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A realidade tributária exige confiança e não apenas lei

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A realidade tributária exige confiança e não apenas lei

DIREITO TRIBUTÁRIO

FISCO

Eduardo Muniz Machado Cavalcanti

Eduardo Muniz Machado Cavalcanti

29/05/2025

A relação entre Fisco e contribuinte deve ser compreendida como um fenômeno social denso, cuja legitimidade não se esgota na legalidade, mas se afirma na qualidade da relação que o Estado estabelece com quem sustenta sua existência

(Artigo do sócio Eduardo Muniz publicado no Valor Econômico)

A visão clássica da relação jurídico-tributária, como vínculo normativo binário, definida a partir da imputação normativa, de cunho obrigacional e prestacional, precisa ser repensada, ou talvez reconstruída, especialmente em tempos de alta complexidade fiscal, crescente judicialização e crise de confiança nas instituições. A compreensão do Direito Tributário, sob uma perspectiva estritamente dogmática, ancorada na tradicional relação Fisco versus contribuinte, como destinatário passivo de comandos legais ou aquele como mero aplicador de sanções, revela-se insuficiente para compreender a realidade sofisticada e concreta das interações tributárias na atualidade.

A decisão de pagar tributos, ao contrário do que sugere o paradigma normativo, não é puramente racional, nem exclusivamente jurídica, envolve comportamentos situados no tempo, entrelaçados por emoções, normas sociais, percepções de justiça, confiança, narrativa comunicacional e expectativas de reciprocidade, além de normas culturais, experiências prévias com o próprio Estado, percepções de justiça fiscal e expectativas de reciprocidade. As decisões fiscais são influenciadas por fatores como confiança nas instituições, moralidade, legitimidade percebida da tributação e, até mesmo, pela linguagem utilizada na comunicação oficial. Ignorar esses elementos equivale a ignorar a realidade do comportamento humano e comprometer a eficácia do sistema tributário. É justamente isso que venho estudando, mudar o eixo dimensional: da norma para a relação e, com isso, repensar a arquitetura dogmática e os institutos que lhe orbitam no universo contemporâneo.

A relação jurídico-tributária, como relação humana que é, interdependente, sobrevive por meio de múltiplos fatores para adquirir legitimidade. Não é da normatividade pura que se constrói o direito, inclusive o de cobrar tributos, mas do reconhecimento mútuo, da distribuição equilibrada de poder, da responsabilidade compartilhada, dos espaços de escuta e de deliberação. Sem descuidar da própria cientificidade imanente ao Direito Tributário, a lógica do comando e controle não é abandonada, mas é irreconhecível como único paradigma de legitimidade do tributo, e, portanto, é preciso redesenhar os instrumentos jurídico-tributários à luz da realidade comportamental dos contribuintes e das próprias instituições, ou seja, principalmente conceber a fiscalização como um fenômeno relacional e não apenas como punição. A partir dessa reconstrução teórica, instituir políticas tributárias mais eficazes e mais justas.

O Direito não opera no vácuo, na simples mecanicidade da subsunção entre a norma abstrata e geral ao fenômeno concreto, mas entre pessoas reais, com emoções, que precisam, inclusive, confiar para cumprir e, por isso, tributar não é apenas exigir, mas também relacionarse. A base do Direito não é a norma, mas a relação que o constrói. Por exemplo, não é da norma que sobressai o direito à guarda compartilhada, mas das relações preexistentes entre pais e filhos, as quais fundamentam o Direito de Família e daquele instituto dogmático.

Do mesmo modo, não é da norma que emana o dever de indenizar, mas da relação de confiança, expectativa legítima e responsabilidade mútua que se estabelece entre indivíduos numa sociedade. O Direito das Obrigações não nasce do artigo do Código Civil, mas da realidade relacional de promessas feitas, vínculos assumidos, danos causados e confiança violada. A norma apenas reconhece, organiza e dá forma jurídica a algo que já é, antes de tudo, uma experiência relacional. É por isso que, também no campo tributário, a relação entre Fisco e contribuinte deve ser compreendida como um fenômeno social denso, cuja legitimidade não se esgota na legalidade, mas se afirma na qualidade da relação que o Estado estabelece com quem sustenta sua existência.

A visão ocidental dominante, inspirada por Kant, Locke, e o liberalismo clássico parte da ideia de indivíduos isolados, autossuficientes e racionais, cuja concepção desconsidera a realidade da interdependência social e enfraquece o papel da comunidade e das instituições no desenvolvimento da autonomia. Por isso, a autonomia deve ser vista como a capacidade de agir dentro de relações que promovam respeito, reconhecimento e apoio mútuo e não daquelas que oprimem, silenciam ou controlam.

O Direito não pode ser pensado como mera contenção da liberdade alheia, mas o de estruturação de relações justas e capacitantes, por meio das quais os indivíduos possam se desenvolver em sua autonomia relacional, inclusive com o Estado. Não é apenas um aparato normativo impositivo, mas incute nele, especialmente nas atuais sociedades complexas e evolutivas, a compreensão de tecnologia institucional de convivência, cuja legitimidade repousa na qualidade das relações que institui e promove. As relações jurídicas fundadas exclusivamente na autoridade, extraída da imperatividade da lei, bem como na unilateralidade, tendem a reproduzir desigualdades e desconfiança, enquanto aquelas baseadas em reconhecimento, reciprocidade e participação constroem laços de pertencimento e coobrigação social, fundamentais para sustentar tanto o ideal democrático quanto a própria eficácia normativa. A relação precede a norma porque é da experiência humana relacional que sobrevém o Direito. E é, à altura dessa complexidade, que ele deve responder.


Fonte: bentomuniz.com.br

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