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Trabalho autônomo é melhor do que ter emprego?

Ana Frazão
11/07/2025
Recente pesquisa do Datafolha, que ganhou grande repercussão na imprensa, mostrou que, para 59% das pessoas, o trabalho autônomo é melhor do que ter emprego[1]. Outros achados importantes da pesquisa foram:
- desde 2022, cresceu de 21% para 31% o número de pessoas que consideram mais importante ganhar um salário maior do que ter um vínculo formal;
- o número de pessoas que valorizam a CLT mesmo com rendimento menor caiu de 77% para 67%;
- a preferência por trabalhar por conta própria aparece em todas as faixas etárias e é maior entre os jovens: entre os que têm entre 16 a 24 anos, 68% acham melhor ser autônomo;
- mulheres e idosos priorizam o vínculo formal;
- há um evidente componente político na opção, pois eleitores do PT tendem a priorizar o vínculo formal em proporção maior do que eleitores do PL.
Em tempos em que o mundo do trabalho vem passando por grandes transformações, com a presença cada vez maior de fenômenos como a informalidade, a pejotização, a terceirização e a plataformização, esses resultados podem ser interpretados como o reconhecimento, pela própria população, de que o trabalho formal e a CLT, além de ultrapassados, não correspondem mais às expectativas das próprias pessoas a quem tais regras foram destinadas.
Não é surpresa que o editorial da Folha, cujo título é “CLT em baixa”, aproveita a oportunidade para criticar a legislação trabalhista, defendendo a necessidade de maior flexibilização para os contratos, sob o fundamento de que os próprios trabalhadores hoje preferem atuar por conta própria do que estarem sujeitos a uma “tutela sindical obsoleta e ineficaz”.
Entretanto, algumas ponderações precisam ser feitas antes de validarmos o resultado desse tipo de pesquisa e de considerarmos que ele é capaz de refletir a escolha autônoma da população. Além da observância dos critérios estatísticos formais, é fundamental perquirir sobre várias questões, a começar pela forma como as perguntas foram feitas, pois se sabe que o enquadramento da questão (efeito framing) pode induzir a determinadas respostas.
Ainda é preciso averiguar se as pessoas entrevistadas sabem realmente do que estão falando, ou seja, se podem racionalmente opinar sobre as alternativas apresentadas – trabalho subordinado ou trabalho autônomo – entendendo todas as consequências de cada uma. Em outras palavras, a questão aqui é saber se as pessoas são capazes de responder a tais perguntas com a cognição e o conjunto de informações necessárias para a orientação racional de suas escolhas.
Tal aspecto é importante porque há muito que se sabe que os pressupostos da teoria econômica tradicional – agentes racionais e informados – não se encontram presentes no mundo real. Tal fato é particularmente importante no Brasil, diante do alto percentual de analfabetismo funcional e do baixo percentual de pessoas que podem ser consideradas no último grau de letramento linguístico e matemático[2].
Em complemento a isso, a economia comportamental é repleta de estudos que apontam para as dificuldades de escolha quando as decisões envolvem sacrifícios presentes – como os encargos trabalhistas que incidem sobre a remuneração do trabalhador com vínculo formal – em prol de benefícios futuros – como a aposentadoria e outras garantias trabalhistas.
Com efeito, é disso que se trata quando se apresenta tal opção para as pessoas: em muitos casos, a escolha, de forma simplificada, é entre ganhar menos no presente, mas ter uma série de garantias, inclusive de aposentadoria no futuro, ou ganhar mais no presente sem ter as mesmas garantias no futuro.
Nesse sentido, será que os respondentes da pesquisa consideraram esse tradeoff? O confronto entre o presente e o futuro lhes foi apresentado? Mais do que isso, considerando os baixos ganhos de muitos trabalhos informais, com base em que as pessoas estão dispostas a abrir mão das garantias do vínculo formal, já que a contrapartida de tal opção não é necessariamente uma maior remuneração?
Ainda que todos os aspectos do problema tivessem sido apresentados aos respondentes da pesquisa, fato é que aqui se tem importante exemplo de situação na qual as limitações de racionalidade das pessoas podem ser um complicador para a tomada das melhores decisões. Daí por que é imperioso que tais aspectos sejam considerados na interpretação dos resultados de pesquisas como essa.
No famoso livro Nudge[3], Thaler e Sunstein dedicam um capítulo ao tema (capítulo 6), mostrando que, pela teoria econômica tradicional, economizar para a aposentadoria é algo ao mesmo tempo elegante e simples: presume-se que as pessoas possam calcular quanto vão ganhar ao longo da vida e quanto vão precisar quando se aposentarem, de forma que podem racionalmente economizar o suficiente para que possam ter uma aposentadoria confortável sem se sacrificarem demasiadamente enquanto estão trabalhando.
Entretanto, para os autores, a questão envolve ao menos dois grandes desafios: (i) as pessoas teriam que ser capazes de resolver um complexo problema matemático, a fim de determinarem o que precisam economizar no presente para se aposentarem no futuro e (ii) as pessoas precisariam ter força de vontade para implementar esse plano.
Vale ressaltar que, em um país como o Brasil, até a questão da força de vontade para economizar para o futuro precisa ser colocada em perspectiva. Com efeito, para trabalhadores com baixo rendimento, o direcionamento total do ganho para as despesas imediatas acaba sendo uma necessidade, de forma que a opção de poupar para o futuro pode se mostrar, na prática, inviável.
De toda sorte, mesmo quando a opção de poupar para o futuro é viável, Thaler e Sunstein mostram que, em razão das limitações de racionalidade das pessoas, dificilmente isso ocorrerá caso elas tenham que decidir e implementar suas decisões por si mesmas. Daí a importância dos nudges, ou seja, de incentivos que façam com que as pessoas possam economizar para a sua aposentadoria, até porque há uma importante dimensão social dessas escolhas, tendo em vista que é do interesse de todos que haja mecanismos para assegurar a sobrevivência desses trabalhadores quando não mais puderem trabalhar por questões de idade ou de incapacidade.
Assim, fica claro que, quando se está diante de escolhas dessa complexidade, as pessoas não necessariamente adotarão as melhores decisões para si mesmas, o que abre a discussão para se saber se e em que medida o Estado deve protegê-las ou ao menos criar os devidos incentivos para que tomem as melhores escolhas.
Não bastassem as falhas de racionalidade, a economia das narrativas também pode explicar uma crescente preferência das pessoas pelo trabalho informal. Afinal, as pessoas fazem suas escolhas em contextos culturais e sociais próprios, sendo muito claro que, na atualidade, há todo um esforço de difusão da narrativa de flexibilização das regras de proteção do trabalho em prol da valorização da meritocracia e do empreendedorismo individual, ainda que mediante uma série de falácias[4]. Essa campanha tem sido tão bem sucedida que ser empregado celetista virou hoje ofensa entre os mais jovens[5].
Como já tive oportunidade de explorar em artigo anterior[6], a partir da obra de Shiller, as decisões econômicas nem sempre decorrem de incentivos ou respostas racionais, mas também se baseiam em narrativas que não necessariamente são lastreadas em evidências científicas. Na verdade, as narrativas, que podem ser inclusive anticientíficas, acabam tendo uma grande importância para os processos decisórios, na medida em que atendem à necessidade do cérebro humano de criar padrões, causalidades e regularidades, a fim de encontrar explicações simples para o mundo, mesmo quando isso não é possível a partir de um ponto de vista estritamente racional.
É aí que entra a importância do poder e da formação de narrativas. Como também já tive oportunidade de alertar[7], a guerra de narrativas é caracterizada pelo engajamento maciço de agentes poderosos na difusão das visões de mundo que lhes interessam, sem qualquer compromisso com as evidências ou com um debate público minimamente transparente e equilibrado.
Também não é demais lembrar o papel que a grande mídia apresenta na disseminação de narrativas. Na ausência de um pluralismo de visões, o que normalmente ocorre quando os meios de comunicação de massa são controlados por poucos, a mídia pode ser um excelente canal de propagação das narrativas das elites dominantes. Não é surpresa que, no Brasil, a grande mídia funcione como veículo de ortodoxia econômica[8].
Dessa maneira, não se tem como ignorar que os resultados de uma pesquisa como a do Datafolha precisam ser contextualizados dentro de um conjunto de ações que têm sido feitas para intencionalmente desproteger o trabalho[9], o que envolve também o controle das narrativas a partir de agentes econômicos e instituições financeiras diretamente interessados[10].
A maior prova da importância das narrativas – sobretudo as de conteúdo político – é que a pesquisa do Datafolha mostrou que são mais propensos a valorizar o trabalho por conta própria os simpatizantes do PL, partido de Bolsonaro: 66% contra 55% dos que têm simpatia pelo PT. Se estivermos fazendo o recorte por eleitores, as diferenças aumentam: 73% dos eleitores do PT valorizam o trabalho formal contra 54% do PL.
Tais constatações, longe de causarem surpresa, só revelam a complexidade dos processos decisórios envolvidos em questões como as apresentadas na pesquisa do Datafolha, demonstrando claramente que, em muitos casos, o componente político pode ser mais importante do que a avaliação serena, a partir da racionalidade econômica, das duas alternativas apresentadas ao respondente.
Todos esses aspectos impõem um cuidado adicional na interpretação dos resultados de pesquisas como essa. A pergunta a ser feita é: em que medida eles realmente refletem as opções autônomas, racionais e informadas dos respondentes e em que medida são fruto das inúmeras limitações de racionalidade, das assimetrias informacionais e das narrativas dominantes?
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NOTAS
[1] Trabalho autônomo é melhor que ter emprego para 59%, mostra Datafolha. Levantamento mostra também que, desde 2022, importância dada a carteira assinada, mesmo com salário menor, caiu dez pontos. Folha de São Paulo. Edição de 21.06.2025. Página A-11.
[2]https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/analfabetismo-funcional-e-riscos-de-manipulacao
[3] THALER, Richard; SUNSTEIN, Cass. Nudge. Improving decisions about health, wealth and happiness, Penguin Books, 2009.
[4]https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/a-tirania-do-merito
[5]https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2025/03/13/era-sonho-virou-ofensa-por-que-os-jovens-tem-medo-de-ser-clt.htm
[6]https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/por-que-o-mercado-anda-nervoso-com-as-recentes-declaracoes-de-lula
[7]https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/ainda-sobre-a-reacao-do-mercado-as-declaracoes-de-lula
[8]https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/a-grande-midia-como-veiculo-da-ortodoxia-economica
[9]https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/mercados-de-trabalho-ate-quando-seguiremos-insensiveis-a-assimetria-de-poder
[10]https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/mercado-de-ideias-economicas