍLCAR DE ARAÚJO FALCÃO, ob. cit., págs. 4 e 5; A. BERLIRI, ob. cit., pág. 80).
Tomemos dois exemplos, para melhor facilitar o entendimento de tais noções, adaptando, para tanto, dois casos surgidos no direito italiano e mencionados por BERLIRI.
Imagine-se uma lei de impôsto de consumo, que isentasse o contribuinte, quando se tratasse de gêneros alimentícios, salvo peixes, conservas, queijos, frutas sêcas ou cristalizadas. Considere-se que os camarões são crustáceos e as baleias são cetáceos, não se classificando ambos, portanto, como peixes. Será, entretanto, possível excluí-los da tributação ou se deverá sujeita-los à prevista para os peixes?
A primeira solução seria uma monstruosidade jurídica, pois que, por uma superestimação da fórmula léxica ou verbal, se estaria distinguindo situações que a sistemática do dispositivo legal, considerado do ponto de vista lógico, teria, seguramente, querido assimilar. Realmente, se se tomarem no seu conjunto aquêles produtos enumerados, evidente é o intuito de tributar gêneros alimentícios de luxo, que virtualmente se compreendam na categoria constituída pelo conjunto de traços comuns dos objetos ou gêneros enumerados.
Na enumeração feita taxationis causa, as coisas se passam diversamente, pois, os fatos, circunstâncias, ou situações mencionados ou não mantêm quaisquer traços comuns, ou apresentam caracteres secundários divergentes, com tal realce, que transparece ser exclusiva a menção feita pelo legislador. Figure-se um impôsto especial de licença, exigível dos proprietários, detentores, criadores ou vendedores de cavalos, burros, asnos, bovinos, caprinos, suínos. É evidente que a referência, não aos equinos, mas àquelas três espécies deste gênero, seguida da indicação de vários outros gêneros, demonstra tratar-se, no primeiro caso, de enumeração taxativa. Não se compreenderiam na tributação, por exemplo, as zebras, ainda que se trate de equinos.
Método de interpretação literal
Na hipótese em apreciação, o próprio método de interpretação literal já foi aplicado, dando como resultado gozarem as caminhonetas ou pick-ups da mesma isenção concedida aos caminhões. Originariamente, não seria necessária a indagação em tôrno do elemento lógico.
Dissemos, porém, que a interpretação literal, por si só, não satisfaz. Importa, portanto, fazer a comprovação desta solução, submetendo o dispositivo a uma consideração sistemática ou lógica, enfim, realizando um exame conjugado do elemento léxico e do elemento lógico. Ora, os veículos em geral eram isentos do impôsto de consumo.
Posteriormente, com a lei nº 494, de 1948, foi acrescentado o inciso 3, antes citado, à alínea I do dec. lei nº 7.404, de 1945, passando-se a tributar os automóveis
Êsse dispositivo é redundante, aliás, quando exclui da tributação os ônibus, caminhões e ambulâncias.
Com efeito, pela letra e das isenções da alínea I, já estão excluídos da tributação “os veículos de qualquer espécie, chassis ou carrocerias, inclusive os elevadores”.
De modo que, no inciso 3, bastava que se falasse em automóveis. Houve redundância, pois, na segunda parte do dispositivo.
Imposto sobre automóveis
Vejamos, agora, o teor do inciso 3 da alínea I, ao dizer que o impôsto incide sôbre “automóveis, excetuados os ônibus, caminhões e ambulâncias”.
É evidente que o intuito do legislador foi distinguir entre os veículos destinados a fins de luxo ou semiluxo, tributando, conseqüentemente, os automóveis, e os destinados a fins de necessidade geral mais intensa, quais os de transporte de carga, de transporte coletivo de pessoas, ou de transporte com finalidade assistencial.
Essa é, aliás, uma das formas de adaptar aos impostos indiretos, de repercussões inevitáveis sôbre a coletividade, os princípios da capacidade econômica, da pessoalidade e da progressividade, evitando a tributação, quando ela vá ocasionar o encarecimento do custo de vida para os econômicamente mais fracos ou mesmo, quando não fôr possível beneficia-los isoladamente, para tôda coletividade na qual aquêles estejam compreendidos. Realmente, pelo encarecimento dos transportes de uso necessário e indispensável – transportes de carga, transportes coletivos de pessoas e transportes de caráter assistencial – evidente é o encarecimento correspondente das utilidades em geral.
Manifesto, pois, é que aquela enumeração forma uma categoria de veículos destinados a transportes necessários e indispensáveis, traduzidos pelo conjunto de traços comuns contidos na enunciação.
Não há nenhuma razão plausível para discriminar o tratamento do transporte de carga, conforme as dimensões do veículo transportador. Entender de outro modo seria desatender ao princípio da isonomia em direito tributário, princípio que os autores modernos, como ERNST BLUMENSTEIN, consideram de importância decisiva na interpretação da lei fiscal: “Unter den Verfassungsgrundsätzen die für die Auslegung des Steuerrechts Massgebend sind, beansprucht die Garantie der Rechtsgleichheit eine besondere Bedeutung” (ob. cit., pág. 16. Ou, traduzindo: “Entre os princípios constitucionais, que têm função determinante e decisiva na interpretação da lei tributária, exige a garantia da igualdade uma consideração especial”).
Vista a enunciação no seu conjunto, manifesto é que a enumeração configura uma categoria de veículos indicada pelos diferentes traços comuns em confronto.
Inegável, portanto, é que as caminhonetas ou pick-ups, pequenos caminhões que são, destinados ao transporte de carga, estão compreendidas na isenção.
Há, nesse sentido, perfeita coincidência entre os elementos léxico e lógico do dispositivo, no sentido de incluir no tratamento tributário dado ao genus caminhão a espécie constituída pelas caminhonetas ou pick-ups.
7. Entendo, conseqüentemente, estarem as caminhonetas ou pick-ups abrangidas pela isenção concedida no inciso 3 da alínea I da Tabela A da Consolidação das Leis do Impôsto de Consumo.
É o meu parecer, S. M. J.
Em 7 de janeiro de 1955. – Amílcar de Araújo Falcão, assistente jurídico do Ministério das Relações Exteriores.
Sobre o autor
Amílcar de Araújo Falcão, assistente jurídico do Ministério das Relações Exteriores.
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