GENJURÍDICO
A tributação dos vencimentos da magistratura em face da independência e harmonia dos três poderes constitucionais

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CLÁSSICOS FORENSE

REVISTA FORENSE

TRIBUTÁRIO

A tributação dos vencimentos da magistratura em face da independência e harmonia dos três poderes constitucionais, de Abner Vasconcelos

REVISTA FORENSE 168 - ANO DE 1954

Revista Forense

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23/12/2024

SUMÁRIO: A independência do Poder Judiciário. Antecedentes constitucionais. O impôsto de renda. A Constituição de 1934. Os tetos vigentes. Conclusão.

A liberdade de pensamento que sobreviveu à perseguição religiosa, com a aclimação dos fugitivos nas plagas norte-americanas, no fim do século XVIII, foi um poderoso fator de fortalecimento do lastro moral da raça nova que ali se constituiu. E, para a formação da República, quando elevado já era o índice do seu desenvolvimento social, o espírito dos seus grandes homens foi buscar nas idéias doutrinárias de MONTESQUIEU1 a inspiração dos princípios fundamentais da primeira Constituição democrática do mundo moderno.

Estruturando as regras políticas da nação, logo vislumbraram os legisladores de Filadélfia que, sem o Poder Judiciário prestigiado e independente, a tranqüilidade dos interêsses públicos e privados seria um mito. E o erigiram, não só no mesmo plano dos outros poderes políticos, como ainda com a faculdade de imprimir o sentido e a orientação dos preceitos constitucionais. Sem que isso importasse em dar superioridade hierárquica à Justiça no ritmo da administração nacional, ficou-lhe a outorga de julgar e corrigir o excesso dos atos dos outros dois poderes. Basta ponderar-se sôbre esta verdade: enquanto êstes, o Legislativo e o Executivo, são dinâmicos e agem de motuproprio, aquêle outro, o Judiciário, é estático e sòmente se movimenta, quando solicitado por, titular de direito ofendido ou ameaçado. Mas, o que lhe deu maior relêvo político foi a atribuição de declarar a inconstitucionalidade das leis. No sistema dos contra-freios constitucionais, essa prerrogativa judicial representa, o ponto saliente do regime democrático do continente americano.

A independência do Poder Judiciário

A independência do Poder Judiciário decorre de um dogma fundamental da instituição política adotada.

As principais Constituições do Continente Americano admitiram integralmente o princípio estruturado no art. 1°, seção III, da dos Estados Unidos, in verbis:

“Os juízes, quer da Suprema Côrte, quer dos tribunais inferiores, exercerão os seus cargos enquanto bem servirem e receberão, em determinadas épocas, um estipêndio pelos seus serviços, insuscetível de qualquer diminuição, enquanto cus conservarem”.

Contemporâneos e colaboradores da maior carta de organização política das nações, HAMILTON, JAY e MADISON, cuja participação na vida do país, que emergia para a grandeza republicana, tomaram o encargo de difundir o complexo pensamento constitucional acabado de elaborar, para melhor compreensão do povo. Era a doutrina básica que surgia das páginas fecundas de “O Federalista”, nas quais os três grandes espíritos revelaram a fôrça prodigiosa das sementes plantadas na Constituição. Eram carecidas dos cuidados da inteligência e do raciocínio para que bem germinassem nas terras virgens da nova política americana, que se irradiava triunfante, insuflada pelas ânsias da liberdade. Tratando de dar ao Poder Judiciário a sua elevada e necessária fixação constitucional, através do aspecto de suas resistências funcionais, HAMILTON escreveu que, depois de investido no cargo, nada contribui tanto para a maior eficácia e independência dos juízes do que prover em forma estável a sua remuneração. Daí a proibição de não poder ser diminuída a retribuição do Judiciário, direta nem indiretamente. Continuando ainda com os seus conceitos, em face da falta de precisão de linguagem, a respeito dos vencimentos dos juízes, era preciso alguma coisa mais positiva e inequívoca, conforme ficou evidenciado. Em conseqüência, permaneceu o texto constitucional assecuratório da remuneração intangível. E no desenvolvimento do seu pensamento, acrescenta HAMILTON que, se levarem em conta tôdas as circunstâncias, essa é a disposição mais aceitável que se podia ter ideado. A importância fixa seria inconveniente, pois a flutuação do valor da moeda tornaria instável a remuneração e possìvelmente mesquinha com o decorrer do tempo. A alteração para mais consulta aos interêsses da estabilidade e da independência do Judiciário.2 No mesmo sentido a Côrte Suprema dos Estados Unidos, em copiosa jurisprudência, definira o princípio constitucional de que o Congresso não pode taxar os vencimentos dos juízes, ainda que estaduais. O ministro PEDRO DOS SANTOS, em rica monografia publicada em 1929, referindo TANEY, MILLER, TYLER, JAMES YOUNG, enumera uma série de julgados da Côrte Suprema contrários à incidência dos vencimentos dos juízes, no impôsto de renda, como ofensiva ao princípio constitucional.3 Da mesma forma, ocorre na Argentina, cuja Constituição, art. 96. parte segunda, coma se expressa POVIÑA, foi tomada quase textualmente da Carta Política norte-americana. Depois de ter tratado, no capítulo das garantias constitucionais, da independência do Poder Judiciário e da sua inamovibilidade, ressalta o aspecto da compensação funcional.

Reproduzindo HAMILTON, diz que o preceito constitucional é assegurador da independência porque, no curso geral da natureza humana, ter ação sôbre a subsistência de um cidadão importa tê-la sôbre sua vontade. E não se pode esperar ver realiza na prática completa separação do Poder Judiciário com relação ao Legislativo, em qualquer sistema que deixe o primeiro dependente, quanto a recursos pecuniários, de dádivas acidentais do segundo. E acrescenta: se o Congresso pudesse diminuir a compensação que os juízes recebem por seus serviços. poderia chegar até a anulá-la ou tão irrisória torná-la, que obrigaria os magistrados a abandonar seus cargos, ficando assim burlado o princípio da inamovibilidade.4

Da mesma natureza é a ordem de considerações doutrinarias tendentes a consolidar as condições de estabilidade do Poder Judiciário no plano político-constitucional. A bem do interêsse público, e não simplesmente de uma classe dotada de tratamento especial, AUGUSTIN DE VEDIA proclama que ilusório seria contar com a separação do Poder Judiciário, do Legislativo, se prevalecesse o sistema mediante o qual dependessem os juízes dos favores contingentes do legislador. E acrescenta, que, tratando-se de cargos vitalícios, como os dos juízes, devia prever-se que, com o andar do tempo, sua dotação chegará a ser insuficiente com relação às exigências da vida, o encarecimento das coisas, etc. O essencial, entretanto, era impedir que fôsse diminuída.

Antecedentes constitucionais

Procurando inspiração na riqueza da doutrina americana, pondera ainda VEDIA: O princípio de que a boa conduta assegura a conservação do cargo na magistratura é certamente cômodas mais valiosas vantagens modernas incorporadas às práticas do govêrno.5

Nas monarquias, disse “O Federalista”, é uma barreira contra o despotismo do príncipe. A mesma coisa o é nas repúblicas, contra a opressão e as usurpações do corpo representativo. E a condição mais eficaz que se pode idear para estabelecer uma administração de justiça uniforme, reta, imparcial. O Executivo dispensa honras e tem a espada. O Legislativo dispõe do tesouro e prescreve as regras legais a que todos se submetem. O Poder Judiciário não influi sôbre a espada nem sôbre o tesouro. Não tem fôrça, nem vontade, além da de julgar, para cujo exercício necessita também do braço executivo. Era necessário dotá-lo de algum elemento que o fortalecesse, e não creio que nada contribuiria tanto para dar-lhe firmeza e independência como a estabilidade ou permanência no cargo. Esta condição tem sido considerada justamente como elemento essencial e indispensável de uma Constituição e, em grande parte, como o baluarte da justiça e da segurança pública.6

Aí estão, em linhas gerais, os fundamentos instituidores da independência constitucional do Poder Judiciário na exuberância de sua criação nos Estados Unidos e de sua integral implantação na Argentina. Foram os exemplos inspiradores do pensamento republicano no Brasil, quando foi varrida a monarquia. No antigo regime, o Judiciário gozava do direito de vitaliciedade, porém, era movível e não havia cláusula expressa na Constituição a respeito da prerrogativa dos vencimentos.

Foi a República, refletindo a proteção do pensamento continental vitorioso, que erigiu de modo diverso os fundamentos definitivos do Poder Judiciário, então vigente.

Adotando integralmente o espírito das Constituições daqueles dois países, sem prejuízo do seu sentido, deu nossa Constituição maior síntese ao preceito relativo à retribuição intangível da judicatura:

“Os juízes federais são vitalícios e perderão o cargo ùnicamente por sentença judicial. Os seus vencimentos serão determinados por lei e não poderão ser diminuídos”.

E peremptória a determinação excludente de qualquer que fôsse o pretexto. Nêle incluíam-se implìcitamente as expressões daquelas duas Constituições modelares: insuscetível de qualquer diminuição, da primeira, e não poderão ser diminuídos de maneira alguma, da segunda.

Entre os princípios fundamentais do nosso país, no novo regime, incluiu-se, sob a forma de dogma: a irredutibilidade absoluta dos vencimentos do Poder Judiciário. Em quase meio século, esta doutrina penetrou no espírito público como uma idéia vitoriosa, aplaudida pelas maiores celebrações do direito e por julgados memoráveis, não só no domínio da Justiça federal, como também da estadual, a qual, por fôrça do disposto no artigo 63 da Constituição, estendiam-se as garantias do art. 57. Significou uma conquista definitiva do nosso direito constitucional, não pròpriamente como privilégio de uma classe, e sim como uma segurança de todos os interêsses jurídicos, particulares e coletivos.

PEDRO LESSA, que tão alto sentido doutrinário emprestou aos princípios constitucionais compreendidos no Poder Judiciário, explicou com autoridade a matéria.

Nenhuma eficácia teria a vitaliciedade, disse êle, se os vencimentos dos juízes pudessem de qualquer modo ser diminuídos. Eis a razão pela qual o nosso legislador-constituinte, imitando o norte-americano e o argentino, estatuiu a irredutibilidade dos vencimentos que, expressa para os magistrados federais, está implìcitamente garantida pelo art. 63 da Constituição, às judicaturas do Estado, como invariàvelmente tem julgado o Supremo Tribunal Federal por inúmeras sentenças. Está subentendido que a irredutibilidade dos vencimentos dos juízes obsta a criação de quaisquer impostos sôbre êsses vencimentos. Ao contrário, muito fácil fôra violar o preceito constitucional, reduzindo sucessivamente, ou de uma só vez, a proporções insignificantes, a retribuição que a lei declara intangível.7

Quando se procedeu à reforma constitucional de 7 de setembro de 1926, o País atravessava como fase política de grande efervescência.

No Capítulo DeclaraçõesdeDireitos, acrescentou-se, o § 32, assim concebido:

“As disposições constitucionais assecuratórias da irredutibilidade de vencimentos civis e militares não eximem da obrigação de pagar os impostos gerais criados em lei”.

Compreendeu-se que, a reforma quis atingir o órgão supremo da Justiça nacional, num dós mais sensíveis pontos de sua independência.

O imposto de renda

Embora o novo texto não fizesse referência direta aos vencimentos judiciários, o fisco os incluiu no impôsto de renda e a cobrança foi tentada. O ministro GEMINIANO DA FRANCA insurgiu-se contra o pagamento e recorreu à ação competente. O Supremo Tribunal, em memoráveis julgamentos, depois de copiosa análise dos motivos substanciais da causa, julgou inconstitucional o impôsto de renda que alcançasse os vencimentos da magistratura.8

Como decorrência dêsse fato, o eminente ministro PEDRO DOS SANTOS, em sua notável dissertação, mostrou o caráter irredutível dos vencimentos dos juízes à luz do direito americano, pondo em completa evidência a garantia absoluta da percepção.9

O respeito à prerrogativa constitucional foi reiterado por decisão da mesma egrégia instância, por acórdão de 20 de agôsto de 1930, por ter entendido a administração de investir novamente contra a garantia judiciária da irredutibilidade, onerando-lhe os vencimentos.10

A Constituição de 1934

O Govêrno Provisório, de 1930 a 1934, manteve integral respeitoso mesmo atributo constitucional, embora tivesse atentado contra outras garantias.

Sobrevindo a fase da normalização política do País, o Govêrno Provisório enviou à Assembléia Constituinte um projeto de Constituição e, depois de ter consignado no art. 11, a harmonia e independência dos poderes, especificou no art. 50 os três clássicos atributos do Judiciário: vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de vencimentos. Acrescentou, porém, a êste último vocábulo a expressão complementar – sujeitos todavia aos impostos gerais.

O substitutivo da Comissão Parlamentar, no art. 96, alínea c, manteve a incidência tributária. Foi desprezada a sugestão do ministro ARTUR RIBEIRO, que substituía o texto proposto por êste outro, referente ao Supremo Tribunal:

“Os seus vencimentos serão determinados por lei, e não poderão ser diminuídos, sob pretexto algum, não estando sujeitos a impostos de qualquer natureza.11

Em plenário, ao projeto substitutivo, foram apresentadas três emendas a respeito da irredutibilidade dos proventos da magistratura. A primeira, de nº 434, de autoria do deputado PEDRO VERGARA, combateu a proposta da tributação, dizendo o seu defensor que a alínea c do art. 98 encerrava uma flagrante contradição e uma injustiça evidente. E mostrou a incongruência existente entre dispositivos do projeto no tocante à especificação de rendas e a expressão de que os vencimentos judiciários ficavam sujeitos a impostos gerais.12 A segunda emenda, n° 814, do deputado LACERDA PINTO, mandava acrescentar às palavras finais do art. 50, letra c, do cap. Leis e Resoluções, do Substitutivo Parlamentar, a expressão que não incidam sôbre vencimentos. E, justificando a proposta, aduziu êste conceito incisivo: “Se forem criados impostos sôbre vencimentos, êsses encargos, embora gerais, importarão na redução dos vencimentos dos juízes”.13

A terceira emenda, de nº 949, de numerosos congressistas mineiros, encabeçada pelo deputado NEGRÃO DE LIMA, substituía o texto primitivo do projeto, sôbre o Poder Judiciário, por êste outro: Os seus vencimentos serão determinados por lei e não poderão ser diminuídos sob pretexto algum; não estando sujeitos a impostos de qualquer natureza.14

Como o projeto governamental, no art. 6º, alínea c, havia disposto, no capítulo da discriminação das rendas, competir à União “decretar o impôsto de renda e proventos de qualquer natureza, exceto a renda cedular de imóveis”, a Comissão Parlamentar, no art. 14, § 2º, do Substitutivo, deu-lhe diferente redação:

“O impôsto sôbre a renda só poderá incidir sôbre os proventos obtidos na mobilização de capitais, estando do mesmo isentos os vencimentos dos magistrados e dos funcionários públicos, civis e militares e as remunerações dos empregados particulares de qualquer profissão, assim como os subsídios, aposentadorias, jubilações, reformas, pensões, ajuda de custo, representação e gratificações prolabore“.15

Iniciada a votação na Assembléia Constituinte, em 7-5-34, depois das emendas apresentadas na primeira discussão, na sessão do dia 10 do mesmo mês, foi posta em votação a de nº 1.945, que modificava a emenda da Comissão Parlamentar referente à especificação da competência tributária da União. Por ela, o art. 5º, alínea c, definiu caber-lhe decretar impostos de renda e proventos de qualquer espécie, exceto a renda de Imóveis. O deputado FERNANDO MAGALHÃES pediu preferência para a votação da emenda à alínea c referida, que restabelecia a emenda da Comissão Parlamentar dos 26. Mas, o Congresso, que vinha até então votando alínea por alínea, deliberou que dali em diante a votação seria em globo, artigo por artigo. A emenda não foi aprovada, ficando instituído o vasto círculo da incidência do impôsto de renda sôbre todo o funcionalismo público.16 E quando se procedeu à votação do capítulo sôbre o Poder Judiciário, a emenda ao art. 95, c, referente à irredutibilidade dos vencimentos sem impostos, caiu, sem discussão. Ficou prevalecendo o texto inicial do projeto primitivo.17

A Constituição, promulgada em 16 de julho, no art. 64, alínea c, manteve assim a inovação de que os vencimentos irredutíveis do Judiciário ficavam sujeitos, todavia, aos impostos gerais.

Em sua curta vigência, PONTES DE MIRANDA publicou os seus primeiros comentários constitucionais. Tratando dos vencimentos dos juízes, assim se pronunciou o aplaudido jurista: “Vitaliciedade sem irredutibilidade seria garantia falha. Aqui se tiraria parte do que ali se assegurou, a independência econômica, elemento de relêvo que muitos reputam o maior da independência funcional. O exemplo de tornar irredutíveis os vencimentos dos juízes tivemo-lo na Constituição norte-americana e na Constituição argentina.

“A retroatividade dos vencimentos dos juízes obsta a quaisquer impostos sôbre êles, porque, se assim não fôsse, poderiam o Poder Legislativo e o Poder Executivo, de mãos dadas, reduzi-los como entendessem”.18 Até aqui o ilustre constitucionalista expressou a pura doutrina vencedora na América, e que constitui um dos mais fortes baluartes do regime democrático. Em seguida, obtemperou. Mas uma coisa são impostos sôbre determinados vencimentos e outra coisa impôsto de renda, por exemplo, que é impôsto geral e que, para diminuir os vencimentos dos juízes, diminuiria os de todos os que têm vencimentos ou proventos de qualquer espécie. Andou bem a Assembléia Constituinte de 34, quando ressaltou: os quais ficam todavia sujeitos aos impostos gerais. Os impostos gerais apanham tudo.19 Sente-se que a ausência lógica do raciocínio do aplaudido escritor sofreu uma cisão, em face do artifício do legislador, porque importou em dizer que o que era irredutível podia ser reduzido. Não era possível lei de caráter geral capaz de abater a estrutura constitucional da irredutibilidade. E, quando parecesse que a Constituição continha palavras antagônicas, que se procurasse antes conciliá-las, conforme as regras da hermenêutica. Tratando-se de um dispositivo aplicável a todo o funcionalismo, a prerrogativa judiciária impunha-se com a fôrça de um imperativo. É possível a redução do que, por natureza própria, é intangível. Teria sido preciso que o constituinte alterasse, primeiramente, os princípios clássicos e substituísse o vocábulo irredutibilidade por vencimentos sujeitos a impostos gerais. Antes, porém, teria proscrito o sistema de poderes independentes, visto o impôsto tornar o Judiciário submisso à influência da vontade legislativa.

A Justiça nacional, sem entrar na indagação da legitimidade da tributação, suportou estòicamente o ônus, apelar de ser, naquela época, uma classe muito mal remunerada e de levarem os seus juízes uma vida pública e particular sabidamente modesta. Aliás, em geral, era a característica da Justiça de todos es países, com exceção da inglêsa, sempre magnìficamente retribuída.

O novo regime constitucional durou até o golpe de estado, quando o chefe do Poder Executivo dissolveu o Congresso e promulgou a Carta Política de 1937, que a Nação recebeu sem reação. Por ela, o Poder Judiciário foi atingido em suas principais prerrogativas, das quais a mais importante foi deixar de ser a última palavra na declaração da inconstitucionalidade das leis, transferida para o Senado, e, em falta dêste, para o Poder Executivo.20 Não se tratava de uma Constituição outorgada liberal, no sentido do regime constitucional decaído. Produto de um ato de fôrça tendente a tornar permanente no poder o chefe da Nação, foram riscados do seu contexto os conceitos de democracia e de independência e harmonia dos poderes. D Legislativo sòmente existiu no papel, pois jamais se instalou, sendo exercido pelo chefe do govêrno. E o Judiciário ficou deturpado em sua fisionomia anterior, sem alguns de seus atributos, inclusive o de velar pela aplicação das garantias constitucionais.

Em sua vigência, em 1938, subiu, em grau de recurso, ao Supremo Tribunal, a questão da irredutibilidade dos vencimentos da judicatura fluminense. Mas, o chefe do govêrno, amparado na elasticidade da Carta Política, art. 180, pela ausência absoluta do Senado, e, em sua intencional substituição, anulou a decisão judiciária e manteve a tributação.21

Clareados os horizontes políticos da Nação em 1945, sobreveio a reconstitucionalização do ano imediato, com a volta da democracia com suas linhas nos moldes do sistema antigo, idêntico ao norte-americano.

O Poder Judiciário retornou a sua feição própria, de independência entre os contrafreios do regime e sólido na elevação moral do seu desempenho funcional. Entretanto, como uma Imprudente reminiscência do pensamento governamental de 1934, incluído da Constituição de 16 de julho, a de 1946, apesar de serem, entre si, harmônicos é independentes os poderes políticos, manteve, no texto referente à irredutibilidade dos vencimentos do Judiciário, a expressão de que os mesmos ficam todavia sujeitos aos impostos gerais.

A magistratura de todo o país aguardava que o legislador-constituinte, a bem do sentido da secular concepção do direito constitucional de tôda a América federativa, extirpasse aquela expressão que representava uma arma voltada contra a classe que representa o poder mais estável da nossa organização política, e a detentora da missão mais delicada da administração pública.

BRYCE foi psicólogo quando externou que os elaboradores da Constituição estavam extremamente ansiosos por assegurar a independência dos magistrados, a fim de que fôssem uma fortaleza em prol do povo e dos Estados, contra os possíveis abusos do Legislativo e do Executivo.22

E agir contra a diminuição dos vencimentos, através dos impostos, é tentar contra a própria independência funcional, por atingir as resistências morais da magistratura.

Não se perca de vista que as garantias do Judiciário fazem parte integrante da separação de poderes, sendo conseqüentemente uma das vigas mestras da estrutura constitucional, como se expressa o douto SAMPAIO DÓRIA.23

Deduz-se dêsse princípio fundamental que qualquer interpretação que tenha por fim enfraquecer essa verdade essencial constitua uma ofensa às garantias judiciárias e deve ser afastada. Sem que o constituinte altere o regime dos poderes políticos, harmônicos e independentes entre si, seguido da definição dos três ângulos do Judiciário – vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade, êste está acima de tôda exegese que abale a sua base constitucional.

A análise da gênese da Constituição atual elucida melhor as deduções do seu conteúdo.

O Projeto elaborado pela Assembléia Nacional Constituinte assim dispunha:

“Art: 95. Salvo as restrições expressas nesta Constituição, os juízes gozarão das garantias seguintes:

“I – vitaliciedade;

“II – inamovibilidade;

“III – irredutibilidade dos vencimentos, que todavia ficarão sujeitos aos impostos gerais”.

Idêntica era a redação do art. 64 da Constituição de 1934, que é, portanto, a fonte inspiradora do preceito ora vigente, embora perdurasse a influência da emenda constitucional de 1926, art. 72, § 32. Enquanto isso, o art. 38 precisou serem poderes da União o Legislativo, o Executivo e o Judiciário, independentes e harmônicos entre si. O que ficou erigido com a fôrça de um dos poderes políticos da Nação, através da compreensão secular do nosso direito constitucional, há de ser aplicado com o sentido que sempre teve respeitado. Assim, os argumentos, com que hoje se deve impor são os mesmos de ontem, em face de idêntico texto, então adotado também.

Tais eram os arts. 15 da Constituição de 1891 e idêntico da modificada em 1926, e 3° da de 1934, tôdas de igualdade dos poderes políticos do País, guardadas as peculiaridades de cada um dêles e da harmonia decorrente do funcionamento de todos.

O referido acórdão do Supremo Tribunal, de 4-1-1939, com apoio em COOLEY e CARLOS MAXIMILIANO, tem a respeito argumentos do mais alto valor jurídico:

“Quando a nova Constituição manteve em alguns de seus artigos a mesma linguagem da antiga, presume-se que se pretendeu não mudar a lei nesse particular, e a outra continue em vigor, isto é, aplicada à atual a interpretação aceita para a anterior”.

“Conseguintemente, mantendo o constituinte o princípio dessa irredutibilidade, ao qual se há de emprestar valor e vigor, não ser lícito enxergar na lei palavras inúteis, a conseqüência necessária é que qualquer tributação pode atingir o patrimônio de tais servidores da Justiça, menos, porém, na porção representada por estipêndio pelo desempenho das respectivas funções”.

São ainda impressionantes estas incisivas interrogações do relator, ministro BENTO DE FARIA:

“Se os vencimentos da magistratura não podem ser reduzidos, como permitir a possibilidade de redução? Se se mantêm a imunidade fiscal, como admitir sua infringência? Como é possível que vivam juntos, dentro da mesma lei, sem conciliação, preceitos tão radicalmente opostos e antagônicos?”

“Mas, tal não pode nem deve suceder, se o todo é que deve ser examinado para se obter o verdadeiro sentido de cada uma de suas partes. Na interpretação de qualquer lei, seja a maior de tôdas elas, as respectivas proposições não podem ser consideradas isoladamente, máxime quando ocorrem conseqüências inconciliáveis com o seu espírito, o mesmo que orienta as organizações constitucionais das democracias”.24

Não se nega ao legislador-constituinte o poder de criar impostos sôbre vencimentos, inclusive sôbre os da Justiça. Entretanto, essa liberdade esgota-se, fica impedida de manifestar-se, desde que êle mesmo cria basilarmente uma situação constitucional que obsta àquela incidência fiscal; como é exatamente a concepção do Judiciário de pairar acima da atribuição de ficar dependente do estabelecimento de tributos. Foi isto o que levou o grande RUI BARBOSA, inspirador do regime federativo entre nós, a definir o princípio:

“Todo ato legislativo que a tais vencimentos diminuir, seja mediante redução direta, ou seja mediante impôsto, atentará flagrantemente contra a Constituição, incorrendo em nulidade insanável”.

E sem garantia da irredutibilidade, formulou ainda estas deduções:

a) inamovibilidade da magistratura se reduz à burla e à irrisão;

b) não há realmente separação entre o Judiciário e o Legislativo;

c) a autonomia do primeiro fica nas mãos do segundo, mercê do arbitrário exercido por êste sôbre a subsistência daquele;

d) a independência da magistratura, em suma, vem tornar-se puramente nominal”.25

Do mesmo modo de entender o espírito e a letra do dispositivo constitucional era o ministro JOÃO BARBALHO, o primeiro e autorizado intérprete da Carta Republicana de 91, e que assim se manifestou:

“A Constituição determina que os vencimentos dos magistrados não podem ser diminuídos. Esta determinação é, absoluta, não tem limitações. E uma só que tivesse a inutilizaria tôda. Foi julgado necessário garantir ao juiz a fixidez e integridade do vencimento que se lhe estipulou, por bem de sua independência, e desde que se permitisse, sob qualquer título que fôsse, e ainda indiretamente, fazer-se-lhe alguma dedução, por aí operava-se a diminuição que se quis proibir. Fôra uma contradição com o preceito da irredutibilidade e abrir-se-ia nela uma fenda, por onde se poderia escoar o vencimento que ao magistrado é garantido integralmente. Nem mesmo por motivo de impôsto tal redução se consente, desde que inegàvelmente redunde isso em diminuir a quantia que constitui o vencimento. Por leve que seja a taxa, ela dá lugar a que o juiz receba menos que o vencimento fixado, isto é, sofra diminuição que a Constituição não quer. E se fôsse lícita a redução por via de impôsto, não havendo, na faculdade de impor um limite legal a que esteja adstrito o Congresso, êle poderia estabelecer a taxa que lhe parecesse; v. g., 5-10-20-50, quanto quisesse… Isto é, ficava com o poder de, exagerando a imposição, suprimir uma das mais valiosas garantias da independência da magistratura a fixidez do ordenado, proporcional à importância das funções, certo, completo, irredutível”.26

Êsse é, incontestàvelmente, o significado constitucional da irredutibilidade de vencimentos, não porque importe uma vantagem pessoal dos que exercem as funções judiciárias, e sim por uma ressalva a outro princípio superior, fundamental do regime; e que por isso mesmo se impõe obrigatòriamente.

Não é para beneficiar isoladamente ao juiz que a lei isenta de impostos os seus vencimentos; antes o faz para fortalecer-lhe o ânimo no exercício do dever funcional e não o deixar sujeito à eventualidade de circunstâncias, de lhe serem diminuídos os proventos do cargo, pela ação do Legislativo, com o propósito de quebrar-lhe a erecta atitude, em prejuízo de garantias que estejam à sombra da Justiça. O que ocorre no caso, como já proclamara o egrégio Supremo Tribunal, em acórdão de 10 de outubro de 1914, é que o impôsto de renda atenta contra o preceito basilar da irredutibilidade dos vencimentos da magistratura, por uma questão de ordem pública.27 É nisto que reside a razão de ser da verba constitucional, que está sofrendo agora a ação desfiguradora do seu maior sentido.

A tese da irredutibilidade de vencimentos do Poder Judiciário, incompatível com a tributação de qualquer ônus, sempre vencedora na jurisprudência nacional, bem como na americana e argentina, veio a ser ùltimamente encarada pela Côrte Suprema dos Estados Unidos de maneira diametralmente oposta.

Os juízes passaram a ser considerados apenas como cidadãos, cuja investidura funcional não os diversifica dos demais, arrostando igualmente com o pêso cívico dos encargos administrativos. De muito maior conteúdo de expressão constitucional guardando o sabor clássico do acêrto doutrinário que encerra o exato segrêdo da fôrça política do Poder Judiciário, é o aresto do Supremo Tribunal da Argentina, quando se opôs à pretendida aplicação do ônus fiscal sôbre os vencimentos dos juízes.

POVIÑA, apreciando a repercussão da tese da irredutibilidade, em face da Constituição argentina, elucida:

“A proibição do art. 96 é absoluta, de maneira que os vencimentos dos magistrados não podem ser gravados com impostos”.

“A Côrte Suprema, integrada por juízes suplementares, em vista de se haverem escusado os membros da mesma, e os do Tribunal Federal da Capital, seus substitutos, resolveu em 1936 que os juízes da nação não estavam obrigados ao impôsto, porque do contrário significaria que, de forma indireta, fôsse afetar o princípio constitucional da intangibilidade da remuneração.

“Esta exoneração de impostos, disse um dos juízes ad hoc, não viola o princípio da igualdade, consagrado no artigo 16 da Constituição, que tem exceções dentro da mesma, como as imunidades de certos funcionários e instituições. Tais privilégios não foram criados para proteger pessoas, classes ou castas, senão para dar consistência a instituições que se consideram fundamentais”.28

Essa concepção superior dos textos e do espírito que impeliu os constituintes do regime federativo nos países americanos, até os tempos modernos, veio a ser alterada, com imenso prejuízo para as nações interessadas, porque diminui as resistências do judiciário e a confiança pública no único poder estável do regime. A tese da irredutibilidade dos vencimentos, incompatível com o ônus de qualquer tributação, tentou-se contraditòriamente solucionar-se, cindindo a pacífica lição política, decorrente das Constituições e dos arestos. Sobreviera uma sombra prejudicial ao prestígio e à confiança na Justiça. Quebrou o cristal da tradição, talvez da maior conquista da política instalada no continente pelos norte-americanos.29

E é justamente da fonte constitucional de onde proveio a conquista da independência e da fôrça moral do Poder Judiciário, que partiu o golpe desconcertante da interpretação perigosa. Pode ser que a índole da raça americana, com o sentido superior de sua civilização, nos embates das lutas políticas, tenha sempre pela Justiça o devido culto, não lhe alterando, as garantias.

Mas, nem sempre a mesma coisa se deve esperar no resto do continente, habituados que estão os poderes políticos à tendência de menos respeito aos órgãos judicantes. Entretanto, as Constituições dos seus povos, sobretudo os que adotam a forma federativa, fiéis ao modelo originário que os inspirou, mantiveram a igualdade constitucional dos três poderes nacionais. E as garantias do Judiciário ficaram asseguradas com a sua independência. Há, porém, na instituição duas ordens de garantias a serem distinguidas: a pública, que fortalece a Justiça, frente aos dois outros poderes, e inspira confiança à opinião pública; e a particular, que assegura vantagens pessoais aos magistrados. Embora das garantias do primeiro grupo decorra a conseqüência das vantagens pessoais; não perdem contudo a razão política da sua significação. A irredutibilidade dos vencimentos não visa ùnicamente ao benefício dos juízes. Seu objetivo mais elevado é fortificar a ação do Poder Judiciário e impedir que o caráter de sua independência seja atingido pela ação dos outros dois poderes conjugados, quebrando dêsse modo a altivez necessária dos julgadores, ciosos do seu grande papel no plano constitucional.

A jurisprudência que, desprezado o conceito integral da irredutibilidade, admite a tributação, abre a porta ao aumento múltiplo do tributo, destruidor da garantia constitucional. Na antevisão do panorama político do futuro HAMILTON já dizia a propósito, quando eram definidos os princípios estruturais do federalismo, que o estudo da natureza humana convence de que um poder sôbre os meios de subsistência de um homem importa em um poder sôbre a sua vontade.30 E êsse enfraquecimento, capaz de ser verificado, conforme apertar o maquinismo da compreensão, é que o sentido público de cláusula da irredutibilidade visa a impedir. Mais para assegurar a instituição da Justiça, com proveito da sociedade, à qual ela serve, do que pròpriamente para beneficiar os juízes.

O caráter, que venha a perder as resistências e a comprometer os julgamentos, torna-se mais prejudicial à ordem pública do que ao ponto de vista individual. As conseqüências são muito mais avultadas. Deixando a continuidade fecunda de sua jurisprudência, a Côrte Suprema americana passou a ver compatibilidade dos vencimentos do Poder Judiciário com a incidência fiscal. Perdendo de vista a significação política funcional e o motivo superior de ordem pública, a Côrte encarou antes a individualidade do juiz como simples cidadão igual aos outros e, como tal, participe também dos encargos da administração, dada a tese da universalidade dos tributos.

Como se vê, não foi considerado o papel específico que o juiz exerce no equilíbrio constitucional do regime, deixando-o sem a necessária couraça de ânimo, de estar sempre firme e altaneiro na defesa dos altos interêsses nacionais postos sob sua guarda e vigilância. Trata-se com certeza de uma jurisprudência transitória, que cairá diante de um caso que focalize o perigo nacional que ela representa. No mal-entendido das atitudes judiciárias pelos outros dois poderes, à decretação de um tributo sôbre os vencimentos da Justiça, poderão seguir-se outras taxações, sob o pretexto de tratar-se de lei geral abrangente de todo o funcionalismo público. A represália é sempre encoberta, e, assim, os objetivos são alcançados por via indireta. Êsse desfecho na vida administrativa do País não pode ter justificativa num regime constitucional que faz da irredutibilidade de vencimentos um dos fortes baluartes da independência da Justiça, sob a qual repousam não só a segurança dos direitos comuns do cidadão, como também o destino dos direitos políticos. Além do mais, o poder que interfere diretamente no reconhecimento e na estabilidade dos poderes genuìnamente políticos não pode ficar na dependência direta de expedientes dos representantes dêsses dois poderes, sujeito à diminuição progressiva dos seus vencimentos.

Seria a violação do equilíbrio político dos poderes constitucionais, e o mais grave fator de enfraquecimento da confiança coletiva na eficácia das instituições vigentes. E si do povo que perder a confiança no valor da sua Justiça!

Com tôda autoridade, interrogou RUI BARBOSA: Por que, em relação ao Supremo Tribunal, estabeleceu-se a imunidade a respeito do impôsto? Porque se êste Tribunal perder a sua independência, não poderá ser digno de sua missão, êle não o poderá desempenhar com utilidade e eficácia; porque, se êste Tribunal perder a sua independência, terá, ipsofacto, perdido o seu caráter de alta magistratura, não poderá afrontar as dificuldades de sua melindrosa missão.31

A magistratura nacional atravessa uma fase interrogativa, que está a exigir a mais alta e serena reflexão, um gesto de salvamento e de patriotismo, a fim de repor o sentido constitucional do art. 95, alínea c, e que recoloque o Poder Judiciário no seu elevado plano. Com isso, menos ganharão os seus representantes, do que o povo brasileiro e os próprios poderes políticos da República. É preciso, a bem dos interêsses gerais, não modificar a estrutura moral e constitucional do Judiciário.

CASTRO NUNES, escrevendo, em 1943, o nosso maior livro sôbre o Poder Judiciário, assim encarou o problema, através da sinuosidade com que se pretendeu inovar no assunto. Mas, em meio às dúvidas e opiniões suscitadas, inclusive a sua, tem êle esta exata expressão dominante no rigor da hermenêutica, e aplicável, no momento atual; em tôda sua evidência:

Os tetos vigentes

Interpreta-se a Constituição pelos princípios gerais em que ela assenta e pela boa-fé que terá presidido à preceituação. Se ela estabelece a irredutibilidade como uma garantia da fixidez dos vencimentos da magistratura, será êsse o princípio dominante que há de guiar o intérprete. Qualquer redução fraudulenta, ainda que sob a forma de impôsto, estará excluída do razoável entendimento do texto. O tributo particularizado aos vencimentos dos magistrados teria realizado o que a garantia visa evitar, a hostilidade que estaria facultada ao legislador na escala dessa particularização inutilizando a garantia. O que esta tem em vista é a independência da função e é por êsse objetivo que se terá de medir o seu alcance.32

De certo que o constituinte podia ter suprimido a cláusula de irredutibilidade dos vencimentos da magistratura e retirado uma das principais garantias de sua independência. Romperia a tradição, suspenderia nesse particular a evolução do País, num retrocesso à instituição do primeiro Império, em que eram deficientes as suas prerrogativas. Mas, desde que manteve, para o bem da nação, o privilégio da irredutibilidade, ainda que tenha tido o constituinte a idéia de gravar-lhe os vencimentos, a expressão empregada para êsse fim não pode desfigurar a significação daquela garantia; tem de ser-lhe dado o sentido compatível com a primeira e nunca o de anulá-la. É que, segundo FERRARA, o intérprete deve apreciar a norma do seu valor objetivo e em conexão com o sistema do direito.33

Desde que o constituinte manteve a forma clássica da federação, com os seus três poderes independentes e harmônicos, para cessar êste, seria preciso alterar aquela forma. E se houve apenas intuito, impròpriamente mal expresso, vale a lei em seu contexto e seu sentido antigo. Não é só a intenção que faz a norma legal, ou que a modifica. É preciso que o pensamento saia perfeito e claro, sem desfigurar o sistema a que pertence. É a vida dos textos que se aplica, não tendo valor a suposta vontade do que cogitou o legislador, no trabalho de elaboração da lei, sem dar-lhe maior consistência.34

Mantida pelos constituintes de 91, 26, 34 e 46 a irredutibilidade dos vencimentos da magistratura, a cláusula da sujeição aos impostos gerais não lhe poderá ter aplicação, por importar incidência diminutiva, o que seria uma incoerência que exclui a admissão. Para conciliar os textos, ter-se-á de compreender aquela expressão como visando a tôdas as outras fontes de renda dos juízes, menos a que provém do exercício funcional. Descrevendo da eficácia do texto, disse IVAIR NOGUEIRA ITAGIBA que a Carta de 34 manteve o princípio da irredutibilidade dos vencimentos, os quais ficavam, todavia, sujeitos a impostos. A de 1946 apenas acresceu o qualificativo gerais. Parece, acrescenta o autor, que o objetivo do legislador foi burlar a garantia da irredutibilidade, lançado impôsto peculiar aos vencimentos da magistratura. O tributo particularizado ao estipêndio dos juízes seria talvez uma maneira de atemorizar a justiça, afundada pelo pessoalismo do govêrno de arbítrio a uma insegura e precária situação.35

Os juízes podem ser professôres percebendo também vencimentos dos cofres públicos, além de proprietários, depositantes de economias próprias, acionistas e sôbre tôdas essas fontes de renda terá de incidir a tributação fiscal. Desse modo, a compreensão constitucional mostra-se perfeita de acôrdo com a realidade do sistema político adotado e com o passado comportamentos dos poderes públicos.

Houve, é certo, tentativa para forçar os textos constitucionais, porém, quando o Supremo Tribunal os definia, restabelecendo a irredutibilidade, os outros poderes rendiam-se à interpretação do órgão competente, e a harmonia do regime prosseguia para maior fortalecimento da opinião pública. Sem mudar os textos básicos, insistiram o Legislativo e o Executivo na tributação temerária, com o reconhecimento da sua procedência pelo Judiciário, o que faz perder a beleza clássica do nosso sistema político, enfraquecer a confiança na Justiça, retirar dos seus juízes a mais forte razão de ser de sua independência, dificultar os gestos nobres de sua conduta. O fato de haver a Côrte Suprema americana mudado de atitude, não deve impressionar o espírito judiciário brasileiro. Além de poderem aquêles novos julgados constituir apenas uma das periódicas mudanças de orientação interpretativa, peculiar, aliás, aos tribunais, bem outras são, quanto a nós, as condições de ambiência e diversa a constituição da raça. Para benefício nosso, das instituições consolidadas e da confiança dos poderes públicos, o Judiciário deve ser sempre o terreno neutro, respeitado e insuspeito. Nêle todos os direitos têm a sua solução, qualquer que seja a natureza, política, funcional ou patrimonial, sendo de tôda conveniência que se o conserve como as Constituições o têm arquitetado e até agora conservado, salvo nos temporários eclipses de fôrça porque a Nação tem passado.

Recapitulando. O ministro CARLOS MAXIMILIANO mostra as diversas tentativas feitas entre nós para levar o impôsto aos vencimentos da magistratura, em 1879 e 1914, quando os protestos do Supremo Tribunal Federal fizeram eco, impondo a suspensão das medidas administrativas, bem como os seus arestos impuseram aos Estados coibirem-se relativamente às suas Justiças.

Entretanto, a seu ver, os impostos gerais abrangem todos os juízes, incidindo assim sôbre os seus proventos funcionais.36

Tais impostos não têm, contudo, o poder absoluto de universalidade. Se certas exceções a própria Lei Magna consigna no art. 203, como há de ser aplicada ao Poder Judiciário, cujos vencimentos cláusula expressa dispõe sôbre a sua irredutibilidade? Êste ponto chocante é que está a pedir a serena reflexão dos exegetas, numa exata revisão dos princípios constitucionais. Sem a supressão dos dois atributos basilares de independência e irredutibilidade, é inoperante para o Judiciário a regra geral da incidência fiscal sôbre os vencimentos do funcionalismo público. A garantia integral da percepção dos vencimentos judiciários reside na construção dos três poderes, de modo a resguardar a magistratura da ação intimidativa do Legislativo e do Executivo. A interpretação que se desprenda do art. 38 e atente ùnicamente para a pretendida generalidade, a que alude o art. 95, alínea c, da Constituição, burlará o atributo da independência do Judiciário e concorrerá para arruinar no espírito público a fonte de confiança no resguardo dos seus direitos.

Tudo indica, porém, que não há de tardar o retôrno do Poder Judiciário, ao pensamento constitucional do Continente americano, nos moldes tradicionais da interpretação verdadeira, a bem da segurança política e do interêsse público ligado à organização da Justiça.

________

Notas:

1 “L’Esprit des Lois”, tit. VI, cap. VI.

2 “El Federalista”, págs. 343-344, trad. de GUSTAVO VELASCO.

3 “Os Vencimentos dos Juízes no Regime Americano”, págs. 37 a 43.

4 HORÁCIO A. POVIÑA, “Manual de la Constitución Argentina”, nº 868.

5 VEDIA, “Constitución Argentina”, nº 630.

6 VEDIA, ob. cit., nº 530.

7 “Do Poder Judiciário”, parág. 7º.

8 Acórdãos de 4 e 10-7-1929, in “Rev. de Direito”, vol. 96, págs. 301 a 361.

9 Ob. cit., págs. 29 a 35.

10 In KELLY, “Anuário de 1930”, nº 888.

11 “Anais da Assembléia Constituinte”, volume X. págs. 559 a 607.

12 “Anais da Assembléia Constituinte”, volume XVIII, pág. 206.

13 “Anais da Assembléia Constituinte”, volume III, pág. 478.

14 “Anais”, III, pág. 482.

15 “Anais”, X, pág. 664.

16 “Anais”, XX, pág. 270.

17 “Anais”, XX, pág. 271.

18 “Comentários à Constituição de 1937”, I, pág. 613.

19 PONTES DE MIRANDA, ob. cit., I, página 614. Idêntica argumentação manteve o mesmo autor nos “Comentários à Constituição de 1946”, II, págs. 160-162.

20 Carta Política de 1937, arts. 96, parágrafo único, e 180.

21 In IVAIR NOGUEIRA ITAGIBA, “O Pensamento Universal e a Constituição Brasileira”, II, pág. 409.

22 “La Republique Americaine”, pág. 331, trad. de MILLER.

23 “Princípios Constitucionais”, pág. 132.

24 “Rev. de Direito”, vol. 96, pág. 336.

25 “Vencimentos dos Magistrados”, in “Jurisprudência” 49, pág. 363, referido por PEDRO DOS SANTOS, cap. cit., págs. 45-46.

26 “Comentários à Constituição”, pág. 232.

27 KELLY, “Manual da Jurisprudência Federal”, 1º sup., nº 1.532.

28 POVIRA, ob. cit., nº 857.

29 Em 1920 por exemplo, no caso Evans v. Gore (253, United States Reports”, 295), a Côrte Suprema declarou isentos os vencimentos dos juízes federais do impôsto de renda, em atenção à cláusula constitucional garantidora da irredutibilidade de vencimentos. Posteriormente, seguiu-se idêntico entendimento (Milles v. Graham 268 U. S. 501, 1925).

Entretanto, essa jurisprudência foi reformada em 1939, no caso O’Malley, Collector of Internal Revenue v. Woodrough, em que a Côrte declarou a constitucionalidade do tributo sôbre a renda aplicado aos vencimentos dos juízes. Essa tributação não foi considerada como diminuição inconstitucional do que era devido aos juízes, nem como invasão da independência do Judiciário (327, U. S. 277).

Esta nota é devida à brilhante ensaísta de assuntos jurídicos e constitucionais americanos, Dra. LÊDA BOECHAT RODRIGUES, autora de “A Côrte Suprema, sua jurisdição e o atual Regimento Interno”; “A Côrte Suprema e o Govêrno dos Juízes”; e “A Côrte Suprema e o Contrôle da Constitucionalidade das leis”, separatas da “REVISTA FORENSE”, vols. 159 e 161, de 1956, e vol. 165, de 1956. É também tradutora e anotadora da magnífica obra do grande juiz BENJAMIN N. CARDOZO, intitulada “A Natureza do Processo e a Evolução do Direito”, em 2ª edição.

30 “O Federalista”, cap. 79.

31 “Comentários à Constituição”, IV, página 62, edição HOMERO PIRES.

32 “Teoria e Prática do Poder Judiciário” págs. 102-107.

33 FRANCESCO FERRARA, “Interpretação das Leis”, nº 8, trad. de M. DE ANDRADE.

34 CARLOS MAXIMILIANO, “Hermenêutica e Aplicação do Direito”, nº 35.

35 IVAIR NOGUEIRA ITAGIBA, ob. cit., II, pág. 40.

36 “Comentários à Constituição de 1946”, II, nº 410.

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