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A Inconstitucionalidade do Impôsto Adicional de 1%, Da Fundação da Casa Popular

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CLÁSSICOS FORENSE

REVISTA FORENSE

TRIBUTÁRIO

A Inconstitucionalidade do Impôsto Adicional de 1%, Da Fundação da Casa Popular

FUNDAÇÃO DA CASA POPULAR

REVISTA FORENSE

REVISTA FORENSE 153

Revista Forense

Revista Forense

12/09/2022

REVISTA FORENSE – VOLUME 153
MAIO-JUNHO DE 1954
Semestral
ISSN 0102-8413

FUNDADA EM 1904
PUBLICAÇÃO NACIONAL DE DOUTRINA, JURISPRUDÊNCIA E LEGISLAÇÃO

FUNDADORES
Francisco Mendes Pimentel
Estevão L. de Magalhães Pinto,

Abreviaturas e siglas usadas
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CRÔNICA

PARECERES

NOTAS E COMENTÁRIOS

BIBLIOGRAFIA

JURISPRUDÊNCIA 

LEGISLAÇÃO

SUMÁRIO: 1. As leis sôbre o impôsto adicional. 2. Exame do dec.-lei federal nº 9.777. 3. O dec.-lei n° 9.777 é inconstitucional de qualquer forma. 4. O dec.-lei estadual nº 17.235. 5. Inconstitucionalidade da decretação do adicional pelo dec.-lei estadual n° 17.235. 6. A jurisprudência norte-americana corrobora a conclusão. 7. O destino da receita já arrecadada. 8. Conclusões sôbre o exame da constitucionalidade. 9. Um acórdão do Tribunal paulista. 10. A lei estadual n° 1.470 é inoperante e não pode ser retroativa.

Sobre o autor

Alípio Silveira, professor da Faculdade de Direito de Niterói.

NOTAS E COMENTÁRIOS

A Inconstitucionalidade do Impôsto Adicional de 1%, Da Fundação da Casa Popular

1. AS LEIS SÔBRE O IMPÔSTO ADICIONAL

O dec.-lei federal nº 9.777, de 6 de setembro de 1946, estabeleceu, em seu artigo 3°, a criação, como fonte de receita da Fundação da Casa Popular (instituída pelo dec.-lei federal nº 9.218, de 1º de maio de 1946), da “contribuição obrigatória” de 1% sôbre o valor de imóvel adquirido, de valor igual ou superior a Cr$ 100.000,00, qualquer que fôsse a forma jurídica da aquisição, cobrado juntamente com o impôsto de transmissão.

O dec.-lei n° 17.235, de 21 de maio de 1947, do Estado de São Paulo, estatuiu, em seu art. 1°:

“O impôsto de transmissão de propriedade causa mortis e o de propriedade imobiliária inter vivos ficam majorados de 1%, quando os bens transferidos forem de valor igual ou superior a Cr$ 100.000,00”.

O art. 2° do referido decreto-lei estatuiu:

“O produto da majoração referida no artigo anterior terá a destinação prevista no dec.-lei federal n° 9.777, de 6 de setembro de 1946, e 70%, no mínimo, deverá ser aplicado no Estado”.

E reza o art. 3°:

“Fica o govêrno do Estado autorizado a firmar acôrdos e estabelecer as bases de colaboração com a Fundação da Casa Popular”.

Posteriormente, surgiu a lei federal nº 1.473, de 24 de novembro de 1951, cuja art. 2º revogou expressamente o art. 3º do dec.-lei nº 9.777, de início citado.

Logo após, a lei estadual nº 1.470, datada de 26 de dezembro de 1951 e publicada a 28 do referido mês e ano, revogou os arts. 2º e 3º do dec.-lei estadual nº 17.235, acima referido.1

Afinal, o dec. nº 22.022 (Cód. de Impostos e Taxas), que entrou em vigor a 1° de março de 1953, estabeleceu o mesmo adicional no art. 15 do capítulo III.

Em face da série de bens acima referidas, surgem as seguintes questões:

a) E’ inconstitucional o art. 3° do dec.-lei federal nº 9.777?

b) E’ inconstitucional, em seu todo, o dec.-lei estadual nº 17.235, de 21 de maio de 1947?

c) Caso afirmativo, deve-se considerar o impôsto adicional de 1% como obrigação fiscal sem causa, que deve ser excluída do cálculo do impôsto de transmissão?

Afinal, caso sejam afirmativos os diagnósticos de inconstitucionalidade a que iremos proceder, surge a seguinte interrogação relativamente à lei estadual nº 1.470, de 26 de dezembro de 1951:

E’ possível que tal lei tivesse convertido em impôsto estadual o adicional de 1%? E, se tal adicional tivesse sido dessa forma convalidado, terá a lei nº 1.470 efeito retroativo?

2. EXAME DO DEC.-LEI FEDERAL Nº 9.777

Proposto ao jurista o problema da constitucionalidade de uma lei, a fase inicial do seu trabalho prende-se ao exame dos seus têrmos e à sua confrontação com os da Lei Fundamental.

Assim, ficarão fixados os pontos sôbre os quais a análise vai ser aprofundada, para a apreciação dos preceitos legais e dos princípios constitucionais que, a um primeiro exame, se revelem em aparente desarmonia, a fim de que se chague à conclusão final de existir, ou não, conflito entre a lei ordinária e a Constituição.

Comecemos pela análise do dec.-lei federal n° 9.777, de 6 de setembro de 1946. Êste decreto-lei estabeleceu, em seu art. 3°, a criação, como fonte de receita da Fundação da Casa Popular (instituída pelo dec.-lei federal nº 9.218, de 1º de maio de 1946), da contribuição obrigatória de 1% sôbre o valor de imóvel adquirido, de valor igual ou superior a Cr$ 100.000,00, qualquer que fôsse a forma jurídica da aquisição, cobrado juntamente com o impôsto de transmissão.

Acrescente-se que a atividade da Fundação foi considerada serviço público federal.

Detida análise merecem as obrigações fiscais criadas por tal decreto-lei. Estabeleceu êle o ônus, que denominou “contribuição obrigatória”, de 1% sôbre o valor de imóvel adquirido, qualquer que fôsse a forma jurídica da aquisição, uma vez que o imóvel seja de valor igual ou superior a Cr$ 100.000,00.

Vejamos como classificar tal contribuição em nosso sistema impositivo. Na esfera tributária, os ônus pecuniários pertencem às seguintes espécies: taxa, impôsto e contribuição stricto sensu. O confronto com estas diferentes formas fiscais mostrar-nos-á que o ônus do dec.-lei nº 9.777 só pode ser um impôsto.

Comecemos pela taxa. O característico fundamental da taxa é o de constituir contraprestação de serviços especiais prestados ou postos à disposição do contribuinte (cf. GASTON JÈZE, “Cours Elémentaire de Science des Finances”, Paris, 1931, págs. 335 e 338; LOUIS TROTABAS, “Précis de Science et Législation Financières”, Paris, 1938, pág. 161; EDWIN SELIGMAN, “Essays in Taxation”, 1931, pág. 432).

O mais ligeiro confronto com o decreto-lei n° 9.777 nos mostra que o ônus aí estabelecido é muito diferente da taxa, pois não há contraprestação de espécie alguma ao transmitente que paga a contribuição obrigatória de 1%.

Quanto à contribuição stricto sensu, existem duas modalidades fiscais dela entre nós. A primeira é a contribuição de melhoria, prevista na Constituição de 1934, art. 124, e na Constituição de 1946, art. 30, a qual sòmente pode ser instituída quando verificada a valorização de imóveis, por motivo de obras públicas. Acrescente-se que, na doutrina estrangeira, o conceito de contribuição, forma fiscal acolhida por SELIGMAN e adotada pelos outros autores, coincide, na essência, com o nosso instituto fiscal da contribuição de melhoria (SELIGMAN, ob. cit., pág. 432; JÈZE, “Cours de Finances Publiques”, 1936, pág. 11).

A outra modalidade, entre nós existente, de contribuição stricto sensu, é a contribuição para os institutos de previdência social, referida nas Constituições, e cujo caráter mais se assemelha aos contributi speciali do direito administrativo italiano.

E’ bem de ver que esta é a única das duas formas de contribuição que, pela aparência externa, se presta a confronto com aquela do dec.-lei nº 9.777. Todavia, a comparação é de resultados negativos, pois a contribuição dos institutos de previdência social beneficia, ainda que de forma futura e eventual, uma categoria de contribuintes, o que não sé dá no caso do dec.-lei nº 9.777.

Assim, a forma fiscal que melhor se adapta ao ônus do art. 3° do decreto-lei que estudamos, é o impôsto. Percorrendo as definições formuladas pelos financistas das mais variadas tendências, veremos que aparece, como elemento essencial e decisivo à identificação do impôsto, o destino de sua receita para o custeio de serviços públicos (VINCENZO TANGORRA, “Trattato di Scienza delle Finanza”, Milão, 1915, pág. 665; F. MARCONCINI, “Corso Generale di Scienza delle Finanze”, parte 1ª, Turim, 1929, pág. 207; E. D’ALBERGO, “Scienza delle Finanze e Diritto Finanziario”, Milão, 1936, pág. 104; G. F. BASTABLE, “Public Finance”, Londres, 1932, pág. 263; AMARO CAVALCANTI, “Elementos de Finanças”, Rio, 1896, página 169; A. DE VITTI DE MARCO, “Principii di Economia Finanziaria”, Turim, 1939, pág. 84; JÈZE, “Cours de Finances Publiques”, Paris, 1932-1933, págs. 80, 81 e 85).

JÈZE, por exemplo, escreve: “Outro elemento essencial do impôsto moderno é sua destinação de utilidade pública: êle tem por objeto cobrir despesas de interêsse geral”.

“Há, entre o impôsto e as despesas, uma relação de tal modo estreita, que se pode dizer que a despesa de interêsse geral é o fundamento e a medida do impôsto moderno”.

Uma vez que o próprio dec.-lei nº 9.777 considerou a atividade da Fundação da Casa Popular como serviço público federal, a contribuição derramada por cidadãos não beneficiários de tal Fundação só pode ser considerada impôsto adicional sôbre transmissão imobiliária.

A contribuição para a Casa Popular apresenta, na verdade, os característicos de um impôsto de transmissão de propriedade imóvel, com destinação particular, isto é, para prover a um determinado serviço público. É o que a doutrina alemã denomina de “Zwecksteurn” (A. GIANNINI, “Il Rapporto Giuridico d’Imposta”, 1937, pág. 9).

Mas, por que não lhe deu o legislador o nome tècnicamente apropriado?

Estamos em face de uma imprecisão técnica do legislador, muito comum, aliás, nas leis fiscais. Não tem significado algum, para a sua caracterização jurídica, o nome que o legislador haja dado a cada um dêsses tributos (FRITZ FLEINER, “Derecho Administrativo”, § 27, pág. 337).

JÈZE, a êste mesmo respeito, escreve: “As legislações positivas tornaram muito difícil a distinção entre as taxas e os impostos, era razão da terminologia muito

defeituosa usada pelas leis fiscais. Na França, especialmente, o legislador emprega como sinônimas as seguintes palavras: impostos, taxas, direitos, contribuições, foros, cotizações, etc.” (“Cours Elémentaire de Science des Finances”, 1931, pág. 331; no mesmo sentido, GIANNINI, “Il Rapporto Giuridico d’Imposta”, Milão, 1937, págs. 20 e 21; LOUIS TROTABAS, ob. cit., pág. 161).

Que esta imprecisão terminológica do legislador seja, às vêzes, intencional, di-lo o Prof. RAFAEL BIELSA (“Nociones Preliminares de Derecho Fiscal”, Buenos Aires, 1944, pág. 53).

Assentado que se trata, no caso estudado, de imposto, vejamos se estava sua decretação dentro da competência tributária da União.

A lei fiscal, quer a emanada do Legislativo federal, quer a emanada dos Legislativos estaduais, ou dos Legislativos municipais, tem de atender, inicialmente, à discriminação de competência para tributar, fixada pela Constituição.

De acôrdo com a distribuição das competências tributárias estabelecidas nas Constituições federais de 1937 e 1946, cabe exclusivamente aos Estados-membros a decretação de impostos de transmissão de propriedade, inter vivos ou mortis causa (art. 23, I, letras b e c, da Constituição de 1937, e art. 19, II e III, daquela de 1946).

Assim, o impôsto adicional de 1%, estabelecido pelo dec.-lei nº 9.777, é manifestamente inconstitucional.

Parece ter sido intuito do legislador, ao criar um ônus por êle denominado “contribuição obrigatória” e não impôsto, fazer passar, “de contrabando”, uma imposição fiscal expressa e claramente vedada pela Constituição, ou, em outras palavras, praticar um ato em fraude à Constituição.

O desembargador (ADI CARDOSO DE GUSMÃO, ao referir-se a êsse dec.-lei nº 9.777, escreve com acêrto:

“É lastimável que, – isso acontece mais comumente nas leis fiscais – se adotem na redação das leis formas vagas, imprecisas, suscetíveis de interpretações diferentes. Tais processos fazem até pensar naquela malícia a que os autores italianos chamam vigliaccheria intelletuale, incompatível com a serenidade “própria dos atos públicos, os quais, por sua fonte e natureza, hão de ser vazados em têrmos de absoluta retidão e honestidade” (“REVISTA FORENSE”, vol. 120, pág. 305).

E o eminente Prof. BILAC PINTO nos mostra não serem raros, na elaboração dos decretos-leis, êsses artifícios, que ressaltam ao exame menos atento, e que constituem uma espécie de passaporte diplomático para que a lei cruzasse a fronteira da sua sanção, sem exame de sua bagagem (parecer sôbre o dec.-lei nº 8.946, que dispõe sôbre a organização do desporto hípico nacional, in “Estudos de Direito Público”, ed. “REVISTA FORENSE”, 1953, págs. 95 e segs.).

Na verdade, êstes artifícios a que recorrem os legisladores, têm sido a nota característica de nossos costumes políticos. O grande RUI BARBOSA, indefeso guardião do Direito, moveu implacável ataque aos políticos que sofismavam e fraudavam de todos os modos, a Constituição e as leis a pretexto de interpretá-las, aplicá-las ou executá-las (“A Questão Social e Política no Brasil”, na “Rev. do Brasil”, nº 40, abril de 1919, pág. 413; id., “Habeas corpus. O Estado de Sítio”, na “Rev. de Jurisprudência”, 1898, vol. 3, págs. 25, 44, 64, 110 id., “O Supremo Tribunal Federal na Constituição Brasileira”, na “Rev. do Supremo Tribunal”, agôsto-dezembro de 1914, 2ª parte, pág. 412; id., “Oração aos Moços”, ed. da Organização Simões, págs. 59-60).

O insuspeito PEDRO LESSA, já ministro de nosso Supremo Tribunal, também acentuava amargamente que os mais claros e terminantes artigos da Constituição não têm escapado aos ardis e violências dos políticos, que os interpretam sofìsticamente, e os fraudam na execução (“O Preconceito das Reformas Constitucionais”, na “Rev. do Brasil”, nº 16, abril de 1917, pág. 355).

Na República Argentina, o procedimento dos poderes políticos tem obedecido ao mesmo sistema. Vejamos êste exemplo que versa justamente sôbre inconstitucionalidade de tributos. A Suprema Côrte argentina declarou inconstitucional uma lei de Tucumán que gravava a importação de vinhos feita por essa Província. Ao declarar o Tribunal Supremo tal lei violatória da proibição constitucional de gravar o comércio interprovincial, a avidez fiscal da Província referida lançou mão de um expediente para coonestar tais encargos fiscais ante a Constituição. Para isso, voltaram à carga, criando impostos, não já à importação, mas ao consumo de vinho produzidos em outras Províncias, pretendendo que assim não se gravava o ato de importação, isto é, o de comércio interprovincial, mas o de consumo, que seria um ato de circulação econômica, conforme a conhecida doutrina da Côrte, e que seria legítimo, por recair sôbre matérias já incorporadas à riqueza das Províncias autoras dos tributos, e, portanto, matérias constitucionalmente tributáveis.

A Côrte Suprema, todavia, recorrendo ao espírito da Constituição, declarou que estas leis eram também inconstitucionais

(GUILLERMO C. CANO, na revista “Jurisprudência Argentina”, Buenos Aires, tomo 51, pág. 378).

Em conclusão: já que a contribuição obrigatória do dec.-lei nº 9.777 é impôsto de transmissão “camouflado” em contribuição inominada, e uma vez que a União não tem competência para decretar tal impôsto, segue-se-lhe a patente inconstitucionalidade.

Aliás, a Fazenda do Estado de São Paulo sustentou a sua inconstitucionalidade. E, em brilhante sentença, o Dr. GENTIL DO CARMO PINTO, da comarca de Monte Alto, no Estado de São Paulo, julgou, a 16 de abril de 1947, inconstitucional o impôsto criado pelo art. 3º do decreto-lei federal nº 9.777.

3. O DEC.-LEI Nº 9.777 É INCONSTITUCIONAL DE QUALQUER FORMA

Nos desenvolvimentos anteriores, foi dado como assentado que a contribuição obrigatória, instituída em favor da Fundação da Casa Popular, é um verdadeiro impôsto, daí se concluindo pela sua inconstitucionalidade.

Todavia, o desembargador SADI CARDOSO DE GUSMÃO é de opinião diferente, ao escrever: “Tudo leva à conclusão de que a única solução capaz de salvar (da inconstitucionalidade) o tributo (a contribuição obrigatória do dec.-lei número 9.777), é no sentido de reputá-lo contribuição, similar às dos institutos de previdência” (artigo na “REVISTA FORENSE”, vol. 120, pág. 309).

Em nosso modesto sentir, todavia, a atribuição de uma certa entrada fiscal a uma certa despesa, ou serviço (que não passa de um processo antiquado da construção dos serviços financeiros), mantém inalterada a natureza do impôsto, não o transformando em contribuição sui generis.

Todavia, apenas para argumentar, vamos admitir que a contribuição obrigatória em beneficio da Casa Popular seja, não um impôsto, mas uma forma tributária sui generis.

Deixará, por isso, de ser inconstitucional? É o que iremos verificar. Em primeiro lugar, uma vez que tal contribuição incide sôbre as transmissões imobiliárias dos Estados-membros, é certo que o patrimônio particular dos proprietários dos Estados-membros se desloca para constituir receita federal, e isso sem qualquer contraprestação direta da União aos contribuintes.

Se esta contribuição obrigatória produz, em relação aos contribuintes, os mesmos ônus fiscais, e, em relação às rendas do Estado, os mesmos maus efeitos, que um inconstitucional impôsto de transmissão, não irá ela vulnerar o princípio constitucional da discriminação de rendas? Vejamos o que nos revela o elemento teleológico-social da hermenêutica constitucional.

Na lição sempre atual de RUI BARBOSA, baseado no direita constitucional norte-americano, são perfeitamente admissíveis as limitações implícitas aos poderes, as quais derivam da hermenêutica teleológica e sistemática dos dispositivos constitucionais. E essas limitações implícitas são legítimas em face do art. 31, nº II, da Constituição de 1937 e do art. 18, § 1°, daquela de 1946.

Em questão célebre, seguindo na esteira dos TUCKER, dos COOLEY, dos STORY, escrevia RUI BARBOSA:

“Se, pois, a Constituição debuxa sòmente a estrutura do organismo político, the frame of a government, se apenas delineia as instituições nos seus traços predominantes, bem se vê que à interpretação, exercida pelo govêrno e pela legislatura nos casos políticos, desempenhada, nos casos judiciários, pelos tribunais, incumbe subentender as noções complementares, lançar, por construção lógica, entre as grandes linhas o tecido conjuntivo, extrair das generalidades as especialidades, decompor cada síntese nos seus elementos, buscar no todo o significado indeciso das partes, elucidar, por comparação, as obscuridades ou insuficiências, e, mediante os recursos da analogia, suprir as lacunas inadmissíveis”.

E adiante: “Em cada Constituição, à luz do critério impôsto aos seus hermeneutas e executoras, lado a lado com as determinações textuais, se hão de ter por existentes, como disposições inexpressas, tôdas as regras, tôdas as exigências, todos os corolários essenciais à realidade ativa de quaisquer instituições ou direitos, de quaisquer autoridades ou prerrogativas, de quaisquer jurisdições ou magistraturas, consagradas nessa Constituição, e que, se ela articula normas positivas, tão imperativas quanto essas fórmulas declaradas, são as que, implícitas nestas, subsidiária ou colateralmente delas decorrerem” (“Questão Minas-Werneck, Competência do Supremo Tribunal”, pág. 32).

Vejamos a aplicação dêsses critérios hermenêuticos ao nosso caso.

O princípio da discriminação de rendas, construído em tôrno dos artigos da Constituição federal que estabelecem as competências tributárias, permitirá fàcilmente concluir que não pode a União, por meio da criação de qualquer ônus fiscal, apropriar-se das rendas dos Estados-membros, destinando-as a serviços públicos federais. Se a finalidade das competências tributárias privativas, estabelecidas na Constituição, é permitir aos Estados a formação de receitas para acudir aos respectivos serviços públicos, segue-se que, se qualquer ônus decretado pela União, embora não seja denominado impôsto, resultar naquela conseqüência prática de prejudicar as rendas estaduais, será inconstitucional.

De nada serviria atribuir a cada entidade política fontes próprias de receita, delimitando-lhes a esfera em que devessem movimentar-se, se a qualquer das entidades permitido lhe fôsse fazer incidir os seus tributos sôbre bens e atividades privadas de outras entidades, já submetidas à tributação. Seria tornar ilusória a própria efetividade da discriminação de rendas.

Desde que a cobrança das contribuições fiscais pela União (sejam tècnicamente impostos ou não) possa prejudicar a economia das unidades da Federação – razão pela qual foi criada a limitação tributária recíproca do texto constitucional – a decretação de tais contribuições passa a ser inconstitucional.

Se a letra da Constituição não veda aparentemente essa grave anomalia financeira, consistente em atribuir permanentemente uma contribuição fiscal unilateral de um Estado-membro à satisfação de serviço público federal, não é menos certo que o entendimento teleológico dos textos constitucionais, ligado ao princípio constitucional da discriminação de rendas, a condena sem dúvida alguma.

Assim, as contribuições do dec.-lei federal nº 9.777 são verdadeiros ônus e assim inconstitucionais. Seu contraste com as taxas, que correspondem a serviços específicos prestados, é manifesto.

E, sendo o art. 3º do referido decreto-lei inconstitucional, nulo, a sua revogação pela lei federal nº 1.473, de 24 de novembro de 1951, não tem significado jurídico. Seria o mesmo que pretender-se matar um cadáver.

4. O DEC.-LEI ESTADUAL Nº 17.235

A consulta ao elemento histórico, que constitui uma das técnicas a serviço da interpretação jurídica, ser-nos-á da utilidade para a fixação do sentido e alcance do dec.-lei estadual nº 17.235, cuja constitucionalidade é também questionada. Vejamos, pois, os antecedentes legislativos dêsse decreto-lei.

Foi êle de pouco precedido pelo decreto-lei federal nº 9.777, de 6 de setembro de 1946, que acabamos de analisar.

Tão manifesta era a inconstitucionalidade dêsse tributo adicional de 1%, criado pela União em detrimento da economia dos Estados, – inconstitucionalidade essa declarada até por Tribunais estaduais de Justiça, – que, a instâncias do govêrno federal, vários Estados-membros, inclusive o de São Paulo, editaram decretos-leis que criaram um adicional de 1% sôbre as transmissões de imóveis. Fizeram-no nos mesmos têrmos, calcados no decreto-lei federal, destinando tal adicional, no mesmo ato legislativo, aos serviços públicos federais da Fundação da Casa Popular. Assim, o Estado de São Paulo baixou o diploma legislativo nº 17.235, de 21 de maio de 1947.

Surge, assim, a indagação que é objeto de um dos itens de início formulados: será constitucional a destinação a serviço federal, dada ao adicional de 1%, no decreto-lei estadual?

Note-se, logo de início, que o próprio govêrno estadual rotulou de “impôsto” a contribuição obrigatória cuja natureza jurídica foi anteriormente discutida e como tal considerada.

Por outro lado, é certo que nenhum texto constitucional, quer na Carta de 1937, quer no diploma de 1946, proíbe expressamente que um Estado-membro destine, a serviço público federal, o produto de rendas provenientes de impostos que lhe compete decretar.

Se proibição houver, terá de estar implìcitamente contida em cláusulas expressas da Constituição, terá de provir de princípios decorrentes do regime federativo, como o principio da discriminação de rendas, atrás invocado.

Estamos, assim, novamente em face das limitações constitucionais implícitas, que foram atrás invocadas como causa da inconstitucionalidade do dec.-lei federal nº 9.777, na hipótese de não se tratar de impôsto e sim de contribuição inominada.

Tais limitações são legítimas em nosso Direito, ex vi do art. 18, § 1°, da Constituição de 1946, e foram entre nós introduzidas ao influxo da jurisprudência constitucional americana.

As limitações constitucionais implícitas ao poder de tributar são matéria de valor prático considerável no direito norte-americano (v. WALLACE S. SAYRE, “An Outline of American Government”, 7ª ed., 1940, págs. 102-103; WILLIAM B. MUNRO, “The Government of the United States”, 1928, revised edition, capítulos 16 e 28; BEARD, “American Government and Politics”; MARTIN and GEORGE, “American Government and Citizenship”; MAXEY, “American Problem of Government”;OGG and RAY, “Introduction to American Government”; THOMAZ COOLEY, “A Treatise on the Constitutional Limitations”, 6ª ed., 1890).

STORY é muito elucidativo, ao ensinar que a amplitude da interpretação no direito constitucional é tal que o próprio preceito de que os dispositivos que constituem exceções às regras gerais se interpretam estritamente, não pode ser aplicado à risca: o fim para que foi inserto o artigo na lei, sobreleva a tudo. Não se admite interpretação estrita que entrave a realização plena do escopo visado pelo texto (STORY, “Commentaries on the Constitution of the United States”, 5ª edição, vol. 1, § 419).

Êstes princípios expendidos por STORY constituem uma espécie de passaporte jurídico às limitações constitucionais implícitas.

TUCKER e os outros constitucionalistas norte-americanos adotam considerações sistemáticas e teleológicas na interpretação dos textos constitucionais (TUCKER, “The Constitution of the United States”, 1899, vol. 1, § 179; JOSEPH STORY, ob. cit., vol. 1, § 419; COOLEY, Constitutional Limitations”, 1903, página 103).

Da mesma forma, VON HOLST sustenta que o fim geral, a que o texto se destina servir, é o melhor critério para se estabelecer o pensamento dos organizadores da Constituição.

Entre nós, ALBERTO TÔRRES já considerava essencial a interpretação teleológico-social dos textos. A Constituição é uma lei política, de fins práticos, fundada em objetos sociais concretos, e destinada, principalmente, a manter ligados, harmônica, e orgânicamente, os interêsses gerais e permanentes do país. A base de sua interpretação é o fim prático e social que seu conjunto e seus princípios se destinam a realizar. Nem o sentido literal do texto, nem a fonte, origem, escola ou tradição doutrinária, a que estiver ligado, servirá de argumento a qualquer interpretação contrária a seu destino prático e seu fim social (“A Organização Nacional”, páginas 418-419).

CARLOS MAXIMILIANO, conhecida autoridade na matéria, nos assevera que, na inteligência do direito constitucional, entram os elementos teleológico e sociológico (“Hermenêutica e Aplicação do Direito”, 2ª ed., nº 363).

E, com o advento, entre nós, do art. 5º da Lei de introdução ao Cód. Civil, aplicável a tôda esfera jurídica, o método teleológico foi preconizado ao aplicador da lei: “Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”.

Vejamos a aplicação dêstes princípios hermenêuticos ao nosso caso.

A Constituição federal, ao distribuir as competências tributárias privativas entre a União e os Estados-membros, veio regular o mais importante aspecto do princípio federal da discriminação de rendas. É o aspecto mais importante, porque a maior parte das rendas dos Estados provém da tributação feita dentro das respectivas competências.

Um brilhante constitucionalista patrício, o Prof. PINTO FERREIRA, do Recife, em seu magistral livro “Princípios Gerais de Direito Constitucional Moderno”, entende ser essa distribuição de competências tributárias o ponto central do federalismo. Escreve êle:

“A estrutura do sistema federativo ” pressupõe a necessidade de uma distribuição de competência no âmbito financeiro, a fim de permitir à União e aos Estados particulares a plena realização de seus objetivos, num clima de segurança, equilíbrio e harmonia” (ob. cit., 2ª ed., tomo II, 1951, págs. 765-766).

“No regime federativo, a necessidade é evidente de se proceder à regulação das relações financeiras entre a União e os Estados-membros, mediante um sistema de distribuição de competências, que se chama de compensação de finanças (Finanzausgleich)” (ob. cit., vol. cit., página 767).

No sistema federativo, exige-se que os governos da União e dos Estados sejam independentes uns dos outros, dentro de sua própria esfera, e não se encontrem subordinados entre si (shall not be subordinate one to another) (K. C. WHEARE, “Federal Government”, 1946, pág. 97).

E, na esfera das finanças públicas, êste princípio constitucional dá origem à plena autonomia financeira dentro da esfera que é própria respectivamente à União e aos Estados-membros, uma vez respeitados os limites traçados pela Constituição.

A autonomia financeira dos Estados é assim um aspecto, dos mais importantes, da sua autonomia política. Escreve MÁRIO PUGLIESE:

“Nos Estados Federais os governos dos vários Estados-membros possuem soberania financeira direta, que exercem com plena independência do poder central, com as limitações expressas que se traduzem em “norma objetiva” de caráter constitucional que o govêrno está obrigado a observar” (“Derecho Financero”, 1939, págs. 50-51).

Pondo de parte, por irrelevante no caso, a aproximação entre soberania e autonomia, que parece resultar dos conceitos de PUGLIESE, prossigamos.

Em virtude dêsses princípios constitucionais diretamente ligados ao sistema federal, a discriminação de rendas, que traça a Constituição, deve ser integralmente respeitada, uma vez que se trata de matéria essencial à existência do regime federativo.

As rendas que os Estados-membros auferem, em virtude de impostos e de outras fontes de significado mais modesto, têm por finalidade social o custeio dos seus próprios serviços.

Assim, a destinação dada ao adicional pela lei estadual, se ressente de inconstitucionalidade, uma vez que aos Estados-membros não é permitido alienar suas fontes de receita em contraste com o que lhes foi outorgado pela Constituição federal, para tal fim.

CARLOS ALBERTO DE CARVALHO PINTO escreve, de forma precisa, que “a outorga de receitas distintas a cada uma das unidades é um imperativo do regime federativo”, cuja subsistência ficaria comprometida e subvertida se fôsse adotado um sistema financeiro diferente” (“Discriminação de Rendas”, 1943, página 42).

Durante a vigência da Constituição de 1937 – que em matéria de discriminação de rendas é idêntica em princípio à de 1946 – foi discutido se os Municípios poderiam criar impôsto adicional para cobrar juntamente com o de indústrias e profissões, que era então atribuído privativamente aos Estados; e o Supremo Tribunal Federal, em acórdão de 13 de setembro de 1943, julgou inconstitucional êsse impôsto adicional, baseando-se, para tal, nos princípios por nós acima expostos (“Rev. de Direito Administrativo”, vol. I, págs. 63-72).

Em novo acórdão, de 16 de julho de 1945, relatado pelo Sr. ministro LAUDO DE CAMARGO, o mais alto Tribunal do país decidiu de acôrdo com os mesmos princípios. Os impostos e taxas que a Constituição reserva privativamente às várias unidades federativas, não podem ser transferidas a qualquer outra entidade da Federação, uma vez que os tributos são concedidos com competência exclusiva. Se os Estados – comenta GONÇALVES DE OLIVEIRA – pudessem transferir os impostos de sua competência privativa, “poderiam ficar, pela pressão das circunstâncias, por injunções políticas, sem os atributos que a Constituição lhes reservara e, destarte, estaria anulado o escopo constitucional de garantir a receita própria a cada um dos entes da Federação” (“Competência Tributária dos Municípios”, na “Rev. de Direito Administrativo”, vol. III, páginas 126-131).

Assim, se a finalidade da competência tributária exclusiva foi a obtenção de recursos financeiros para o custeio dos serviços públicos das entidades autônomas, é sem dúvida uma violação do princípio de discriminação de rendas, atribuir-se, de forma permanente, uma parcela que seja, da renda de um dos Estados-membros, à satisfação de serviços públicos da União.

O poder de tributar é concedido aos Estados para satisfação de seus serviços próprios, serviços êsses que constituem a medida dêsse poder de tributar, e não para custear serviços de outras entidades públicas federais.

O eminente financista argentino, professor RUIZ GUIRAZU, catedrático da Universidade de Buenos Aires, chega a opinar que os próprios convênios ou acôrdos entre a União e as Províncias, quando tenham por efeito modificar os lineamentos constitucionais sôbre distribuição e destinação de rendas, são inconstitucionais. Tais acôrdos, diz êle, implicariam uma renúncia das Províncias autônomas ou Estados-membros, a exercerem suas faculdades, e tal renúncia seria insanàvelmente nula, pois, por seu lado, implicaria alienar, reduzir seu direito impositivo, de modo que o acôrdo ou convênio poderia redundar em uma modificação à própria Constituição. Tais acôrdos ou convênios implicariam um cerceamento da autonomia, com fendilhamento do regime federal, conclui êle em elegante metáfora (“La Superposición de Impuestos en la República Argentina”, conferência de 31 de outubro de 1927, publicada nos “Discursos Acadêmicos”, tomo III, 1922-1935, publicação oficial da Universidade de Buenos Aires, 1936, páginas 885-886).

Convém esclarecer que as Províncias autônomas da Federação argentina correspondem aos Estados-membros de nosso regime federal.

A lição de GUIÑAZU tem especial aplicação no estabelecimento da inconstitucionalidade do art. 3º do dec.-lei estadual nº 17.235. Com efeito, tal artigo visou autorizar o govêrno do Estado a firmar acôrdos e estabelecer as bases de colaboração com a Fundação, da Casa Popular.

O constitucionalista americano THOMAZ COOLEY nos refere o princípio constitucional de que um poder conferido pelo povo a um ramo ou departamento do govêrno não pode ser delegado a qualquer outro. E acrescenta: é êste um princípio que penetra todo o nosso sistema político, e que bem entendido não admite exceção alguma, sendo aplicável “com fôrça especial ao caso da tributação” (“A Treatise on the Law of Taxation”, 3ª ed., volume 1, págs. 99-100).

Se o Estado cria um impôsto e o atribui, de modo permanente, à satisfação de despesas federais, é, na prática, o mesmo que delegar poderes impositivos à União, pois que a essência do impôsto reside na sua função econômica.

Em conclusão: o confronto do texto do art. 2º da lei estadual nº 17.235 com os princípios da Carta Magna mostra que é êle manifestamente inconstitucional, uma vez que ao Estado-membro não é dado alienar as próprias rendas, o que importaria, pràticamente, em alienar os impostos privativos geradores de tais rendas.

Trata-se de limitação implícita, derivada de princípios constitucionais diretamente ligados à distribuição das várias competÊncias tributárias. E o princípio da discriminação de rendas é, como foi demonstrado, da categoria daqueles essenciais ao regime federal.

Uma brilhante sentença do juiz JOSÉ FREDERICO MARQUES, proferida a 20 de dezembro de 1951, na ação movida pela Fundação da Casa Popular contra a Fazenda do Estado, declarou inconstitucional a destinação conferida às verbas arrecadadas, pelo referido decreto-lei, negando à Casa Popular direito àquela receita fiscal. Mas tal sentença nada decidiu sôbre inconstitucionalidade do art. 1º do referido decreto-lei, de modo que a Fazenda continua a manter em seu poder o adicional arrecadado (sentença publicada no “Estado de São Paulo” de 3 de janeiro, página 8; 5 de janeiro, pág. 8, e 6 de janeiro, pág. 14, de 1952).

Não é, pois, de estranhar que surgisse, a 26 de dezembro de 1951, a lei estadual nº 1.470, na qual o próprio Legislativo reconheceu, ainda que sorrateira e implicitamente, a inconstitucionalidade, já argüida pela Fazenda do Estado, da destinação do impôsto adicional fixada no anterior decreto-lei. Com efeito, tal lei pretendeu revogar os arts. 2º e 3º do dec.-lei número 17.235, tornando sem efeito a destinação que era o pomo de discórdia.

Nossa análise vai agora limitar-se ao art. 1º do dec.-lei nº 17.235, que regulou a matéria até o surgir da lei federal nº 1.473, de 24 de novembro de 1951, e da lei estadual nº 1.470.

5. INCONSTITUCIONALIDADE DA DECRETAÇÃO DO ADICIONAL PELO DEC.-LEI ESTADUAL Nº 17.235

À primeira vista, não parece inconstitucional o art. 1º do dec.-lei estadual nº 17.235, uma vez que está dentro da competência dos Estados-membros a criação de impostos de transmissão causa mortis e inter vivos. Assim, o adicional, dentro dêsse entendimento mecânico da lei, seria válido, uma vez que fôsse encaminhado aos cofres da Fazenda do Estado.

Mas, essa hermenêutica é inadmissível. Já foi derruído o postulado da interpretação literal ou mecânica das leis fiscais, as quais exigem a hermenêutica teleológica, consagrada pelo art. 5° da Lei de Introdução ao Cód. Civil, que manda o juiz atender ao fim social a que a lei se dirige.

“Em matéria fiscal”, doutrina o ministro CARLOS MAXIMILIANO, “o intérprete não atende sòmente à letra, nem se deixa dominar pela preocupação de restringir; resolve de modo que o sentido prevaleça e o fim óbvio, o transparente objetivo seja atingido. O escopo, a razão da lei, a causa, os valores jurídico-sociais influem mais do que a linguagem, infiel transmissora de idéias” (“Hermenêutica e Aplicação do Direito”, 2ª ed., nº 401).

Nosso Supremo Tribunal Federal, em bem fundadas decisões, vem consolidando a jurisprudência de que as leis fiscais não se devem interpretar literalmente. O ministro OROZIMBO NONATO, em voto vencedor, depois de censurar os critérios unilaterais em favor do erário, prossegue:

“Sem ir à adoção daqueles critérios prettamente erariali da inculca de MARTINELLI e à aceitação pura e simples da norma do Estatuto Financeiro do Reich (vide o interessante trabalho de ALÍPIO SILVEIRA, “Interpretación frente a los Regimenes”, pág. 31), de acôrdo com a qual o que se deve, no caso, é considerar o fim e a significação econômica do preceito fiscal e suas relações com o desenvolvimento do comércio social, o que parece razoável é aplicar, em sua interpretação, as normas comuns da hermenêutica” (voto, no acórdão de 4 de maio de 1943, em “Direito”, vol. XXII, págs. 281 e segs.).

Ora, o método lógico sistemático de interpretação exige que o hermeneuta tenha em consideração, não apenas um artigo ou fração de artigo, mas o conjunto de artigos que compõem a lei, assim como as outras leis vigentes que digam direta ou indiretamente respeito à matéria. Um preceito jurídico não existe isoladamente, mas está ligado por nexo mais ou menos íntimo a outros preceitos.2

Em outro brilhante voto vencedor, o mesmo magistrado critica a exegese farisaica ou literal em matéria fiscal, que deixa ao olvido a finalidade mesma da lei (apelação cível nº 7.565, no “Diário da Justiça”, da União, apenso ao nº 98, de 29 de abril de 1944, pág. 1.798, 2ª coluna).

Estabelece a Lei de introdução ao Código Civil (dec.-lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942), em seu art. 5°, aplicável a tôda esfera jurídica, incluindo-se a constitucional e a fiscal:

“Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”.

Esta norma hermenêutica, que veio consagrar essa interpretação teleológico-social já preconizada por nossa melhor doutrina, justifica-se sem dificuldade: concebida a lei num fim social, o intérprete deve servir-se dêsse mesmo fim social para que foi a lei criada, a fim de aferir-lhe o sentido e o alcance.3

As leis têm por escopo a satisfação de fins sociais ou interêsses sociais, os quais, numa determinada lei, se dispõem em escala, a começar pelos fins diretos ou imediatos, passando pelos intermediários, e chegando aos fins últimos da ordem jurídica.

O Prof. JEAN DEFROIDMOND, ao tratar dos fins da ordem jurídica, distingue o fim último da lei (que êle reputa ser a felicidade), os fins intermediários (o útil interêsse social, o equilíbrio dos interêsses), e o fim imediato, que é aquêle visado por determinada lei. E, ao investigar o ilustre autor se o fim último serve à Interpretação da lei, chega a conclusão negativa, ao sustentar, com acêrto, que redundaria seu emprêgo na hermenêutica em afastar os textos e permitir, sob color de evolução, desprezar as leis mais certas (“La Science du Droit Positif”, 1933, página 213).

Êle também repele o recurso aos fins intermédios, ao sustentar que flexibilizar a lei, ao recorrer a êstes mesmos fins, é usá-la quando se quer e dispensá-la (obra cit., pág. 222). Em outras palavras, o aplicador poderia desprezar a lei.

Vai sem dizer que o fim último acima referido corresponde justamente às exigências gerais do bem comum, as quais não poderão ir contra a lei.

De forma que, excluídos os fins últimos e os fins intermédios, fica ao intérprete o recurso aos fins diretos ou imediatos, que são aquêles visados por determinada lei.

O ministro EDUARDO ESPÍNOLA e o desembargador ESPÍNOLA FILHO, em seu magnífico “Tratado de Direito Civil Brasileiro” (vol. IV), atribuem também um sentido específico às exigências do bem comum na aplicação da lei:

“Mas, se o fim da lei é, realmente, o guia mais seguro para penetrar-lhe o conteúdo real, para desvendar-lhe o sentido exato, se na frase incisiva de REGELSBERGER, a intenção de sua realização é que chama a norma jurídica à vida, logo se percebe que êsse ideal de justiça e êsse ideal de utilidade, isto é, essa representação do bem comum, estando num plano geral mais afastado, como meta última, suprema, que a ordem jurídica precisa atingir, urge tomar contato com os fins mais próximos e mais particulares, com cuja contemplação mais direta e mais imediata, e com cujas realizações, em cada caso, se torna possível assegurar constantemente, indefinidamente, aquêle grande escopo geral” (nossos os grifos).

Se fôsse permitido, ao juiz ou intérprete, jogar ilimitadamente com a noção ampla, geral, de bem comum, submetendo a própria lei ao seu julgamento, fundado numa concepção pessoal do bem comum, as leis mais certas poderiam ser por êle afastadas. Em nome de sua concepção pessoal do bem comum, o juiz divorcista, entre nós, concederia a separação a vínculo; outro magistrado poderia conceder efeitos totais ao concubinato more uxorio, equiparando-o ao matrimônio. Ainda outro juiz poderia livrar o contribuinte de certo imposto, por julgá-lo iníquo ou gravoso em excesso.

Em nosso caso, o art. 1º do dec.-lei nº 17.235 não é independente do inconstitucional art. 2º, visceralmente ligado a êle. O elemento histórico, na elaboração e na interpretação dêsse decreto, por nós atrás examinado, já fornece elementos para estabelecer essa dependência, pois o imposto adicional estadual foi decretada única e exclusivamente para o custeio de certo serviço público federal, e a isso se recorreu porque não podia a União criar tal impôsto.

Ao elemento histórico vem juntar-se a interpretação teleológica do art. 1º. Por essa interpretação, vemos que o impôsto criado pelo art. 1º está inseparavelmente ligado, pela sua finalidade específica, ao art. 2° da mesma lei.

Com efeito, a finalidade social específica do tributo decretado pelo art. 1º é servir; nos têrmos do art. 2º, para o custeio de certo e determinado serviço público federal, constituído pelas atividades da Fundação da Casa Popular.

Assim, os vários elementos da interpretação jurídica – o histórico, o elemento da vontade do legislador, e o teleológico, da finalidade social da lei – confluem, de forma harmoniosa, para demonstrar que os dois artigos foram concebidos numa única matriz ideológica, foram forjados num molde legal inteiriço e estão inseparàvelmente conexos.

É o art. 1º inseparável, em sua execução, do art. 2° da referida lei, o qual é manifestamente inconstitucional.

O impôsto adicional foi decretado para uma destinação especial, isto é, para satisfazer uma certa despesa pública, e não para a função geral de satisfazer às despesas globais prefixadas no orçamento.

Se a destinação especial, já de si excepcional ou anômala (cf. DÍDIMO DA VEIGA, “Ciência das Finanças”, páginas 122-123), foi considerada inconstitucional, desaparece a razão de ser do impôsto, uma vez que foi êle decretado exclusiva e unicamente para aquêle fim.

Se a decretação do adicional está essencialmente ligada a essa destinação particular, a conseqüência será que, se tal destinação é inconstitucional, o impôsto a ela vinculado será igualmente inconstitucional.

Se atendermos ao fim social imediato do impôsto adicional, teremos de reconhecer a sua inconstitucionalidade, pois que êsse fim social imediato atenta contra um manifesto princípio constitucional. Sòmente se considerarmos o fim social genérico (que é o mesmo para os impostos em geral) é que poderíamos admitir a constitucionalidade da impôsto adicional. Mas, como há pouco demonstramos, baseados em DEFROIDMOND, a consideração, dos fins gerais das leis nos projeta no direito livre contra legem.

6. A JURISPRUDÊNCIA NORTE-AMERICANA CORROBORA A CONCLUSÃO

É jurisprudência pacífica dos tribunais norte-americanos que a inconstitucionalidade de que está eivada uma parte da lei, arrastará a inconstitucionalidade da parte restante, quando ambas estiverem inseparàvelmente ligadas pelo seu escopo e destinação comum.

Vejamos alguns clássicos norte-americanos.

THOMAZ COOLEY escreve:

“A regra geral é, portanto, que o fato de ser inconstitucional parte de uma lei, não justifica a declaração de inconstitucionalidade da parte restante, a menos que todos os dispositivos legais estejam ligados pela matéria (“subject matter”), dependendo uns dos outros, operando conjuntamente para o mesmo fim, ou estejam de outro modo ligados entre si pelo significado, de modo que não se possa presumir que o Legislativo não teria editado o ato senão como um todo”.

Prossegue COOLEY, precisando o que escrevera linhas acima:

“Se o propósito da lei é realizar um único escopo, e alguns dispositivos são nulos, a todo deve caducar, a menos que alguma das disposições restantes possa, a despeito da parte sem valor, efetuar o objetivo da lei. E se estão os dispositivos mùtuamente ligados e dependentes uns dos outros, como condições, causas4 ou compensações, de modo a firmar a opinião da que o Legislativo os planejou como um todo e que, se tudo não pudesse ser executado, não teria êle aprovado as disposições restantes independentemente das outras, então, se algumas partes são inconstitucionais, todos os dispositivos que são delas dependentes, condicionados ou conexos, devem cair com as primeiras” (“The General Principles of Constitutional Law”, 3ª ed., 1898, páginas 170-171).

Êstes conceitos aplicam-se, como uma luva, ao caso dos arts. 1º e 2º do decreto estadual nº 17.235.

Não varia COOLEY, em outro livro clássico, ao ensinar, quanto à declaração conjunta da inconstitucionalidade:

“A questão não é se os dispositivos estão contidos na mesma seção da lei; pois a distribuição em seções é puramente artificial; mas se êles são essencial e inseparàvelmente conexos em substância” (“Constitutional Limitations”, 6ª ed., 1890, págs. 210-211).

W. W. WILLOUGHBY não discrepa, ao ensinar que, em caso de dúvida, é mais conveniente considerar ineficaz a lei inteira:

“Ainda quando separáveis os dispositivos, o tribunal não considerará válido o restante da lei, se persistir a dúvida de que, no caso de a realização de tôda a vontade da lei se tornar assim impossível, o Legislativo teria desejado a execução de uma parte apenas” (“Principles of Const. Law”, 1919, pág. 30).

E, em nosso caso do adicional, nem ao menos há essa dúvida a que alude o grande constitucionalista.

O grande jurisconsulto J. G. SUTHERLAND é igualmente expressivo, quando escreve em seu clássico livro: “Sendo inconstitucional o fim ou objeto principal, a lei tôda será nula” (“Statutes and Statutory Construction”, 2ª ed., vol. I, página 592).

Afinal, HENRY CAMPBELL BLACK corrobora êstes princípios:

“Mas quando as partes da lei são mùtuamente dependentes e ligadas, como condições, causas, motivos ou compensações, umas para com as outras, de modo a justificar a opinião de que o legislador os planejou como um todo, e que, se a lei tôda não pudesse ser executada, o Legislativo não teria editado a parte restante isoladamente, então, se algumas partes são inconstitucionais, todos os dispositivos delas dependentes, condicionados ou conexos, devem cair com elas” (“Handbook of American Constitutional Law”, 1895, pág. 62).

Os constitucionalistas acima referidos apóiam seus princípios em numerosos casos decididos pelos tribunais e referidos em notas. Seria alongar demasiado êste trabalho com tais transcrições, mas um recente caso merece referência especial:

A Côrte de Wisconsin, ao apreciar a constitucionalidade de uma lei que anexou certo território à cidade de Racine, mas estabeleceu que o impôsto sôbre essas terras seria diferente e menor do que o fixado para as outras partes da cidade, entendeu que, sendo esta última disposição inconstitucional, tôda a lei deveria ser fulminada pela ineficácia, uma vez que a redução prevista constituía compensação pelo território anexado. Seria mesmo de presumir que a anexação não teria lugar, sem a vantagem garantida (apud C. A. LÚCIO BITTENCOURT, “O Contrôle Jurisdicional da Constitucionalidade das Leis”, páginas 124-127).

Não há razão para deixar de se aplicar esta acertada regra ao nosso sistema constitucional, o qual é igualmente caracterizado pelo contrôle jurisdicional da constitucionalidade das leis.

E a inconstitucionalidade do art. 1º se impõe, devido à sua conexão essencial com o art. 2º do dec.-lei nº 17.235. A competência tributária estadual tem uma medida e um limite nos princípios constitucionais. Não é lícito ao Estado-membro decretar impostos de sua competência exclusiva para o fito exclusivo de aplicá-los a serviços públicos federais.

A inconstitucionalidade é um vício de nascença da lei, e o juiz apenas o declara. Assim, sendo o dec.-lei estadual número 17.235 inconstitucional, o adicional é uma obrigação fiscal sem causa. Se falta a causa que a justifique, a obrigação tributária não pode nascer, e, se nasce, está viciada (MARIO PUGLIESE, “Derecho Financero”, 1939, págs. 113-114).

Como ensina BIELSA, o impôsto se estabelece na lei e tôda lei está subordinada à Constituição. Um impôsto contrário à Constituição é uma obrigação tributária sem causa, porque falta a substância constitucional da obrigação (“Estudios de Derecho Público”, t. II, págs. 196-206).

Ao cobrar uma obrigação tributária desprovida de causa, porque manifestamente inconstitucional, a Fazenda do Estado arrecada um débito absolutamente inexistente, visto que a causa constitui um elemento essencial da obrigação tributária, da mesma forma que o é da obrigação civil no direito privado (SEGUNDO V. LINARES QUINTANA, “El Poder Impositivo y la Libertad Individual”, 1951, página 70).

Nossos pretórios já têm proferido algumas decisões sôbre a matéria. No inventário de D. Florentina Dunesa (cartório do 1º Ofício), o ilustrado magistrado Dr. ALCEU CORDEIRO FERNANDES determinou, a pedido da parte, que se retifica-se a liquidação, a fim de ser excluído do cálculo o adicional de 1%. A sentença homologatória do cálculo passou em julgado, sem que o subprocurador fiscal interpusesse recurso. Tal decisão foi proferida antes da lei estadual nº 1.470, de 28 de dezembro de 1951.

Depois de acentuar que a própria Fazenda do Estado considera inconstitucional a destinação estabelecida pelo art. 2° do dec.-lei n° 1,7.235, acrescenta aquêle juiz. “Não é possível destacar, na hipótese, o art. 1° do art. 2° do citado dec.-lei estadual nº 17.235, para o efeito de ser considerado inconstitucional sòmente o art. 2°. Os dois dispositivos estão ìntimamente entrelaçados. Se não fôra a destinação, beneficiando serviço federal, é óbvio que não seria criada a majoração. Isso resulta, meridianamente, dos dispositivos legais”.

Posteriormente; a 21 de fevereiro de 1953, o Dr. MÁRIO HOPNER DUTRA, em exercício na 5ª Vara da Família, decidiu, semelhantemente, que não é devido o adicional de 1%, tendo a Fazenda do Estado a conformado com o despacho, tendo passado em julgado a sentença homologatória do cálculo (o despacho foi publicado no “Diário Oficial” de 31 de março de 1953).

Assim, sendo inconstitucional o impôsto referido no dec.-lei nº 17.235, desaparece a questão jurídica de sua revogação aparente pela lei estadual nº 1.470. O que é nulo prescinde de revogação.

7. O DESTINO DA RECEITA JÁ ARRECADADA

Quer em face dos princípios da ciência das finanças, quer em face das exigências da moralidade administrativa, também não se justifica a apropriação, pela Fazenda do Estado, da receita proveniente dêste impôsto inconstitucional.

É postulado fundamental das finanças públicas que a despesa é a razão de ser da receita. GASTON JÈZE escreve: “Há entre o impôsto e as despesas uma relação de tal modo estreita, que se pode dizer que a despesa de interésse geral é o fundamento e a medida do impôsto moderno” (“Cours de Finances Publiques”, Paris, 1932-1933, pág. 81).

A razão de ser da destinação especial é uma despesa especial. Se a destinação é julgada inconstitucional, desaparece a causa jurídica do impôsto, que deve ser restituído ao contribuinte. Os impostos só deverão ser estabelecidos na medida em que forem necessários para satisfazer as necessidades públicas, devidamente atualizadas pelas despesas orçamentárias.

Não colhe o argumento de que a arrecadação do impôsto adicional poderia constituir fundos antecipados para orçamentos futuros, pois é princípio constitucional a anualidade dos orçamentos, isto é, a votação anual da despesa e da receita.

É também absurdo admitir que a receita proveniente de impostos, cuja destinação a serviços federais é manifestamente inconstitucional, vá servir à despesa geral prevista no orçamento, tanto mais que a inconstitucionalidade está na destinação, o que torna ilegítima a despesa especial custeada pelo referido impôsto.

Não pode, a seu talante, dispor o Estado das verbas orçamentárias arrecadadas para um fim especial, se tal fim se revelar inexeqüível, material ou jurìdicamente.

De outra forma, teríamos nada menos do que a legalização das obrigações fiscais sem causa, introduzidas em vista de supostas necessidade públicas, em orçamentos em parte falazes, em que, com esquecimento dos princípios constitucionais, se coonesta o confisco da propriedade privada.

Hoje, especialmente tendo-se em vista que o movimento de moralização do Direito é promovido pelo próprio Estado-legislador, é por todos os títulos inadmissível, que o fisco, com sua tradicional avidez, se apodere do produto da cobrança de impostos instituídos para cobrir despesas ligadas a serviços públicos e julgadas inconstitucionais.

Se assim procedesse êle, vulneraria os princípios de moralidade administrativa, que tem de respeitar. A moralidade administrativa se apresenta com outra feição e maior rigor do que no campo do direito privado, hoje já invadido pela corrente moralizadora.

H. WELTER, em sua interessante monografia sôbre “Le contrôle jurisdictionnel de la moralité administrative” (1929, págs. 13-14), observa que os motivos determinantes da atividade privada, nem sempre bem definidos, são, em geral, indiferentes ao direito positivo, enquanto que a autoridade administrativa, naquilo que respeita ao conteúdo do direito de comando, deve, em cada uma de suas manifestações, tender a fins determinados pela missão própria da instituição. Assim, prossegue WELTER, a diferença essencial entre a atividade privada e a atividade pública reside no fato de ser o exercício dos direitos da administração inteiramente dominado pelo elemento final, enquanto a atividade privada, mais desembaraçada de um sistema severo de fins precisos a serem atingidos, deve ser apreciada, naquilo que concerne ao exercício dos direitos subjetivos, principalmente no ângulo da liberdade individual (ob. cit., págs. 27-28).

A moralidade administrativa, ligada ao elemento final do ato administrativo, exige que certo ato, cujo fim específico não foi atingido, seja considerado como sem valor.

A imoralidade administrativa, em nosso caso, está na apropriação, pela Fazenda do Estado, daqueles tributos. Uma vez que não pode o ato administrativo (no caso, a coleta ou arrecadação) desviar-se do seu fim; e ponderando-se, ademais, que o fim social específico do adicional, aliás, juridicamente impossível, foi satisfazer um serviço público federal, segue-se que tal apropriação será um desvio manifesto dêsse fim. Se tal fim se revelou jurìdicamente impossível, isto não constitui, em absoluto, razão para que a Fazenda se apodere da receita.

8.CONCLUSÕES SOBRE O EXAME DA CONSTITUCIONALIDADE

Podemos enfim, responder, com base nos fundamentos expostos, às questões de início formuladas:

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1°) Quanto à questão sôbre a constitucionalidade da destinação do adicional de 1% às atividades da Fundação da Casa Popular, contida no art. 2° do dec.-lei nº 17.235, opinamos que tal destinação é manifestamente inconstitucional, por contrária aos princípios fundamentais da discriminação tributária da Federação. Sendo manifestamente inconstitucional, a Fundação da Casa Popular não pode exigir que a Fazenda do Estado lhe entregue as quantias arrecadadas.

2º) Relativamente à questão proposta sôbre a constitucionalidade da decretação, pelo art. 1º do dec.-lei estadual nº 17.235, do referido adicional, também concluímos pela sua indubitável inconstitucionalidade. Sendo a própria decretação inconstitucional, não tem a Fazenda o direito de arrecadar tal impôsto, que, em face do contribuinte, é uma obrigação jurídica sem causa.

3º) Quanto à questão conexa, se cabe a repetição das quantias arrecadadas ao contribuinte em virtude do adicional, ela é igualmente respondida afirmativamente, em conseqüência das conclusões anteriores. Tratando-se de obrigação fiscal sem causa, a sua repetição pelo contribuinte é imperiosa exigência da justiça e da moralidade administrativa.

9. UM ACÓRDÃO RECENTE DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO

A 2 de outubro de 1952, um acórdão da 4ª Câmara do Tribunal paulista confirmou certa decisão de primeira instância, a qual considerou indevido o adicional de 1%, com os seguintes fundamentos: A lei federal nº 1.473, de 24 de novembro de 1951, extinguiu, como fonte de receita destinada a propiciar meios financeiros à Fundação da Casa Popular, a contribuição prevista no art. 3º do dec.-lei nº 9.777, de 6 de setembro de 1946. O art. 3º do referido dec.-lei nº 9.777 é disposição morta. Revogou-o, de forma expressa, o art. 2º da lei federal nº 1.473. Como validar o Estado a cobrança da majoração de 1%, que destinara à Fundação da Casa Popular, se esta entidade está impedida de auferir os proventos dessa arrecadação? Admitida a continuidade da cobrança em aprêço, quando, paralelamente, são buscados recursos em outras fontes, em benefício da Fundação da Casa Popular, chega-se a uma situação análoga à da bitributação. O dec.-lei nº 17.235, de 1947, entronca-se na disposição do art. 3° do dec.-lei federal n° 9.777, de 1946, Cessada a vigência do primitivo preceito, matriz dos diplomas legislativos estaduais, desapareceu a atuação dêstes últimos. O Estado-membro pode, de acôrdo com a sua capacidade de imposição tributária, ampliar o impôsto a que estão sujeitas as transmissões imobiliárias. No caso, entretanto, as leis invocadas não se prestam ao reconhecimento do direito que a Fazenda do Estado de São Paulo reivindica, porque, ao tempo da sua vigência, a majoração questionada não tinha o caráter de impôsto de transmissão da propriedade imóvel, tanto que não se canalizavam os frutos da cobrança para os cofres estaduais, senão a título de simples custódia, pois se destinavam, por fôrça dos próprios textos autorizadores da exigência, à Fundação da Casa Popular, organismo federal definido em lei (v. “Rev. dos Tribunais”, dezembro de 1952, págs. 342-346).

Posterior decisão do Supremo Tribunal Federal decidiu no mesmo sentido: “Tendo sido revogada pela lei nº 1.473, de 24 de novembro de 1951, a lei nº 9.777, de 6 de setembro de 1946, não mais se justifica a cobrança, feita, pelos Estados, da taxa de 1% destinada à Fundação da Casa Popular” (ac. de 24-9-53, em “O Diário”, de Belo Horizonte, de 28-1-54).

Nossa opinião, que é concorde no que se refere à invalidade do adicional, difere quanto ao fundamento dessa invalidade. Como foi visto, consideramos tal impôsto, no período de sua pretensa vigência, como inconstitucional, inválido, não havendo necessidade de revogar uma lei já nula. Seria o mesmo que pretender matar um cadáver, ou, a exemplo do que sucedia em certas justiças da Idade Média, proceder à “execução” post mortem do cadáver daquele que fôra condenado por crime capital.

10. A LEI ESTADUAL Nº 1.470 NÃO PODE SER RETROATIVA

Recente lei estadual, a de nº 1.470, de 26 de dezembro de 1951, tentou legalizar o adicional, uma vez que, tendo ela revogado expressamente, ex vi do seu art. 3°, o art. 2º do dec.-lei estadual nº 17.235, relativo à destinação federal, teria desaparecido a razão de ser da inconstitucionalidade.

Recapitulemos brevemente o histórico.

O dec.-lei federal nº 9.777, ao estabelecer no seu art. 3º um impôsto ou contribuição de 1% superposta ao impôsto de transmissão da propriedade imóvel, exorbitou da sua esfera de competência tributária, insofismàvelmente traçada pela Constituição federal. Tal artigo era, sem a menor dúvida, inconstitucional.

Tão premente se tornou a crítica surgida, que o próprio govêrno federal, hàbilmente, tomou a iniciativa de levar os governos estaduais a editarem decretos-leis que criassem adicionais de 1% com a mesma destinação prevista pelo dec.-lei número 9.777. Assim é que o Estado de São Paulo editou o dec.-lei nº 17.235, de 21 de maio de 1947, que fixou a questão no seu art. 2º.

Pensava-se, com isso, conjurar o vício de inconstitucionalidade que invalidava o dec.-lei nº 9.777, e fazer com que a percepção do adicional pela Fundação da Casa Popular não sofresse quebra de continuidade. Não adiantou o recurso, pois a constitucionalidade do dec.-lei estadual n° 17.235, ao fim de certo tempo, também começou a ser combatida com bons argumentos.

Afinal, o govêrno federal, no pressuposto da validade autônoma do decreto-lei estadual nº 17.235, editou a lei nº 1.473, de 24 de novembro de 1951, com a qual tencionou revogar o art. 3° do decreto-lei federal nº 9.777, cortando-se a percepção do impôsto pelo govêrno federal. Mas, sendo tal artigo manifestamente inconstitucional, inválido, nulo, não necessitava de revogação. Nem esta vale por um atestado de vigência da lei anteriormente a ela.

Uma lei inconstitucional é, nos próprios têrmos da Constituição federal (artigo 101, nº II, letra c), inválida, e, portanto, nula. Os atos praticados em virtude da referida lei são, assim, nulos. A tributação, pelo adicional, em nosso caso, é nula.

O grande jurisconsulto que foi FILADELFO AZEVEDO diz, de forma concisa e enérgica, que: “O legislador não pode tudo quanto imagina e a sua apregoada soberania está longe de ser absoluta” (recurso extraordinário nº 7.063, Distrito Federal, acórdão de 27 de abril de 1944, in “Direito”, vol. 28, págs. 350 e segs.).

Acima do legislador ordinário está a Constituição, e se uma lei é inconstitucional, do fato de surgir outra lei a pretender revogá-la, originar-se-á, apenas, uma pseudo-revogação.

E, em nosso caso, o legislador federal (lei nº 1.473) não pode, a pretexto de ter revogado o art. 3° do dec.-lei federal n° 9.777, e admitindo implìcitamente que estava êle em vigor até a época da almejada revogação, subtrair aos tribunais o exame de sua validade durante o período de sua aparente vigência.

Esta suposta revogação foi uma operação legislativa destinada a fazer com que passasse legalmente para os governos estaduais o adicional em questão, e tal intenção é desvelada pelo fato de que, imediatamente em seguida à lei nº 1.473, e em atuação evidentemente harmônica, o Estado de São Paulo, pela lei nº 1.470, de 26 de dezembro de 1951, também pretendeu revogar os arts. 2º e 3° do decreto-lei estadual nº 17.235, de imposição ou inspiração federal, artigos êsses que estabeleciam a destinação do impôsto para a Fundação da Casa Popular.

Completou-se, assim, um plano econômico-financeiro, consistente em legalizar o impôsto adicional, jungindo-o às rendas do Estado, sem que a Fazenda Pública fôsse obrigada a abrir mão das quantias arrecadadas durante o pretenso período de vigência.

Sendo tal impôsto inteiramente inconstitucional, nulo, é claro que não poderia a lei estadual nº 1.470 dar vigor póstumo ou ex post facto aos dispositivos da dec.-lei nº 17.235, nem, por outro lado, poderá revogá-los. Ainda que a lei número 1.470 diga, no seu art. 3°, que fica revogado o art. 2º do dec.-lei nº 17.235, isto é juridicamente impossível, pela simples razão de que só é suscetível de revogação uma disposição legal em vigor no momento da suposta revogação, o que não é o caso, pois o art. 2º é inconstitucional, e uma disposição inconstitucional é sempre nula.

A ação do Supremo Tribunal não se delimita a declarar a nulidade dos atos do Legislativo, atribuição que é legítima dos tribunais, “a respeito de leis ordinárias, quando inconciliáveis com a Lei Fundamental”; mas anula, o que, segundo a terminologia jurídica americana, significa cancelar, fazer nulo, destruir (CAMPBELL BLACK, “Dictionnary of Law”, verbo Annull, pág. 74). Todavia, cancelando, nulificando, destruindo uma lei, a Suprema Côrte não legisla, uma vez que, tècnicamente, “as leis não se anulam senão por outras leis”.

DICEY esclarece: “Naturalmente se costuma dizer que a Suprema Côrte pronuncia a invalidez dos atos do Congresso. Mas, de fato, assim não é. Êsse tribunal nunca profere sentença alguma sôbre atos do Congresso. O que êle faz é, simplesmente, determinar que, num dado caso, A tem, ou não, direito à decisão, que contra B pleiteia, conquanto, no resolver o litígio, possa o tribunal recusar-se a ter em consideração um ato do Congresso, por exorbitante dos seus poderes constitucionais” (A. V. DICEY, “Lectures Introductory to the Study of the Law of the Constitution”, 1ª ed., página 150).

WOODROW WILSON assim definia a atitude da Suprema Côrte: “As sentenças contra a constitucionalidade de uma lei não estatuem que ela seja irrita e nenhuma, senão que deixará de se aplicar na espécie… E é dêste modo que, indiretamente, se leva a efeito a desejada anulação” (W. WILSON, “Bryce’s American Commonwealth”, na “Political Science Quarterly”, 1880, IV, pág. 157).

Entretanto, “suposto não expressamente revogada”, deduzia RUI BARBOSA, “a lei recebeu golpe mortal, e desde então se considerará inexeqüível, na expectativa de que a sua aplicação não obteria nunca mais o concurso da justiça. Certo é que, destarte, indiretamente, se vem a operar a anulação” (“O Direito do Amazonas ao Acre”, etc., I, pág. 104; id. “Coletânea Jurídica”, Ed. Nacional, 1928, págs. 88-93; id. “Comentários à Constituição Federal Brasileira”, Saraiva, 1932, págs. 19-21).

Em outro trabalho, os “Atos Inconstitucionais do Congresso e do Executivo”, RUI BARBOSA traça estas regras fundamentais:

“Tôda medida, legislativa ou executiva, que desrespeitar preceitos constitucionais, é, de sua essência, nula.

“Atos nulos da legislatura não podem conferir poderes válidos ao Executivo”.

“Aos tribunais federais compete declarar a nulidade dos atos legislativos por quebra da Constituição federal.

“Essa declaração, regularmente provocada, corresponde, para as justiças da União, não só a um direito legal, como a um dever inevitável” (ob. cit., págs. 39, 47 e 87).

É de suma importância lembrar que a declaração de inconstitucionalidade retrotrai seus efeitos a tôda a hipotética vigência da lei inconstitucional, a qual se torna, assim, um preceito legal nati-morto. Se as passagens, anteriormente transcritas, de DICEY, WILSON e RUI, não o exprimiram, outro trecho de nosso maior constitucionalista revela-o claramente no final. Refiro-me ao trabalho “Anistia Inversa”, onde se lê:

“Se o arbítrio do Congresso fôsse soberano, como pretendem os nossos demagogos, imbuídos no ranço das francesias revolucionárias de 1793, os atos dêle não teriam aquilatador: estariam acima da Constituição. Esta continuaria a gozar de uma primazia teórica, desmentida pràticamente pela onipotência das maiorias parlamentares. Felizmente os organizadores da República, no Brasil como nos Estados Unidos, enxergando que “os governos constituídos por eleição, quando não refreados, não são menos suscetíveis de exorbitar do que os designados por acidente do berço”, colocaram acima da vontade política das fações a imparcialidade jurídica dos tribunais. Dêste modo instituiu-se nêles um filtro à pureza constitucional das nossas leis.

“Êsse filtro opera a eliminação das leis viciosas mediante a averbação de nulidade. A nulidade é, pois, nos atos da legislatura, como nos da administração, o corretivo da inconstitucionalidade.

“O princípio é que leis inconstitucionais não são leis. O ato legislativo é o querer expresso da legislatura, ao passo que a Constituição é o querer expresso do povo. A este cabe a supremacia, se o ato legislativo o contradiz, írrito será: não é lei”.

“Um ato inconstitucional do Congresso, ou de qualquer legislatura de Estado, não é lei (it is not law): não confere direitos; não estabelece deveres; não cria proteção; não institui cargos. É, jurìdicamente, considerado como se nunca tivesse existido” (2ª ed., 1896, páginas 13-14).

Um moderno constitucionalista, o Professor JAMES A. C. GRANT, é muito claro, quando escreve a respeito:

“A doutrina norte-americana se baseia, pois, diretamente, em um só conceito: uma lei contra a Constituição é nula. A lei inconstitucional não chega a ser inexeqüível quando sua inconstitucionalidade é declarada por um tribunal; é nula ab initio – desde o princípio – e o tribunal não pode aplicá-la por causa de sua nulidade”. Depois de várias outras considerações, concluiu: “Embora estas leis existam, na realidade são letra morta” (“Estudio comparativo de los sistemas de control de la constitucionalidad de leyes”, na “Revista de la Escuela Nacional de Jurisprudência”, México, tomo VIII, outubro-dezembro de 1946, pág. 124).

Por outro lado, a lei nº 1.470 não estabeleceu, em nenhum dos seus artigos, qualquer impôsto semelhante àquele do dec.-lei nº 17.235. Assim, ela não pode, servir de base à cobrança do adicional de 1%.

E a legislação estadual, para estabelecer o adicional em base constitucional, foi levada a inclui-lo no dec. nº 22.022, de 31 de janeiro de 1953 (Cód. de Impostos e Taxas), que começou a vigorar a 1º de março de 1953 (art. 8º do Livro XVIII), e que preceitua ficar o impôsto sôbre sucessões subordinado à lei existente ao tempo da abertura da sucessão. (Art. 6º do Livro VI).

***

É nossa opinião, contudo, que se as leis relativas ao adicional são inconstitucionais, inválidas, o dec. estadual número 22.022 (Cód. de Impostos e Taxas) não poderá validá-las. E isto pela simples consideração de que, pela Constituição estadual de 9 de julho de 1947, compete à Assembléia (e não ao Executivo) legislar, com a sanção do governador, dentro os limites das atribuições conferidas ao estado pela Constituição federal, sôbre tributação (art. 20). E o art. 63, repetindo a Constituição federal, estabelece que nenhum impôsto será criado ou aumentado sem lei que o estabeleça. Assim, nenhum decreto estadual poderá criar (ou validar, que no fundo é a mesma coisa) ou aumentar impostos.

Assim, nem o Cód. de Impostos e Taxas, nem a lei estadual nº 1.470, legitimam o adicional de 1%.

***

Todavia, apenas para argumentar, vamos supor que a lei estadual nº 1.470 autorize a cobrança do adicional. Só seria legítima a imposição fiscal apenas nas transmissões posteriores a 28 de dezembro de 1951. E isso porque a lei nº 1.470 não poderá ter efeito retroativo.

O Cód. de Impostos e Taxas do Estado de São Paulo estabelece, com efeito, que o impôsto de transmissão causa mortis é calculado pela lei em vigor ao tempo da abertura da sucessão, qualquer que seja a época em que venha a ser pago (art. 6º do Livro VI).

No caso de impôsto adicional que incide sôbre a transmissão de imóveis inter vivos, é aplicável a lei vigente na data do ato da transmissão, segundo jurisprudência uniforme.

Portanto, tôdas as transmissões efetuadas antes de 28 de dezembro de 1951 estarão fora do domínio temporal da lei estadual nº 1.470.

Assim, se uma sucessão se abriu ou uma transmissão imobiliária se efetuou antes de 28 de dezembro de 1951, o impôsto adicional deveria ser calculado de acôrdo com o dec.-lei federal nº 9.777 e com o dec.-lei estadual nº 17.235. Como ambos são inconstitucionais, segundo ficou demonstrado, segue-se que o impôsto era ilegal. O reconhecimento da inconstitucionalidade da lei tributária tem conseqüências necessárias que afetam tanto o poder público – cessação do direito ao impôsto e do crédito de impôsto – como o contribuinte – desaparecimento da obrigação ao impôsto e da dívida de impôsto.

Dado que o dec.-lei nº 17.235 é inconstitucional em seu todo, o impôsto adicional só teria começado avigorar com a lei estadual nº 1.470, de 28 de dezembro de 1951, que não pode ter efeito retroativo.

A Constituição federal de 1946 enumera, entre os direitos e garantias individuais, aquela do § 34 do art. 146:

“Nenhum tributo será exigido ou aumentado sem que a lei o estabeleça; nenhum será cobrado em cada exercício sem prévia autorização orçamentária, ressalvada, porém, a tarifa aduaneira e o impôsto lançado por motivo de guerra”.

PONTES DE MIRANDA, ao comentar êste dispositivo, o denomina “princípio da legalitariedade do impôsto ou taxa, com o qual o povo se livra das tributações sem lei que as preveja”.

E acrescenta que “exigindo a lei prévia, e sendo essa de fonte democrática, a regra passou a ter conteúdo conceptual (“lei”) democrático” (“Comentários à Constituição de 1946”, pág. 372 do 3° volume).

Podemos concluir que, sendo inconstitucional, nula, a obrigação tributária instituída pelos decs.-leis ns. 9.777 e 17.235, não pode ser ela revalidada ex post facto por qualquer lei posterior.

Em conclusão: mesmo na hipótese, por nós repelida, de a lei nº 1.470 autorizar, a partir de 28 de dezembro de 1951, a cobrança do adicional, será inegável o direito à restituição, que assiste aos contribuintes, pelo adicional que incidiu sôbre as transmissões inter vivos ou mortis causa, de valor superior a Cr$ 100.000,00, ocorridas até 28 de dezembro de 1951.

Alípio Silveira, professor da Faculdade de Direito de Niterói.

______________

NOTAS:

1 Idênticamente ao Estado de São Paulo, o Estado de Minas Gerais expediu o dec.-lei número 2.116, de 6 de junho de 1947, redigido nos mesmos têrmos que o dec.-lei paulista nº 17.235, de 21 de maio de 1947, e que se reporta, como Êste último, ao dec.-lei federal nº 9.777.

O dec.-lei nº 2.116 foi publicado no “Minas Gerais”, órgão oficial dos poderes do Estado. Belo Horizonte, 7 de junho de 1947, nº 127, página 1.

Posteriormente, o dec. nº 3.529 de 12 de janeiro de 1951, o qual regulamentou o impôsto de transmissão de propriedade inter vivos a que se refere o art. 79 da lei nº 24, de 3 de novembro de 1947, tornou a referir-se a esta contribuição, em seu art. 69:

“Quando o valor do imóvel adquirido fôr igual ou superior a Cr$ 100 000 00 cobrar-se-á ainda a taxa de 1%, cujo produto será levado a crédito da “Fundação da Casa Popular”, nos têrmos do dec.-lei nº 2.116, de 6 de junho de 1947″.

O dec. nº 3.529 foi publicado, na íntegra, em “Vida Industrial”, Belo Horizonte, fevereiro de 1951 nº 5, págs. 158 e segs.

Surgiu, ao depois, a lei nº 760, de 26 de outubro de 1951, que estabeleceu, em seu art. 48, I, ser devido o impôsto de transmissão inter vivos sôbre o valor dos imóveis incorporados pelos sócios para a formação do capital social; e, III, na fusão e incorporação das sociedades observar-se-á mesmo preceito (publicado em “Vida Industrial”, janeiro-fevereiro de 1952, nº 11, página 10).

Evidentemente, o adicional de 1% deveria ser cobrado quando o valor do imóvel fôsse igual ou superior a Cr$ 100.000,00.

Até à lei federal nº 1.473, de 24 de novembro de 1951, que revogou o dec.-lei federal número 9.777, não surgiram, em Minas, questões de constitucionalidade, ao que nos conste. Contrasteou êle com o Estado de São Paulo, onde tais questões não deixaram de surgir, como veremos por miúdo, no lugar adequado.

A partir, porém, dessa lei federal nº 1473, o Conselho de Contribuintes do Estado de Minas, por maioria, tem entendido ter sido abolida a referida taxa adicional com o fundamento de que tal lei revogou também, ainda que implìcitamente, o dec.-lei mineiro nº 2.116 de 6 de junho de 1947, acima referido, e que era uma legislação supletiva do doc.-lei federal nº 9.777, no entender dêsse Conselho.

Todavia, o Tribunal de Justiça dêsse mesmo Estado, ao julgar alguns casos em que a Fazenda, inconformada, recorreu a êle, entendeu ser devida a taxa, com o fundamento de que o Estado de Minas, ao editar o dec.-lei nº 2.116 “não legislou supletivamente, mas por direito próprio” e assim, não se poderia falar em revogação implícita dêsse decreto-lei (vêde, em sentido contrário, o acórdão do Tribunal do Justiça de São Paulo, no parágrafo 9 dêste artigo).

Ainda recentemente, um acórdão do Tribunal de Justiça de Minas decidiu:

“Enquanto o Estado (de Minas) não revogar o art. 1º do dec.-lei estadual nº 2.116 êsse impôsto deve ser pago; a revogação do art. 3º do dec.-lei nº 9.777 não importa em revogação do dispositivo estadual. Em contrário, sei ia desconhecer ou menosprezar a autonomia do Estado” (ac. da 2ª Câmara, de 5-10-53, publicado em “O Diário”, de Belo Horizonte, de 27-1-54).

2 Cf. FRANCESCO FERRARA, “Interpretação e Aplicação das Leis”, trad. e pref. do Prof. MANUEL DE ANDRADE, 1934, pág. 39; Prof. MÁRIO ROTONDI. “Interpretazione della Legge”, no “Nuovo Digesto Italiano”, vol. VII, 1938, nº 3; CLÓVIS BEVILÁQUA, “Teoria Geral do Direito Civil”, 2ª ed., pág. 49; FRANÇOIS GENY, “Méthode d’Interpretation et Sources en Droit Privé Positif”, 2ª ed., 1932, vol. I, páginas 284-285).

3 Cf. também: LOUIS TROTABAS, “A Interpretação Literal das Leis Fiscais”, na “REVISTA FORENSE”, vol. 102, págs. 449 e segs.; RAFAEL BIELSA, “Nociones Preliminares de Derecho Fiscal”, 1944, págs. 41-61; EZZIO VANONI, “Natura ed Interpretazione delle leggi tributarie”, Pádua, 1932, págs. 202, 231, 232 e 233.

4 No texto inglês figura a palavra consideration, que traduzimos para causa, pois a doutrina da consideration, no direito anglo-americano, corresponde à nossa teoria da causa jurídica das obrigações (v. LUÍS GONZAGA DO NASCIMENTO E SILVA. “Causa e Consideration”, na “REVISTA FORENSE.”, vol. 140, março-abril de 1952).

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