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JURISPRUDÊNCIA
PROCESSO PENAL
Cabe suspensão de liminar em matéria penal?
Douglas Fischer
06/01/2022
Com a decisão tomada pelo Ministro-Presidente do STF no emblemático “Caso Kiss” no dia 15.12.2021 (MC na SL nº 1.504-RS), as redes sociais foram pulverizadas com muitas críticas (algumas, infelizmente, para além da crítica jurídica…) sobre o “absurdo” da decisão. Suspensão de liminar em matéria penal não é uma novidade na jurisprudência do STF.
Antes de explicar, vamos destacar algumas questões.
Nos Comentários ao CPP e sua jurisprudência (em breve 14ª edição, 2022, agora pela Juspodivm, no prelo, para janeiro do ano que vem), na companhia de Eugênio Pacelli deixamos claro entendermos que não cabe a suspensão de liminar em matéria penal. Mas nossa divergência não impede de dizer, dialética e democraticamente, que a decisão tomada na retromencionada suspensão de liminar não é novidade, nem absurda (sob a ótica do instituto em si conforme os precedentes do STF, que fique claro).
Algumas outras premissas relevantes, antes de prosseguirmos.
1 – Não analisaremos as discussões (também candentes) sobre a discussão de dolo eventual x culpa consciente. Apenas relembramos que, por exemplo, Eduardo Vianna (em seu espetacular “Dolo como compromisso cognitivo”, Marcial Pons) expõe suas razões, smj, pela possibilidade em tese da aplicação do dolo eventual em situações dessa natureza. E a tese do dolo eventual foi a escolhidapelos jurados. Relembremos que, no dia de ontem (com as particularidades do acórdão, leiam o inteiro teor), o STJ reafirmou posição no sentido de que “a decisão tomada pelos jurados, ainda que não seja a mais justa ou a mais harmônica com a jurisprudência dominante, é soberana, conforme disposto no art. 5º, XXXVIII, “c”, da CF/1988. Tal princípio, todavia, é mitigado quando os jurados proferem decisum teratológico, em manifesta contrariedade às provas colacionadas nos autos, casos em que o veredito deve ser anulado pela instância revisora e o réu, submetido a novo julgamento perante o Tribunal do Júri” (Recurso Especial nº 1.843.481-PE, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, DJ 15.12.2021).
2 – Não analisaremos o fato de que a expedição de salvo-conduto por decisão monocrática de membro de tribunal contra decisão soberana dos jurados se deu mesmo antes da prolação do édito condenatório, pois, nas palavras da impetração, o julgador seria “linha dura” (sic).
Exame sob a luz do CPP
Mas vamos deixar claro que, também em nossos Comentários ao CPP (malgrado todas as posições jurídicas em sentido contrário e bem fundamentadas), defendemos que há sérias possibilidades de o STF declarar inconstitucional a regra que autoriza a prisão em casos de pena superior a 15 anos de reclusão (item 492.2.1. A possibilidade de execução provisória de penas iguais ou superiores a 15 anos). Entretanto, há presunção de constitucionalidade da regra (e isso ficou expressamente consignado na decisão do “juiz linha dura”) e o tema está em debate. Sim, o STJ, que reiteradamente diz que não lhe cabe analisar constitucionalidade de leis, tem várias decisões sustentando ser inconstitucional a execução provisória nesses casos. Vai entender …
Mas também nos Comentários ao CPP externamos posição sobre, em situações dessa natureza, “a possibilidade de construção da tese jurídica de que, com condenação pelo tribunal do júri a uma pena igual ou superior a 15 anos, sempre a depender do caso concreto e da devida fundamentação, seria possível cogitar de estarem (agora, com a condenação) presentes os requisitos da prisão preventiva” (art. 312 do CPP, não a aplicabilidade do art. 492, § 3º, CPP). Nessa linha, alguns poderão perguntar: mas e a contemporaneidade ? Bem, na linha da jurisprudência pacificada do STJ e do STF, como já anunciamos várias vezes, “a contemporaneidade diz com os motivos ensejadores da prisão preventiva e não com o momento da prática supostamente criminosa em si, ou seja, é desimportante que o fato ilícito tenha sido praticado há lapso temporal longínquo, sendo necessária, no entanto, a efetiva demonstração de que, mesmo com o transcurso de tal período, continuam presentes os requisitos (i) do risco à ordem pública ou (ii) à ordem econômica, (iii) da conveniência da instrução ou, ainda, (iv) da necessidade de assegurar a aplicação da lei penal” (Agravo Regimental no Habeas Corpus nº 207.084/RS, STF, 1ª Turma, unânime, Rel. Min. Rosa Weber, julgado em sessão virtual de 29.10.2021 a 10.11.2021, publicado no DJ em 18.11.2021) – Remetemos às anotações ao texto em https://temasjuridicospdf.com/contemporaneidade-e-prisoes-preventivas/ . Deste modo, não é desarrazoado sustentar (embora possa haver dissídios, claro) que, com a confirmação da pronúncia pelo édito condenatório soberano do tribunal popular (que não é absoluto, pois sempre deve caber recursos de decisões teratológicas, para a defesa ou para o MP), surge a possibilidade de reconhecimento da gravidade concreta de forma segura a ensejar eventual prisão cautelar, mesmo que decorrido tempo da data dos fatos. Mas isso é apenas para pontuar. Sigamos.
3 – Não é de hoje que alertamos para decisões tomadas, especialmente no STF, com verdadeiro procedimento per saltum no ajuizamento de reclamações manifestamente incabíveis contra atos de juízes de primeiro grau, porém com o deferimento “habeas de ofício”. Na grande maioria dos casos, eram poucas insurgências, pois elas beneficiavam os autores dos fatos criminosos. Veja aqui também nossas considerações: https://temasjuridicospdf.com/como-burlar-a-sumula-691-do-stf-mediante-o-ajuizamento-de-reclamacao-incabivel/. Apenas destacamos que o que não concebemos é o “não-conhecimento” da reclamação e “na sequência, num verdadeiro salto procedimental, supera essa inadmissibilidade declarada expressamente (e sua própria competência para tanto) e concede, das mais variadas formas, uma ordem de habeas corpus de ofício”. Sobre isso, pouco vemos insurgências, ante uma constante falta – quase que geral – de visão sistêmica dos institutos aplicados.
STF e suspensão de liminar
Mas ao ponto central, que é o mais relevante: não é de hoje que o STF admite a suspensão de liminar em matéria penal(há quem olhe para a lei e pergunte: onde está escrito na Lei nº 8.437/92 que cabe em matéria penal? Pois é, não está, mas conhecer a jurisprudência pode ajudar até os mais incautos opinadores).
Vamos lá, reportando-se novamente ao que consignamos no item 650.2.2 dos nossos Comentários ao CPP e sua jurisprudência (14ª ed., 2022, no prelo), em que estamos criticando o uso da suspensão liminar para desvirtuamento do juiz natural para a apreciação de habeas corpus (não atentem para a “topologia” da discussão, mas para os fundamentos lá expostos).
Dispõe o art. 4º da Lei nº 8.437/92 que “Compete ao presidente do tribunal, ao qual couber o conhecimento do respectivo recurso, suspender, em despacho fundamentado, a execução da liminar nas ações movidas contra o Poder Público ou seus agentes, a requerimento do Ministério Público ou da pessoa jurídica de direito público interessada, em caso de manifesto interesse público ou de flagrante ilegitimidade, e para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas”.
O destaque é feito em razão de serem encontradas algumas decisões do STF (v.g., Suspensão de Liminar nº 907, STF, 16.5.2016, publicada no DJ em 19.5.2016) suspendendo decisões de caráter penal com invocação da retromencionada norma.
Como destacamos na obra retromencionada, no precedente acima (apenas ume exemplo dentre tantos …), extraem-se alguns elementos fundamentais: “trata-se de suspensão de liminar, com pedido de medida cautelar, ajuizada pelo Prefeito do Município de xxx contra decisão do Tribunal de Justiça do Estado yyy proferida no Procedimento Investigatório zzz, que determinou o seu afastamento do cargo pela suposta prática de diversos ilícitos. […] Nos termos de manifestações proferidas em contracautelas, cuja questão de fundo é semelhante à do presente caso, pondero que as medidas cautelares devem observar as garantias constitucionais que asseguram a todos o devido processo legal e a presunção de inocência, razão pela qual não deve fazer vezes de pena restritiva de direito, cabendo, aqui, o consagrado ensinamento do Min. Sepúlveda Pertence, de que ‘as leis é que se devem interpretar conforme a Constituição, e não ao contrário’ (RT 680/416). Não por outra razão, dispõe o art. 282 do Código de Processo Penal que as medidas cautelares deverão ser aplicadas com a observância do binômio necessidade/adequação, o qual não me parece estar presente no caso sob exame. Em um exame superficial dos autos, como é próprio das medidas de contracautela, verifico que o Tribunal de Justiça afastou o requerente do cargo de Prefeito Municipal, inicialmente por 60 dias, para evitar a interferência na investigação criminal. […] Isso posto, defiro o pedido de suspensão, confirmando a liminar deferida”.
Como defendemos e alertamos há muito, “o equívoco nos parece manifesto. Fundamental pontuar objetivamente que não cabe a suspensão de liminar em se tratando de ação penal, cujo caminho (se fosse o caso) seria eventual habeas corpus contra o indeferimento de liminar (e ainda mediante a demonstração de superação do óbice da Súmula 691, STF). A situação em voga implica, em nossa compreensão, manifesto e indevido desvirtuamento do remédio legal previsto na lei invocada, bem assim o atropelamento das regras constitucionais acerca da competência para apreciação de habeas corpus. No caso em tela mencionado, impetrou-se pedido de suspensão de liminar (com base em lei que não abrange hipóteses de natureza penal) para afastar a decisão (liminar, porém colegiada) de Tribunal de Justiça que,por fundamentos cautelares penais (art. 319, CPP), afastou prefeito do exercício da função pública”.
Na mesma sequência, amparamos nossa tese em decisões posteriores do próprio STF (v.g., Suspensão de Liminar nº 1.008, de 23.9.2016) em que se reconheceu não ser cabível a suspensão de liminar em matéria penal. Porém, ressaltamos que, também nesse julgado, ficou expressamente consignado que “o cabimento de suspensão de liminar em demandas de natureza penal somente se justifica em situações excepcionalíssimas quando a pretensão deduzida fundamenta-se em direito coletivo à segurança (art. 5º, caput, da Constituição da República) e não interesse meramente individual de particular contra decisão cautelar em ação penal originária”, embora se tenha concluído – nesse caso – que não haveria presença dos requisitos legais previstos.
Alguns poderiam dizer ainda: esse é o primeiro caso em que o STF decide cassar em suspensão de liminar decisão que concedera habeas corpus.
Não é !
Veja-se, por exemplo, a decisão tomada pelo Presidente do STF Cezar Peluso em 2010 na Suspensão de Liminar nº 453 em que “ante a razoabilidade jurídica da pretensão, fundada na invocação expressa do direito coletivo à segurança pública (art. 5º, caput, da CF) e na manifesta urgência da medida, justificável agora pelos atuais acontecimentos notórios que atingem gravemente a segurança pública do Estado ora requerente – o que, em si, constitui fato superveniente à racionalidade e ao contexto do acórdão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro -, é de ser deferido o efeito suspensivo liminar (cf. art. 15, § 4º, da Lei nº 12.016/2009), para sustar, até pronunciamento em contrário desta Corte, os efeitos da decisão proferida no HC nº 0020102-92.2010.8.19.0000 – TJRJ, sem prejuízo de revisão oportuna deste ato”. Assim, deferiu “a liminar, em caráter de urgência, para suspender os efeitos da decisão proferida no HC nº 0020102-92.2010.8.19.0000 – TJRJ, nos termos já enunciados”.
Alguns poderiam dizer, ainda eventualmente: para as liberdades (como nos casos em que concedida a suspensão da liminar que determinara prisão ou medida cautelar diversa) não teria problema, pois estaria protegendo-se o “cidadão” suposto autor do fato. Para o caso de afastar o salvo conduto, não haveria como…
Desculpem a objetividade e certa incisividade: eis aí o problema da hermenêutica da conveniência ou então de visão não sistêmica (nem falo, por exemplo, de doutrinadores que sustentam uma posição X em obras jurídicas e, no dia-a-dia, adotam posições diametralmente opostas em casos concretos, sem qualquer justificativa e racionalidade, apenas pelo “interesse do momento” no caso concreto).
Assim, se cabe para a suspensão de liminar em matéria penal, cabe para todas as situações que se revelem, desde que se entenda presentes os requisitos legais (embora nossa posição no sentido do descabimento, vamos sempre pontuar isso).
Dizer que o STF inovou em conceder suspensão de liminar em matéria penal é, respeitosamente, um equívoco por não conhecer a realidade de seus julgados.
Portanto, não há novidade alguma, gostemos ou não.
O alerta já fizemos há muito tempo.
Quase ninguém se importou.
As insurgências são feitas agora pelo rumoroso e complexo Caso da Boate Kiss.
Não nos cabe maiores análises do caso concreto (para além dos bons argumentos jurídicos para ambos os lados, há a “polaridade desenfreada” e irracional do control c + control v de tempos atuais das redes …).
Mas essas são nossas rápidas considerações, salvo melhor juízo sempre.
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