
32
Ínicio
>
Clássicos Forense
>
Revista Forense
>
Trabalho
CLÁSSICOS FORENSE
REVISTA FORENSE
TRABALHO
A tendência liberal e a socialista nas relações de trabalho, de Javert De Sousa Lima

Revista Forense
31/03/2025
SUMÁRIO: 1. Aspectos gerais. 2. O concurso Rossi. 3. A inclinação socialista de CORNIL. 4. A doutrina liberal de VALLEROUX. 5. O contrato de sociedade. 6. Crítica. 7. A doutrina social católica. 8. O socialismo e a caridade cristã. 9. As leis operárias latino-amerinas. 10. Legitimidade das restrições à liberdade contratual.
1. Aspectos gerais
Se considerarmos as doutrinas que do último quartel do século XVIII ao início do atual, têm surgido, no campo econômico, apaixonando os espíritos e separando-os em várias escolas, desde os fisiocratas até os anarquistas, observaremos que, em derradeira análise, duas são, realmente as tendências que orientam todos os grandes movimentos de idéias.
De um lado é a tendência liberal, e, de outro, a socialista. É o que, admiràvelmente, mostram CARLOS GIRE e CARLOS RIST,1 quando, na introdução ao seu estudo da história das doutrinas econômicas, declaram que há, nessa evolução, alguma coisa semelhante a um certo balanço rítmico: a doutrina clássica surge em primeiro lugar, e, logo, a vemos retroceder sob o impulso de doutrinas mais ou menos socialistas, para reaparecer, tempos depois sob formas novas, conforme o exige a tendência pública.
No que toca à questão operária, interessa, sobremaneira, examinar-se como vêm atuando essas duas grandes correntes de orientação. Sobretudo no estudo e na fixação das relações jurídicas entre os patrões e os operários, e no da intervenção do Estado nesse domínio, profundas e radicais têm sido as divergências que a respeito vêm separando os que de tais matérias se ocupam. Ora assistimos de um lado a defesa intransigente da liberdade individual, ora vemos, de outro, a luta sem tréguas em favor da intervenção do Estado e das limitações crescentes a serem impostas pela lei à chamada autonomia individual.
2. O concurso Rossi
Assim é que, desde 1894, encontramos bem definidas essas duas correntes no que diz respeito à intervenção do Estado nas relações de trabalho.
Repetindo-se, então, o concurso Rossi, promovido pela Faculdade de Direito de Paris, sôbre o tema “Da locação de Serviços. Estudo sôbre as relações jurídica entre os patrões e os operários empregados na indústria”, 10 foram os candidatos que se apresentaram, dos quais dois lograram obter o prêmio instituído: GEORGES CORNIL e HUBERT VALLEROUX.
Não há mister encarecer o alcance dêsse concurso. Nêle se debatia tese básica de legislação do trabalho.
O estudo da maneira como se forma o vínculo obrigacional, as suas conseqüências para as partes, a caracterização dessa relação jurídica, as limitações que se impõem à liberdade contratual, tudo isso constitui, inegàvelmente, o âmago mesmo das reivindicações proletárias no mundo contemporâneo.2
Ao ser conferido pela Faculdade o prêmio Rossi o professor FERNAND FAURE teve ocasião de assinalar as duas tendências que caracterizavam as obras laureadas, em palavras que merecem ser transcritas: “VALLEROUX”, diz êle, “é um liberal decidido. Não admite, senão a título excepcional, a ingerência do Estado nas relações do patrão com o operário. O operário adulto, sendo capaz pode e deve ficar encarregado da defesa de seus interêsses nas relações com o patrão. Não é um incapaz que o Estado deva ter sob tutela, cercando de uma proteção que não é senão uma das formas de escravidão econômica. Não é apenas em nome de sua dignidade, mas também em nome de seu interêsse, de seu interêsse puramente econômico, que se faz mister garantir ao operário adulto um regime de liberdade, que cumpre também, pô-lo ao abrigo das tiranias, socialistas, Venham de onde vierem, do Estado, da comuna, dos sindicatos ou de qualquer outra parte. Que a lei seja igual para todos, que a ninguém conceda nem favores, nem privilégios de espécie alguma, e a liberdade conduzirá o operário à melhoria gradual de sua condição social”.
“Para CORNIL”, acrescenta o professor FAURE, “a igualdade de direito pode existir, em rigor, entre o operário adulto e o patrão. Mas não pode haver igualdade de fato. Premido pela necessidade de viver, o operário se encontra numa condição forçosamente inferior diante do patrão, com quem trata. E em não existindo igualdade de fato entre as duas partes, também não haverá liberdade para a parte mais fraca. Esta pretensa liberdade não é mais do que uma aparência e um engano. Na realidade, o operário é uma vítima que o patrão pode explorar à vontade. Como remediar semelhante estado de coisa? Cumpre contar com as instituições patronais, com as coalizões, com as greves, com os sindicatos? CORNIL não pensava dêste modo. Só a intervenção da lei, da autoridade, lhe parece capaz de estabelecer e de conservar o equilíbrio entre o patrão e o operário”.
Depois dessas palavras o professor FAURE justifica a concessão dos prêmios a duas teses assim tão diversas, declarando que a Faculdade da mesma forma que não sujeitava os candidatos à sua opinião, também procurava deixar a mais ampla liberdade a quantos comparecessem perante ela. Verdade é que, depois, êle se apressa a definir o seu ponto de vista do debate entre os partidários e os adversários da liberdade no concernente ao contrato de trabalho, manifestando-se, francamente, a favor da doutrina liberal de VALLEROUX e condenando o socialismo em que se inspirara o trabalho de CORNIL, o qual considera de acôrdo com a opinião de TOCQUEVILLE, como uma nova fórmula de servidão.
3. A inclinação socialista de CORNIL
Fixemos a orientação geral da obra de cada um dêsses autores, atendendo a que nelas se encontram as duas principais tendências no tocante à posição do Estado em face da liberdade contratual.
CORNIL3 publicando, posteriormente, em livro, o trabalho premiado, defende-se das críticas que lhe foram levantadas pelo Prof. FAURE, dizendo que o seu objetivo fôra referir-se, de modo imparcial, aos fatos, cuja realidade não podia ser posta em dúvida.
Retrata, em têrmos candentes, a desigualdade de fato existente entre o patrão e o operário.4 Para êste a celebração do contrato de locação de serviços é uma questão de vida ou de morte, pois que a existência do operário depende da obtenção de trabalho. Acresce que inúmeras circunstâncias de fato restringem a liberdade do operário na escolha de patrão.
Não nega5 que a liberdade do patrão sofre, também, limitações, pois que não pode ficar sem operários.
Desta, limitação, recíproca, porém, não resulta equilíbrio, porque: ao passo que o operário não pode subsistir à falta de trabalho, o patrão, pelas reservas de que dispõe, pode resistir à imposição do operário e, mesmo, procurá-lo em outro meio.
Por tudo isso, chega à conclusão da desigualdade de fato existente entre as partes contratantes na locação de serviços: “um saco de dinheiro e um estômago”, como diz DU CELLIER, por êle citado.
Critica o Cód. Civil francês que, ao regular a locação de serviço, não teve em vista essa desigualdade de fato. A chamada “questão social” nasceu, para êle principalmente desta contradição: o fato revela a desigualdade entre o patrão e o operário e o direito proclama a igualdade absoluta entre ambos.
Adverte que os socialistas propugnam por um sistema cooperativo que ligando, intimamente, o capital e o trabalho, fará desaparecer a distinção entre o patrão e o operário, aspiração essa, porém, a que não dá o seu apoio. Para êle, uma vez que o contrato de trabalho existe, e que, no momento, se não pode aconselhar o seu desaparecimento, o que cabe fazer é melhorá-lo.
Examina, a propósito, as várias soluções lembradas para resolver os inconvenientes nascidos da desigualdade de fato. Aqui, têm os patrões procurado abrandar os males oriundos da situação de inferioridade em que se acham os operários, procurando, por diversos meios, melhorar o seu padrão de vida. Ali, são os próprios operários que tudo fazem para estabelecer um nível de igualdade nas suas relações com os patrões. Daí, as coalizões e as greves. Por fim, e não tendo correspondido à expectativa as soluções anteriormente tentadas, vieram os sindicatos mistos que, igualmente, não obtiveram êxito.
De tudo isso, conclui ser indispensável a intervenção do Estado, a fim de que, na locação de serviços, se conserve o equilíbrio entre o patrão e o operário.
4. A doutrina liberal de VALLEROUX
Em campo oposto à doutrina sustentada por CORNIL, encontramos, como de início dissemos, as diretrizes que orientam a tese liberal defendida por VALLEROUX. Logo no comêço do seu livro, adverte que é um trabalho de defesa da liberdade individual contra a opressão coletiva, pois que se não deve perder de vista que colocar o contrato de trabalho à mercê dos sindicatos operários é o objetivo em que se concentra o esfôrço dos partidários da intervenção do Estado.
A essas associações que revelam um espírito opressivo e contrário ao bom entendimento dos operários e dos patrões, dar-se-ia todo poder para estabelecer as condições do contrato entre êles, e estabelecê-las soberanamente, a fim de obrigar os contraentes.
É uma forma de predomínio da maioria, de uma maioria vacilante e conduzida por alguns mentores, impondo a sua vontade em assuntos econômicos, sem deixar nenhum refúgio à independência individual. Nesse fato, vê o perigo contra que, na sua opinião, é preciso lutar sem desfalecimento, pois nada compreende sem liberdade: “Je demande que la liberté ne soit pas uniquement dans les inscriptions, dans les discours au fronton des monument’s publics, mais qu’elle se trouve dans les lois, dans la manière de contracter, dans la vie de chaque jour.6
Concluindo, lembra, ainda uma vez, que o pensamento por que se norteou foi o de que, no contrato de trabalho, a liberdade é o esteio mestre, em que se não deve tocar senão em raras ocasiões.
5. O contrato de sociedade
Do movimento de fluxo e refluxo dos princípios radicais, retroassinalados, surgiu, modernamente, a concepção de que no contrato de trabalho há uma sociedade para produção, distribuição e venda.
EMILIO CHATELAIN é um dos seus paladinos. Para ADOLFO POSADA, que traduziu para o espanhol, o livro de CHATELAIN, encontra-se a explicação de semelhante concepção na teoria marxista, de que o “trabalho é o título originário da propriedade”.
Eis, com efeito, a argumentação desenvolvida por POSADA em defesa dêste assêrto: se, para CARLOS MARX, o trabalho cria o valor, para CHATELAIN os operários – da indústria – criam as coisas.
Para MARX, ao trabalhador deve pertencer o produto integro do trabalho, cumprindo que a sociedade se forme de modo que todo valor do produto pertença a quem o cria; e CHATELAIN sustenta a mesma coisa, quando afirma que se não pode prescindir da relação de propriedade entre o operário e a coisa que êle cria.
Daí chega à conclusão de que o contrato de trabalho deve ser considerado como uma sociedade, resultado que é de uma cooperação, pois que, mediante êle, o patrão e os operários põem em comum dinheiro, bens e trabalho para obter lucros.
A explicação do recebimento antecipado do salário, de acôrdo com essa doutrina, encontra-se na venda que o operário faz, premido pela necessidade, da sua cota de lucros, futura, que passa a ser do patrão.7
PEREZ BOTIJA, em estudando a natureza do contrato de trabalho, esquematiza, excelentemente, em três grupos distintos as orientações doutrinárias que aí se apresentam: I) a que, com BARASSI, PLANIOL, BUREAU, RAMIREZ GRONDA e outros, pretende situá-lo nos velhos quadros contratuais; II) a que propugna, notadamente com CASTAN e GALLART FOLCH, por uma figura de contrato sui generis; e III) a que, com a doutrina alemã de MOLITOR à frente, lhe nega o caráter contratual.8
Foge à finalidade que nos propusemos nestas notas ligeiras o exame dêste momentoso assunto, sem embargo da enorme sedução de que se reveste.
O que nos cabe tão-sòmente observar é que o ponto de vista de CHATELAIN se enquadra à justa na primeira direção doutrinária supra apontada, ad instar do que sucede com CARNELUTTI quando advoga a existência, no contrato de trabalho, de uma verdadeira compra e venda de energia humana.
Do ponto de vista econômico, verifica-se a improcedência da doutrina em foco com o quase desuso da parceria, que é fenômeno jurídico semelhante e em que avulta o aspecto de sociedade entre as partes; e, do ponto de vista jurídico, a inexistência, no contrato de trabalho, do jus fraternitatis ou aflectio societatie torna, impossível a conceituação do mesmo como de sociedade.9
Parece-nos, aliás, ligeiro o assêrto de que esta concepção econômica do trabalho seja uma resultante necessária da teoria marxista, pois que PIO XI também a sustentou quando, na admirável encíclica – “Quadragésimo Anno”- postulou que, na medida do possível, o contrato de trabalho devia ser: “temperado um pouco com o contrato de sociedade, conforme já se principiou a fazer em diversas maneiras, com não poucas vantagens para os mesmos operários e patrões”.10
Nessa corrente de idéias, vamos encontrar VALVERDE, SEVERINO AZNAR e os que, geralmente, se filiam à sociologia católica.
Não é, na verdade, possível acusar-se a Igreja de marxismo!
Por outro lado, em face do nosso direito positivo, verifica-se, fàcilmente, que qualquer intenção de aceitar semelhante doutrina, brigaria, frontalmente, com o preceito expresso do art. 1.122 do Código Civil brasileiro à uma porque não existe, no contrato de trabalho, a transferência da energia humana, inseparável da pessoa do trabalhador, à outra porque se não trata, no caso, de propriedade de coisa corporal, característica essa do domínio invocado naquela disposição.
O que há, como o mostra BOIGELOT, é, apenas, o desejo de mitigar-se o contrato de trabalho, interessando-se o operário na produção em que colabora:
“Le contrat mixte: salariat-société est dono, de sa nature, meilleur que le contrat de salariat pur“.11
6. Crítica
Nenhuma das duas soluções propostas, quer pela escola liberal, quer pela escola socialista, pode ser aceita em seus extremos.
A primeira escola, crendo, de modo absoluto, na evidência da ordem natural, isto é, de uma ordem estabelecida pela Providência para felicidade dos homens, e que se impõe por si mesma, e com uma fé não menos absoluta no laissez faire e no regime do livre jôgo da concorrência, chega, no seu rigor, à defesa de uma pseudoliberdade, ilimitada, restringindo a ação do Estado à de sentinela do direito e dessa ordem natural, bem como circunscrevendo, nas relações entre patrões e operários, a sua função à de um executor das cláusulas dos contratos discutidos e aceitos pelas partes. Suprime tôda a intervenção exterior do Estado de outro patronato, na vida econômica e social, quando afirma a existência de leis naturais imutáveis, ao mesmo passo que afasta a associação.12-13
“Velar pela segurança pública e administrar o patrimônio comum”, eis os únicos deveres do govêrno, dizia, então, BASTIAT.14
Aliás, essa concepção extremada mereceu a condenação da própria Igreja, quando atacou os “ídolos do liberalismo” e o “nefasto individualismo”, e, pela voz de LEÃO XIII, proclamou a necessidade da intervenção do poder civil, a fim de que “floresça por meio das leis e das instituições a prosperidade tanto da comunidade, quanto dos particulares”.15-16
Como, justamente, observa JOSSERAND, se há demasia em afirmar-se, com IHERING, que “o Estado é a fonte única do direito”, não se pode, entretanto, negar que a “administração do direito é a sua função primordial”.
Ora, sendo, como é, o direito um produto social, certamente se não pode contestar que, para realizá-lo, se justifica a intervenção do Estado nas relações contratuais, subordinando os interêsses e as prerrogativas individuais aos supremo, interêsses da solidariedade nacional, sem que, entretanto, com isso se deva chegar ao aniquilamento completo do elemento individual e do seu espírito de iniciativa.
Não podemos, pois, aceitar que o contrato individual de trabalho se realize, só e só, à sombra da chamada autonomia individual.
Formada nos derradeiros 20 anos do século XIX, ante o quadro de miséria das classes trabalhadoras, provocada pelo maquinismo e pelo desenvolvimento industrial, e como uma imposição dos operários, pela greve e pela organização sindical a legislação do trabalho, dirigida no sentido da proteção aos fracos, envolve, por isso mesmo, a necessidade da intervenção do Estado, em proporções justas e prudentes, para estabelecer limites à livre determinação, regulamentando suas relações com os operários.
O fim da legislação do trabalho – e a observação é de eminente professor da Faculdade de Direito da Universidade de Dijon – tem sido, exatamente, suprir a ausência de vontade efetiva que se encontra em uma das partes, o salariado, moderando, por vêzes entravando, os efeitos da vontade da outra parte, o empregador, e forçando-o a estabelecer para o salariado certas condições, que o legislador considera indispensáveis e justas.17
Por outro lado, porém, longe estamos de aceitar o extremo oposto, isto é, a condenável concepção do Estado-Providência, a que melhor lhe chamaríamos listado Leviatã, estrangulando, por completo, a iniciativa individual, tornando-se industrial e distribuidor dos bens produzidos, cerceando, em definitivo, a liberdade dos indivíduos e desprezando a responsabilidade e preconizando a propriedade coletiva e um intervencionismo absorvente e ditatorial.
Não há que duvidar, consoante a magnífica lição de DEVEALI,18 que o direito do trabalho, nascido embora para o amparo dos trabalhadores, poderá ter, grandemente, reduzido o seu caráter intervencionista no dia em que fôr possível lograr aquêle equilíbrio de fôrças que alguns ordenamentos se propõem realizar, mediante o jôgo ordenado das associações profissionais.
7. A doutrina social católica
Façamos um breve registro do ponto de vista em que se coloca o catolicismo social diante do dever de Intervenção do Estado nas relações de trabalho, e em cuja doutrina se encontra, a nosso ver, a boa razão.
O cardeal VERDIER19 depois de acentuar que, para a solução da questão social, se classificam os que procuram resolvê-la em três escolas,20 a saber: a Escola socialista, a Escola liberal e a Escola católica, passa a definir cada uma delas e mostra, então, os erros e as falhas de que, a seu ver, se ressentem as duas primeiras. Os característicos que aponta da primeira são: completa liberdade aos patrões e aos operários, tidos como iguais, objetivando, principalmente, a que predominava na celebração do contrato de trabalho; regime da livre concorrência; proibição do direito de associação, considerada como um atentado à liberdade dos indivíduos; regime do “laissez jatre et du laissez passer“. Da Escola socialista: supressão da propriedade privada e colocação das fontes de produção (ou “instrumentos de trabalho”, na linguagem socialista) em poder de uma ou de várias coletividades, como meio de eliminar as injustiças da Escola anterior e implantar, num mundo novo, uma felicidade igual. Mostra, então, a contradição existente entre os fatos e a irônica afirmativa da primeira Escola sôbre a igualdade entre o patrão e o operário, acentuando que “nesta luta onde o forte e o fraco ficavam entregues às suas únicas fôrças, o operário isolado era verdadeiramente o fraco”.21
Adverte sôbre os perigos e a quimera do socialismo, sob cuja bandeira se alistam muitos ambiciosos, passando, finalmente, ao exame da Escola católica, ou, antes, da ação social católica, cujos fundamentos se encontram, principalmente, nas Encíclicas “Rerum Novarum”, de LEÃO XIII, e “Quadragesimo Anno”, de PIO XI. Dêste pontífice, assinalemos o seguinte trecho da Encíclica “Divini Redemptoris”, sôbre a, doutrina católica, e que vale, certamente, como um admirável programa de orientação social: “… ela (refere-se à doutrina católica) reclama a justa medida na teoria e assegura a sua realização progressiva na prática, esforçando-se por conciliar os direitos e os deveres de todos, a autoridade com a liberdade a dignidade do indivíduo com a do Estado, a personalidade humana do subordinado com a origem divina do poder”.
Entre os dois extremos da doutrina liberal e da doutrina socialista, procura, pois, a Igreja a solução do debatido problema da intervenção do Estado em matéria social, colocando-se numa posição justa e verdadeira.
Em resumo: nem o Estado de tudo se encarregando, nem o Estado se transformando em simples guardião dos contratos, mas sim o Estado desempenhando uma função supletiva, “dirigindo, vigiando, estimulando, castigando”.
Evidenciando a posição pluralista católica ouçamos êste expressivo lanço do Pe. KOTHEN: “Assim como o nosso corpo é a síntese de órgãos diversos, que preenchem; cada um, sua própria função, para fazer viver o todo; assim, também a sociedade deve oferecer o espetáculo de uma série de órgãos nitidamente diferenciados por suas funções, gozando de uma autonomia própria e relativa, encaixando-se uns nos outros, para assegurar, finalmente, a vida do todo social”.22
Conseguintemente, usando de uma expressão feliz de BOIGELOT, podemos dizer que a “Igreja não é nela estatólatra, nem estatófoba”.
8. O socialismo e a caridade cristã
Fazendo um apanhado admirável de tôda a História do Direito no século XIX, PEDRO LESSA, ao demorar-se no estudo do socialismo, escreveu a respeito do seu destino estas palavras oraculares: “Muitas das aspirações das várias escolas do socialismo pròpriamente dito hão de ser, fatalmente, concretizadas em leis. Não há um só homem de coração bem formado, que se não sinta confrangido ao contemplar o doloroso quadro oferecido pelas sociedades atuais com a sua moral mercantil e egoística. O socialismo há de triunfar parcialmente”.23
Ainda em nossos dias, pormenorizando o desenvolvimento da legislação social na Itália, LIONELLO R. LEVI SANDRI, com a dupla autoridade de conselheiro de Estado e professor na Universidade de Roma, proclama translúcida e manifestìssimamente:
“All inizio del XX secolo, sotto l’impulso concomitante delle nuove concezioni político-sociali affermate da un lato dal socialismo, dall’altro dana scuola cattcolica ispìrata ai principi della Rerum Novarum, nonchè sotto l’azione sempre piú decisa delle organizzazioni operaie, ormai in fase di fiorente sviluppo la disciplina legislativa si va perfezionando e completado“.24
Não se diga que a solução do problema das reivindicações proletárias não poderia jamais, apresentar-se em nosso País de maneira torturante, a reclamar, por meios violentos, a intervenção do Estado em seu favor, caso êste não tivesse, como teve, a iniciativa nesse terreno, pois que os problemas trabalhistas são uma contingência da época de industrialismo em que vivemos.
Ademais, a solução do problema também se impunha entre nós, não só por que, e, neste passo, fixemos a opinião e a palavra de EDMUNDO LINS, “não só porque o proletariado é uma resultante da civilização, como porque, segundo o disse JAURÈS, em uma das conferências feitas no Rio, vivemos da imigração, e o imigrante já nos vem trabalhado pela corrente socialista, de sorte que, se nos não aparelharmos com leis que regulem, eqüitativamente, as relações entre êles e os patrões, procurarão outros países que, igualmente necessitados de braços e mais precavidos que nós, já o tenham feito, como a Austrália”.25
Trata-se, a nosso ver, no caso do socialismo referido por EDMUNDO LINS e PEDRO LESSA, da base sentimental do socialismo, usando de uma expressão de BOIGELOT, e cuja procedência se não pode, realmente, em boa razão, negar. É o sentimento de caridade cristã diante do pauperismo e da necessidade de melhoria das condições de vida das classes proletárias. A êste propósito, mencionemos o testemunho de BRUNETIÈRE, citado pela autoridade insuspeita de BOIGELOT:
“Dans la mesure oú le socialisme est l’ardente sympathie pour les humbles, dans la mesure oú il s’efforce de réduire l’inégalité des conditions humaines, dans la mesure enfin où son ideal est un ideal de justice a réaliser sur teme, je ne crains pas de dire que l’Evangile en est plein.”26
9. As leis operárias latino-amerinas
Aliás, merece registrado que, a par da industrialização crescente e do intenso movimento imigratório como causas preponderantes da aparição da legislação operária no continente latino-americano, destaca-se, palpàvelmente, a imitação estrangeira atentas a universalização e a uniformidade do direito do trabalho.
Abramos a êsse respeito um parêntese para assinalar a observação de LOUIS BAUDIN relativamente à circunstância dramática de não acompanhar a agricultura, em nosso continente, o vertiginoso desenvolvimento industrial. Merecem meditados êstes comentos daquele professor da Faculdade de Direito de Paris, em recente conferência sôbre a economia da América Latina (“Centre de Documentation Universitaire”), verbis:
“En 1952, la production agricole brésilienne avait augmenté de 39% par rapport a l’azant-guerre, mais la population pendant le même temps s’était accrue de 38%.
Les importations de produits alimentaires ont atteint plus de 5 milliards de cruzeiros en 1952. Mais, par ailleurs, l’immense usine de Volta Redonda produit plus de 300.000 tonnes d’acier par an la Tennessee Valley brésilienne; la “San Francisco River Valley”, doit mettre en valeur une région industrielle deux fois grande comme la France des automobiles sont entièrement construites au Brésil depuis 1950 et il y a des fabriques nouvelles de ciment, d’aluminium, de pinicilline, des raffineries… Voilà le drame: l’agriculture ne peut pas suivre une industrie si progressive”.
Os fatos europeus – e, sobretudo, os da Franca e da Itália – têm estado, constantemente, presentes aos espíritos dos legisladores e dos professôres universitários do nosso continente, quando encaram a questão social.
Aqui, é a Carta del Lavoro quase fielmente traduzida, em diversos dispositivos concernentes aos trabalhadores, pela Constituição de 37, mais além é a constituição de Weimar inspirando os constituintes de 34 e 46. Por seu turno; a terminologia trabalhista, entre nós, chancela, irrefragàvelmente, a verdade que enunciamos.
Mesmo os que se mostram, no estudo do contrato de trabalho, partidários fervorosos da Escola liberal, defendendo, intransigentemente, a liberdade dos contratos, como VALLEROUX, não negam que, uma vez garantida a liberdade dos contratantes, não haja abusos, já do operário, fazendo mau emprêgo da fôrça que lhe advém de uma associação profissional para o estabelecimento de salários ruinosos às emprêsas, já do patrão, abusando das necessidades do operário, para oferecer um preço irrisório ao seu trabalho. Como resolvem, então, o problema?
Em tais casos, vêem-se forçados a apelar para a consciência, confessando, como aquêle autor o faz, que a liberdade só não é um guia.
Não há como negar, pois, a nosso juízo, a necessidade da intervenção da lei no contrato de trabalho para, atenta a situação de desigualdade de fato nêle existente, impor à liberdade contratual as limitações ditadas pela justiça social, e pelos sentimentos de fraternidade humana, sem que tais restrições envolvam, porém a anulação completa dá iniciativa individual, e, bem assim, de tôda a liberdade no consentimento, condição essencial a todo contrato.
Na determinação de tais limitações deve estar sempre presente o espírito de caridade cristã, abrandando os rigores do regime da lei da oferta e da procura, a fim de que a “à la concurrence impitoyable se substitue une amicale cooperation“.27
10. Legitimidade das restrições à liberdade contratual
O empregador e o empregado constituindo, como constituem, duas fôrças que agem, conjuntamente, na produção nacional, e que se completam, deve ser incentivada a atividade de cada um dêles, procurando o Estado estabelecer o equilíbrio de ambas, sem aniquilar ou destruir nenhuma. As leis trabalhistas são uma resultante da interdependência humana e revestem-se de um caráter imperativo para a proteção da saúde e da vida mesma do operário, fator da economia nacional, e como elemento decisivo, pois, da harmonia e da paz social. Mas não podem chegar ao excesso de perturbar o ritmo do desenvolvimento econômico das nações, o qual se fundar também, no poder de iniciativa e nas fôrças de atividade e de criação dos particulares.
Impondo-se, no jôgo do comércio internacional, como um dogma fundamental, a necessidade do aumento constante da produção e pelo menor custo, as restrições demasiadas ao trabalho, determinadas por uma regulamentação operária, apressada, excessiva e inadequada ao meio, iriam, em última análise, prejudicar o próprio trabalhador, provocando no país vencido na concorrência mundial, a decadência do respectivo mercado de trabalho. Por outro lado, como consumidor, irá, certamente, o operário sofrer a influência do aumento correspondente no preço das utilidades. Conservados, assim, êsses limites impostos pela organização da produção, não há como se opor às limitações determinadas pelo Estado à liberdade contratual, as quais, quando justas e inspiradas por um prudente critério estabilizador entre os contratantes, contribuem para aperfeiçoar os meios, de produção elevando-a, através da melhoria das condições gerais dos operários e do seu índice de trabalho.
Em tais casos, a intervenção do Estado se justifica como legítima e necessária e tem sido mesmo em virtude dela que o padrão de vida – standard of life – e a situação da classe operária têm melhorado, progressivamente, nos vários países. Neste ponto, recolhamos a lição de GARCIA OVIEDO expressada nas seguintes palavras: “Precisa, por consiguiente aceptar plenamente el intervencionismo como un postulado y una necesidad de los tiempos presentes“.28
Em suma, sendo a classe operária a mais numerosa na humanidade atual, claro está que o equilíbrio entre o capital e o trabalho se levanta como uma das questões fundamentais para a organização do Estado moderno, porquanto segundo se lê na Declaração de Filadélfia – “a pobreza, em qualquer lugar, constitui um perigo para a prosperidade em tôdas as partes”.
E, ainda: numèricamente dominantes em qualquer cidade, aos operários não afeta e nem preocupa o direito comum, visto possuírem tão-sòmente (e quando possuem) “farrapos” de propriedade, para lembrar uma locução consagrada. Cifram-se os seus interêsses nas normas que, visando à proteção do trabalho, se relacionam com a emprêsa ou com o Estado.
____________________
Notas:
1 “Historia de las Doctrinas Económicas desde los fisiócratas hasta nuestros días”, versão espanhola, pág. XX.
2 HENRI CAPITANT e PAUL CUCHE “Précis de Législation Industrielle”, 1936, pág. 2.
3 “Du Louage de Services ou Contrat de Travail”.
4 Ob. cit., pág. 11.
5 Ob. cit.
6 HUBERT VALLEROUX, “Le Contrat de Travail”, págs. 4 e seg.
7 “El Contrato de Trabajo”, págs. 17 e seg.
8 “Curso de Derecho del Trabajo”, 1952. págs. 115 e seg.
9 ALARCON Y HORCAS, “Derecho Español del Trabajo”, pág. 48.
10 Carta Encíclica “Quadragesimo Anno”, versão Pe. Dr. FELÍCIO MAGALDI, pág. 34.
11 “L’Eglise et le Monde Moderne”, pág. 18.
12 CARLOS GARCIA OVIEDO, “Tratado Elemental de Derecho Social”, pág. 21.
13 Estudando o liberalismo sob o tríplice aspecto político strictu sensu, político-filosófico e econômico, assim se exprime, a certa altura, e mui judiciosamente, o erudito professor IRINEU MACHADO: “Consideramos o individualismo absoluto também uma forma de extremismo, a mais egoísta porque conduz à suprema opressão dos fracos e dos infelizes, leva-nos a uma maldade que não é inerente à natureza humana” (“Boletim do Ministério do Trabalho”, nº 38, outubro de 1937, pág. 120).
14 Apud CARLOS GIDE, ob. cit., pág. 609.
15 ARTAJO-CUERVO, “Doctrina Social Católica”, pág. 107.
16 LEÃO XIII teve como antecessor, na defesa das reivindicações proletárias, o bispo de Mogúncia, VON KETTELER, segundo êle próprio declarou a DECURTINS, conforme nos dá conta RUTTEN, no seu interessante livro sôbre “La doctrine sociale de l’glise” (G. C. RUTTEN º P., ob. cit., pág. 44).
17 G. SCELLE, “Précis Elémentaire de Législation Industrielle”.
18 “Lineamientos de Derecho del Trabajo”, 1953, pág. 39.
19 “Problèmes Sociaux. Réponses Chrétiennes”, págs. 19 e seg.
20 No mesmo sentido, o autor católico, G. C. RUTTEN, O. P., “La doctrine sociale de l’Eglise”, pág. 30.
21 Ob. cit.
22 “Problemas sociais da atualidade”, tradução de LUÍS J. DE MESQUITA, 1950, pág. 129.
23 PEDRO LESSA, “Dissertações e Polêmicas”, pág. 231.
24 “Instituzioni di Legislazione Sociale”, 1955, pág. 9.
25 EDMUNDO LINS, “Estudos Jurídicos” 1935, pág. 44.
26 R. BOIGELOT, S. J., “L’Eglise et lê Monde Moderne”, 1936, pág. 105.
27 MGR. RUCH, bispo de Strasburg, “La Doctrine Sociale de l’Evangile”, pág. 46.
28 Ob. cít., pág. 35.
LEIA TAMBÉM O PRIMEIRO VOLUME DA REVISTA FORENSE
- Revista Forense – Volume 1 | Fascículo 1
- Revista Forense – Volume 1 | Fascículo 2
- Revista Forense – Volume 1 | Fascículo 3
- Revista Forense – Volume 1 | Fascículo 4
- Revista Forense – Volume 1 | Fascículo 5
- Revista Forense – Volume 1 | Fascículo 6
NORMAS DE SUBMISSÃO DE ARTIGOS

I) Normas técnicas para apresentação do trabalho:
- Os originais devem ser digitados em Word (Windows). A fonte deverá ser Times New Roman, corpo 12, espaço 1,5 cm entre linhas, em formato A4, com margens de 2,0 cm;
- Os trabalhos podem ser submetidos em português, inglês, francês, italiano e espanhol;
- Devem apresentar o título, o resumo e as palavras-chave, obrigatoriamente em português (ou inglês, francês, italiano e espanhol) e inglês, com o objetivo de permitir a divulgação dos trabalhos em indexadores e base de dados estrangeiros;
- A folha de rosto do arquivo deve conter o título do trabalho (em português – ou inglês, francês, italiano e espanhol) e os dados do(s) autor(es): nome completo, formação acadêmica, vínculo institucional, telefone e endereço eletrônico;
- O(s) nome(s) do(s) autor(es) e sua qualificação devem estar no arquivo do texto, abaixo do título;
- As notas de rodapé devem ser colocadas no corpo do texto.
II) Normas Editoriais
Todas as colaborações devem ser enviadas, exclusivamente por meio eletrônico, para o endereço: revista.forense@grupogen.com.br
Os artigos devem ser inéditos (os artigos submetidos não podem ter sido publicados em nenhum outro lugar). Não devem ser submetidos, simultaneamente, a mais do que uma publicação.
Devem ser originais (qualquer trabalho ou palavras provenientes de outros autores ou fontes devem ter sido devidamente acreditados e referenciados).
Serão aceitos artigos em português, inglês, francês, italiano e espanhol.
Os textos serão avaliados previamente pela Comissão Editorial da Revista Forense, que verificará a compatibilidade do conteúdo com a proposta da publicação, bem como a adequação quanto às normas técnicas para a formatação do trabalho. Os artigos que não estiverem de acordo com o regulamento serão devolvidos, com possibilidade de reapresentação nas próximas edições.
Os artigos aprovados na primeira etapa serão apreciados pelos membros da Equipe Editorial da Revista Forense, com sistema de avaliação Double Blind Peer Review, preservando a identidade de autores e avaliadores e garantindo a impessoalidade e o rigor científico necessários para a avaliação de um artigo.
Os membros da Equipe Editorial opinarão pela aceitação, com ou sem ressalvas, ou rejeição do artigo e observarão os seguintes critérios:
- adequação à linha editorial;
- contribuição do trabalho para o conhecimento científico;
- qualidade da abordagem;
- qualidade do texto;
- qualidade da pesquisa;
- consistência dos resultados e conclusões apresentadas no artigo;
- caráter inovador do artigo científico apresentado.
Observações gerais:
- A Revista Forense se reserva o direito de efetuar, nos originais, alterações de ordem normativa, ortográfica e gramatical, com vistas a manter o padrão culto da língua, respeitando, porém, o estilo dos autores.
- Os autores assumem a responsabilidade das informações e dos dados apresentados nos manuscritos.
- As opiniões emitidas pelos autores dos artigos são de sua exclusiva responsabilidade.
- Uma vez aprovados os artigos, a Revista Forense fica autorizada a proceder à publicação. Para tanto, os autores cedem, a título gratuito e em caráter definitivo, os direitos autorais patrimoniais decorrentes da publicação.
- Em caso de negativa de publicação, a Revista Forense enviará uma carta aos autores, explicando os motivos da rejeição.
- A Comissão Editorial da Revista Forense não se compromete a devolver as colaborações recebidas.
III) Política de Privacidade
Os nomes e endereços informados nesta revista serão usados exclusivamente para os serviços prestados por esta publicação, não sendo disponibilizados para outras finalidades ou a terceiros.
LEIA TAMBÉM: