O instituto da colaboração premiada foi introduzido no Brasil pela Lei nº 12.850/2013, com algumas alterações mais recentes da Lei nº 13.964/2019.
Um dos aspectos mais relevantes do referido instituto é que se trata de um acordo, com nítidas nuances de contrato bilateral entre as partes (e só entre elas): Ministério Público e/ou Polícia e o colaborador (com seu advogado).
No julgamento do leading case a respeito do tema, HC nº 127.483 (com verdadeira carga de precedente, pois foi decidido à unanimidade pelos 11 ministros do STF em 26.8.2015, acórdão publicado em 4.2.2016) assentou-se expressamente (no que interessa ao caso) que terceiros não poderiam impugnar os acordos nos quais fossem “referidos” (“delatados”). O caso era exatamente decorrente de um habeas corpus contra ato de Ministro do próprio STF que homologara um acordo de colaboração em que o impetrante fora “delatado”. O plenário do STF expressamente decidiu que:
[…] 4. A colaboração premiada é um negócio jurídico processual, uma vez que, além de ser qualificada expressamente pela lei como “meio de obtenção de prova”, seu objeto é a cooperação do imputado para a investigação e para o processo criminal, atividade de natureza processual, ainda que se agregue a esse negócio jurídico o efeito substancial (de direito material) concernente à sanção premial a ser atribuída a essa colaboração. […] 6. Por se tratar de negócio jurídico personalíssimo, o acordo de colaboração premiada não pode ser impugnado por coautores ou partícipes do colaborador na organização criminosa e nas infrações penais por ela praticadas, ainda que venham a ser expressamente nominados no respectivo instrumento no “relato da colaboração e seus possíveis resultados” (art. 6º, I, da Lei nº 12.850/13).
E assim se decidiu porque o eventualmente delatado teria direito exclusivamente a ter acesso ao conteúdo do que referido a ele, para poder exercer a ampla defesa e o contraditório (no momento próprio, dado que, como também sabido, há um contraditório e ampla defesas diferidos no tempo, de modo a não prejudicar as investigações em curso – Súmula Vinculante nº 14 – STF)
Temos por relevante acrescer ainda anotações sobre decisões proferidas conjuntamente pela 2ª Turma do STF, que, em 25.8.2020, no julgamento dos Habeas Corpus nºs 142.205 e 143.427, por empate na votação, concederam as ordens para, em verdade, reconhecer a invalidade dos próprios acordos.
Para surpresa de muitos, foi noticiado que, em dois casos, embora negado que estivessem violando o precedente do plenário, duas colaborações premiadas foram anuladas em sede de habeas corpus, por empate na votação.
Responsável pelo voto-prevalente, o Ministro Gilmar Mendes afirmou que a impugnação dizia respeito à utilização de provas contra os imputados e que foram produzidos a partir de acordos “temerários e claramente questionáveis”. Justificou que estava propondo um “desenvolvimento de refinamento” de um sistema para analisar as consequências que precisam ser controláveis pelo Poder Judiciário. Assim, e de forma genérica, referiu que seria necessário avançar para “traçar critérios adequados à limitação de abusos” (embora não tenha dito quais abusos efetivamente estavam cabalmente demonstrados para o tema ser debatido em sede de habeas corpus). Assim, sem ter nenhum elemento seguro e indiscutível (pelo menos em nossa análise), assentou genericamente também ser “questionável a possibilidade de esses agentes negociarem e transigirem sobre a pretensão acusatória com relação a fatos supostamente criminosos a eles imputados”. E, com base exclusivamente no que produzido unilateralmente pelas defesas dos “delatdos” no ajuizamento dos writs, destacou que “grande parte dos problemas que se verificaram no caso concreto decorrem da ausência de registro e controle dos atos de negociação e das declarações prestadas pelos delatores”.Por oportuno, relembre-se que o registro não era obrigatório e, para que se admitisse a ilicitude de provas, sobretudo em sede de habeas corpus, não bastam suposições a respeito das premissas declinadas. Seria preciso uma certeza de que houve ilegalidade. E, nesse caso, se alguma ilegalidade houvesse, era essencial que se abrisse o devido procedimento (com contraditório e ampla defesa) perante o juízo competente, em primeiro grau, e não, por via transversa, na limitada via de cognição do writ. Noutras palavras, se houve qualquer ilegalidade (como dito), caberia ao juízo competente (primeiro grau) instaurar procedimento próprio para tanto, e não a impugnação, em outros graus de jurisdição, sobre os atos que foram fiscalizados (e tidos como corretos até então) pelo Poder Judiciário.
Malgrados dois votos tenham sido suficientes para nulificar toda a prova e o próprio acordo (pelo empate prevalente), desbordando dos precedentes do Plenário, registramos respeitosamente a preocupação de que, a partir de decisões dos órgãos fracionários, abram-se possibilidades de, mesmo que indiretamente, permitir que terceiros impugnem o próprio conteúdo da colaboração premiada. Essa admissibilidade transversa de revisão da “legalidade” poderá gerar verdadeira instabilidade e segurança das próprias partes interessadas em fazer um procedimento de colaboração premiada.
Essa preocupação torna-se agora mais clara, na medida em que, no dia de hoje, 1º.10.2020, foram publicados os acórdãos, em que constou expressamente em ambas ementas do julgados que:
[…] 4. Penal e Processual Penal. 2. Colaboração premiada, admissibilidade e impugnação por corréus delatados. Provas produzidas em razão do acordo e utilizadas no caso concreto. Abusos da acusação e fragilização da confiabilidade. Nulidade do acordo e inutilização de declarações dos delatores. 3. Possibilidade de impugnação do acordo de colaboração premiada por terceiros delatados. Além de caracterizar negócio jurídico entre as partes, o acordo de colaboração premiada e meio de obtenção de provas, de investigação, visando a melhor persecução penal de coimputados e de organizações criminosas. Potencial impacto a esfera de direitos de corréus delatados, quando produzidas provas ao caso concreto. Necessidade de controle e limitação a eventuais cláusulas ilegais e benefícios abusivos.Precedente desta Segunda Turma: HC 151.605 (de minha relatoria, j. 20.3.2018). […] (HC nº 142.205-PR e HC nº 143.427-PR, ambos da Relatoria do Ministro Gilmar Mendes). Voto acompanhando o relator o Ministro Ricardo Lewandowski, negaram a pretensão os Ministros Edson Fachin e Cármen Lúcia)
Disse o eminente relator: “ Diante da gravidade dos fatos narrados, em que houve a caracterização evidente de um cenário de abusos e desconfiança na atuação das partes envolvidas no acordo de colaboração premiada, penso que é chegado o momento adequado para que se repense a posição adotada pelo Supremo Tribunal Federal em relação à impossibilidade de impugnação dos acordos por terceiros delatados” […] “Não podemos fechar os olhos diante desse cenário e da falta de limites ao poder negocial no processo penal brasileiro. A Lei 12.850/2013 veio bem ao trazer uma regulamentação inicial a um cenário que era de completa omissão. Contudo, diante da complexidade das relações que se colocam em uma Justiça Criminal Negocial, precisamos avançar para traçar critérios adequados à limitação de abusos”.
O eminente Relator pode defender seus argumentos. A Corte até pode mudar seu entendimento.
Mas deflui da própria fundamentação que, conscientemente, a mudança foi feita por órgão fracionário em detrimento da decisão maior do plenário.
O Ministro Edson Fachin bem esclareceu a questão em seu voto, alertando expressamente os demais julgadores:
[…] 2. Posição unânime do Plenário do STF no sentido da inviabilidade de que terceiros possam impugnar acordos de colaboração premiada:
Do exame que fiz, depreendi que a compreensão que emana do Tribunal Pleno desta Suprema Corte realmente não admite impugnação, por parte dos delatados, dos acordos de colaboração premiada, mesmo quando em causa eventuais motivos que possam levar à rescisão ou revisão da avença. Rememoro que o Plenário deste Supremo Tribunal Federal, no bojo do paradigmático HC 127483, Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 27/08/2015, foi instado a deliberar sobre diversos aspectos controvertidos do instituto da colaboração premiada, interessando, no ponto, o que ficou assentado, à unanimidade, sobre os efeitos do acordo perante terceiros.
No citado julgamento, o Tribunal Pleno, por decisão unânime, conforme se extrai de segmento da ementa a seguir reproduzido, concluiu o seguinte:
“Negócio jurídico processual personalíssimo. Impugnação por coautores ou partícipes do colaborador. Inadmissibilidade. Possibilidade de, em juízo, os partícipes ou os coautores confrontarem as declarações do colaborador e de impugnarem, a qualquer tempo, medidas restritivas de direitos fundamentais adotadas em seu desfavor. (…) 6. Por se tratar de negócio jurídico personalíssimo, o acordo de colaboração premiada não pode ser impugnado por coautores ou partícipes do colaborador na organização criminosa e nas infrações penais por ela praticadas, ainda que venham a ser expressamente nominados no respectivo instrumento no ‘relato da colaboração e seus possíveis resultados’ (art. 6º, I, da Lei nº 12.850/13).
7. De todo modo, nos procedimentos em que figurarem como imputados, os coautores ou partícipes delatados – no exercício do contraditório – poderão confrontar, em juízo, as declarações do colaborador e as provas por ele indicadas, bem como impugnar, a qualquer tempo, as medidas restritivas de direitos fundamentais eventualmente adotadas em seu desfavor.” (HC 127483, Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 27/08/2015, grifei)
No que diz respeito ao tema especificamente ora em julgamento, o voto condutor proferido Relator do citado HC, o eminente Min. Dias Toffoli, consignou, sem grifos no original, que:
“(…) Finalmente, superados os planos da existência e da validade, chega-se ao plano da eficácia: o acordo existente e válido somente será eficaz se for submetido à homologação judicial (art. 4º, § 7º, da Lei nº 12.850/13).
Esse provimento interlocutório, que não julga o mérito da pretensão acusatória, mas sim resolve uma questão incidente, tem natureza meramente homologatória, limitando-se a se pronunciar sobre a regularidade, legalidade e voluntariedade do acordo (art. 4º, § 7º, da Lei nº 12.850/13).
(…) Nessa atividade de delibação, o juiz, ao homologar o acordo de colaboração, não emite nenhum juízo de valor a respeito das declarações eventualmente já prestadas pelo colaborador à autoridade policial ou ao Ministério Público, tampouco confere o signo da idoneidade a seus depoimentos posteriores.
Como bem destacado pelo eminente Ministro Teori Zavascki em suas informações:
‘(…) o âmbito da cognição judicial na decisão que homologa o acordo de colaboração premiada é limitado ao juízo a respeito da higidez jurídica desse ato original. Não cabe ao Judiciário, nesse momento, examinar aspectos relacionados à conveniência ou à oportunidade do acordo celebrado ou as condições nele estabelecidas, muito menos investigar ou atestar a veracidade ou não dos fatos contidos em depoimentos prestados pelo colaborador ou das informações trazidas a respeito de delitos por ele revelados. É evidente, assim, que a homologação judicial do acordo não pressupõe e não contém, nem pode conter, juízo algum sobre a verdade dos fatos confessados ou delatados, ou mesmo sobre o grau de confiabilidade atribuível às declarações do colaborador, declarações essas às quais, isoladamente consideradas, a própria lei atribuiu escassa confiança e limitado valor probatório (“Nenhuma sentença condenatória será proferida com fundamento apenas nas declarações do agente colaborador”, diz o § 16 do art. 4º da Lei 12.850/2013).’
Em outras palavras, a homologação judicial do acordo de colaboração premiada não significa, em absoluto, que o juiz admitiu como verídicas ou idôneas as informações eventualmente já prestadas pelo colaborador e tendentes à identificação de coautores ou partícipes da organização criminosa e das infrações por ela praticadas ou à revelação da estrutura hierárquica e da divisão de tarefas da organização criminosa.
A homologação judicial constitui simples fator de atribuição de eficácia do acordo de colaboração. Sem essa homologação, o acordo, embora possa existir e ser válido, não será eficaz, ou seja, não se produzirão os efeitos jurídicos diretamente visados pelas partes.
(…) Finalmente, havendo um acordo de colaboração existente, válido e eficaz, nos termos do art. 4º, I a V, da Lei nº 12.850/13, a aplicação da sanção premial nele prevista dependerá do efetivo cumprimento pelo colaborador das obrigações por ele assumidas, com a produção de um ou mais dos seguintes resultados: (…)
Por se tratar de um negócio jurídico processual personalíssimo, o acordo de colaboração premiada não pode ser impugnado por coautores ou partícipes do colaborador na organização criminosa e nas infrações penais por ela praticadas, ainda que venham a ser expressamente nominados no respectivo instrumento quando do relato da colaboração e seus possíveis resultados (art. 6º, I, da Lei nº 12.850/13).
O acordo de colaboração, como negócio jurídico personalíssimo, não vincula o delatado e não atinge diretamente sua esfera jurídica: res inter alios acta .
A delação premiada, como já tive oportunidade de assentar, é um benefício de natureza personalíssima, cujos efeitos não são extensíveis a corréus (RHC nº 124.192/PR, Primeira Turma, de minha relatoria, DJe de 8/4/15) Esse negócio jurídico processual tem por finalidade precípua a aplicação da sanção premial ao colaborador, com base nos resultados concretos que trouxer para a investigação e o processo criminal.
Assim, a homologação do acordo de colaboração, por si só, não produz nenhum efeito na esfera jurídica do delatado, uma vez que não é o acordo propriamente dito que poderá atingi-la, mas sim as imputações constantes dos depoimentos do colaborador ou as medidas restritivas de direitos fundamentais que vierem a ser adotadas com base nesses depoimentos e nas provas por ele indicadas ou apresentadas – o que, aliás, poderia ocorrer antes, ou mesmo independentemente, de um acordo de colaboração. (…)
Corroborando essa assertiva, ainda que o colaborador, por descumprir alguma condição do acordo, não faça jus a qualquer sanção premial por ocasião da sentença (art. 4º, § 11, da Lei nº 12.850/13), suas declarações, desde que amparadas por outras provas idôneas (art. 4º, § 16, da Lei nº 12.850/13), poderão ser consideradas meio de prova válido para fundamentar a condenação de coautores e partícipes da organização criminosa. (…)”
Como se vê, o Tribunal Pleno foi explícito ao não vincular, de modo necessário, a concessão dos prêmios negocialmente estipulados com a eficácia das provas produzidas a partir da postura colaborativa. Ao contrário, na medida em que, até mesmo em caso de eventual rescisão que importe o afastamento da sanção premial, o resultado probatório decorrente do ato colaborativo permanece válido e eficaz, a ilustrar a distinção entre eventual consequência probatória do acordo e os benefícios a serem concedidos ao colaborador. Ainda na direção de que eventual desconstituição do acordo de colaboração premiada não beneficia terceiros nominados por colaboradores, à guisa de registro, retomo compreensão por mim exposta quando do julgamento da Questão de Ordem no Inquérito 4.483, perante o Pleno deste Supremo Tribunal Federal, cujo acórdão, no ponto, restou assim ementado:
“2. A possibilidade de rescisão ou de revisão, total ou parcial, de acordo homologado de colaboração premiada, em decorrência de eventual descumprimento de deveres assumidos pelo colaborador, não propicia, no caso concreto, conhecer e julgar alegação de imprestabilidade das provas, porque a rescisão ou revisão tem efeitos somente entre as partes, não atingindo a esfera jurídica de terceiros, conforme reiteradamente decidido pelo Supremo Tribunal Federal.” (Inq 4483 QO, Rel. Min. Edson Fachin, Tribunal Pleno, j. 21.09.2017, grifei)
Verifico ainda que referida posição do Plenário no sentido da inadmissão de impugnação por parte de terceiros não consubstanciou manifestação jurisdicional episódica desta Corte. Ao revés, a compreensão exarada pelo Tribunal Pleno norteou diversos julgados em outros feitos em que investigados almejaram questionar os termos ou efeitos de acordos de colaboração premiada. A propósito, colacionam-se alguns julgados que ilustram talasserção, iniciando pelo Inquérito 3.983, relatado pelo saudoso Ministro Teori Zavascki (julgado em 3.3.2016), que culminou no recebimento parcial de denúncia oferecida em face do ex-Deputado Federal Eduardo Cunha, então Presidente da Câmara dos Deputados. No mencionado feito, o tema, equacionado à unanimidade pelo Plenário desta Corte, resultou em novo pronunciamento do colegiado maior na direção da ilegitimidade de terceiros para impugnação aos termos de acordo de colaboração premiada, assentando que, “até mesmo em caso de revogação do acordo, o material probatório colhido em decorrência dele pode ainda assim ser utilizado em face de terceiros, razão pela qual não ostentam eles, em princípio, interesse jurídico em pleitear sua desconstituição, sem prejuízo, obviamente, de formular, no momento próprio, as contestações que entenderem cabíveis quanto ao seu conteúdo”. […] O aludido entendimento vem sendo observado em sucessivas decisões monocráticas proferidas pelos eminentes Ministros desta Suprema Corte (Pet 5733, Rel.: Min. TEORI ZAVASCKI, julgado em 23.9.2015, DJe 28.9.2015; Rcl 21514, Rel.: Min. TEORI ZAVASCKI, julgado em 11.11.2015, DJe 16.11.2015; AP 923, Rel.: Min. LUIZ FUX, julgado em 28.10.2016, DJe 4.11.2016; HC 144426 MC, Rel.: Min. CELSO DE MELLO, julgado em 7.6.2017, DJe 12.6.2017; HC 144652 MC, Rel.: Min. CELSO DE MELLO, julgado em 12.6.2017, DJe 16.6.2017; MS 34855 MC, Rel.: Min. CELSO DE MELLO, julgado em 4.8.2017, DJe 9.8.2017 e MS 34842 MC, Rel.: Min. CELSO DE MELLO, julgado em 4.8.2017, DJe 9.8.2017).
Mais recentemente, esta Segunda Turma, em sessão virtual ocorrida entre 10.5.2019 e 16.5.2019, com ressalva de posição pessoal do eminente Min. Gilmar Mendes, ora Relator, reiterou a aplicação da compreensão explicitada pelo Tribunal Pleno, assentando que, “[p]or se tratar de negócio jurídico personalíssimo, o acordo de colaboração premiada não pode ser impugnado por coautores ou partícipes do colaborador na organização criminosa e nas infrações penais por ela praticadas” (RE 1.103.345 AgR, Rel. Min. Ricardo Lewandowski).
Assim, o retrato do histórico jurisprudencial, que se buscou apreender acerca do enfrentamento do tema nesta Suprema Corte, reflete a reiterada aplicação das conclusões expostas no julgamento do Habeas Corpus 127.483/PR no sentido da inadmissibilidade de que terceiros, ainda que nominados como potenciais coautores ou partícipes, promovam impugnação de acordos de colaboração premiada.
E arrematou sobre a impossibilidade de modificação em sede fracionária:
3 – Impossibilidade de superação em sede fracionária de compreensão assentada pelo Tribunal Pleno:
Por outro lado, é certo que os precedentes judiciais, categoria a qual a doutrina vem atribuindo poderio jurídico correspondente a autêntica espécie de fonte do direito, não devem ser mecanicamente aplicados ou replicados.
Nesse sentido, é viável, em tese, que determinada posição jurisprudencial não se mostre incidente em um específico caso concreto, notadamente em razão de eventuais particularidades próprias. Em tais casos, revelar-se-ia adequado o implemento de distinguishing, que constitui o método de confronto “pelo qual o juiz verifica se o caso em julgamento pode ou não ser considerado análogo ao paradigma”. (TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente judicial como fonte do direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p 174).
Mais especificamente no campo das distinções que podem e, sendo o caso, devem, ser materializadas no momento da aplicação de precedentes, leciona a doutrina:
“Fala-se em distinguishing (ou distinguish) quando houver distinção entre o caso concreto (em julgamento) e o paradigma, seja porque não há coincidência entre os fatos fundamentais discutidos e aqueles que serviram de base à ratio decidendi (tese jurídica) constante no precedente, seja porque, a despeito de existir uma aproximação entre eles, algumas peculiaridades no caso em julgamento afasta a aplicação do precedente.” (DIDIER Jr., Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de direito processual civil. 9. ed. Salvador: Juspodivm, 2014. v. 2. p. 406)
Nada obstante esses apontamentos, depreendo que, a meu ver, o substancioso voto proferido pelo ilustre Relator alicerça-se não em particularidades do caso concreto que pudessem potencialmente refletir a não incidência dos precedentes do Tribunal Pleno, mas, ao revés, assentase no dissenso em relação à prévia e consolidada compreensão, emanada do colegiado maior desta Corte, no sentido da inadmissibilidade de que corréus delatados procedam à impugnação da regularidade e legalidade de cláusulas estabelecidas em acordos de colaboração premiada homologados pela autoridade judiciária competente.
Em síntese, afirma o Relator (grifei) que “é chegado o momento adequado para que se repense a posição adotada pelo Supremo Tribunal Federal em relação à impossibilidade de impugnação dos acordos por terceiros delatados”.
Assinala o eminente Relator ainda que esse novel entendimento autorizaria, inclusive, a superação do verbete 691 da súmula do STF, circunstância que, como se sabe, desafia excepcionalidade que desvele a presença de ilegalidade flagrante ou teratologia. Com as mais respeitosas vênias, compreendo que, embora, em tese, sempre se possa cogitar da superação das prévias posições adotadas pelo Tribunal, tal proceder deve, sendo o caso, ser implementado em sede própria.
Conquanto a estabilidade da jurisprudência consubstancie um valor em si mesmo, conforme se extrai do art. 926, CPC, que, sob o norte da segurança jurídica, impõe aos Tribunais o dever de “uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente”, tenho que essa prescrição normativa não retira, e nem poderia fazê-lo, a possibilidade de reflexão, evolução e superação dos precedentes emanados do Estado-Juiz.
Vale dizer, não propugno interpretação do texto normativo que acarrete espécie de petrificação da compreensão judicial do ordenamento jurídico. Nada obstante, algumas questões, a meu ver, devem ser enfatizadas. Em primeiro lugar, o anteriormente citado art. 926, CPC, naturalmente, impõe aos órgãos de cúpula respeito aos próprios precedentes. No contexto do mencionado dispositivo, cito Luiz Guilherme Marinoni, Sérgio Cruz Arenhart e Daniel Mitidiero:
“O art. 926, CPC, institui claramente o que a doutrina chama de stare decisis horizontal. Ao dizer expressamente que há dever de outorgar unidade ao direito e de fazê-lo seguro o que implica torná-lo cognoscível, estável e confiável o legislador obviamente determinou ao Supremo Tribunal Federal e ao Superior Tribunal de Justiça respeito aos próprios precedentes, além de ter determinado aos Tribunais Regionais Federais e aos Tribunais de Justiça respeito à própria jurisprudência formada a partir dos incidentes de resolução de resolução de demandas repetitivas e de assunção de competência. Isso porque a primeira condição para que exista um sistema de precedentes e de compatibilização vertical das decisões judiciais é o respeito por parte das Cortes Supremas aos seus próprios precedentes. Do ponto de vista da administração da Justiça Civil, não é possível respeitar quem não se respeita.” (Novo Código de Processo Civil comentado. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 990, grifei)
Ao tratar da autorreferência como uma das facetas do stare decisis, Lucas Buril de Macêdo bem afirma que “o Judiciário precisa tomar em conta o que ele mesmo já fez”. E, ao examinar condicionantes a superações dessa natureza, pontua:
“Como o stare decidis está diretamente ligado à estrutura judiciária e à ordem jurídica processual, nomeadamente à previsão recursal, a superação dos precedentes judiciais obrigatórios só é permitida para o próprio tribunal que prolatou a decisão ou para outro que esteja em posição hierárquica superior.
(…)
Insista-se, a superação (overrruling) consiste na retirada de um ratio decidendi do ordenamento jurídico, substituindoa por outra. Com isso, o próprio precedente judicial que lhe servia de referente passa a ser imprestável como fonte da norma, ele é excluído do sistema de fontes, embora possa vir a ser citado como argumento persuasivo. O valor do precedente superado passa a ser histórico, ele não constitui mais autoridade para tomada de decisões judiciais.” (MACÊDO, Lucas Buril. Autorreferência como dever de motivação específicodecorrente do stare decisis. In Estudos de direito processual civil em homenagem ao Professor José Rogério Cruz e Tucci, Editora JusPodivm, 2018, p. 563, grifei)
Ainda no campo das hipóteses de necessidade e das formas de superação de precedentes, bem resume Daniel Mitidiero:
“(…) a regra do stare decisis horizontal pode ser justificadamente deixada de lado pela corte responsável pelo precedente. Isso quer dizer que as Cortes Supremas podem, para promover a unidade do Direito prospectivamente, afastarse justificadamente dos próprios precedentes, superando-os total (overruling) ou parcialmente (overturning) mediante transformação (transformation) ou reescrita (overriding) do precedente.” (Cortes superiores e cortes supremas: do controle à interpretação, da jurisprudência ao precedente. São Paulo: Revista do Tribunais, 2013. pp. 105-6, grifei)
Nessa perspectiva, tenho como inafastável que o Supremo Tribunal Federal deve observar seus próprios precedentes, especialmente a fim de propiciar, não apenas de direito, mas também de fato, a cognoscibilidade, estabilidade e confiabilidade do sistema jurídico. Em suma: o afastamento de prévias manifestações jurisdicionais, portanto, poderá ocorrer sob a perspectiva da não incidência (distinguishing) ou sob a óptica da superação, com verdadeira substituição da compreensão judicial estampada no precedente (overrruling). Enfatize-se que a cogitada superação desafia, por exemplo, acentuado ônus argumentativo, a observância do dever de autorreferência com a explicitação de razões que justifiquem a guinada jurisprudencial, bem como que a superação seja promovida pelo mesmo órgão ou por órgão superior em relação ao qual emana a compreensão objeto de evolução.
Nesse ponto, depreendo, a meu ver, com as mais respeitosas vênias, que não cabe a órgão fracionário repensar compreensão sedimentada do Tribunal Pleno, sobretudo, como ocorre no caso em apreço, em que a matéria foi equacionada, por mais de uma oportunidade, à unanimidade pelo Plenário.
Isso porque a própria noção de colegialidade que caracteriza o agir dos órgãos de cúpula do Poder Judiciário atribui vocação natural ao Plenário quanto à soberania da compreensão acerca da ordem normativa. […] Feita essa exposição, compreendo que, ainda que se afirme que seria oportuno rever e, porventura, superar a posição até então unânime do Tribunal Pleno, não caberia a este órgão fracionário fazê-lo, impondo-se nesta sede, por expressa determinação normativa, a observância do precedente emanado do colegiado maior e que assenta, com nitidez, a inadmissibilidade de que os delatados possam impugnar acordos de colaboração premiada.
O alerta foi devidamente feito, mas deliberadamente igonorado.
De fato, não se pode proceder à (re)discussão em sede (limitada) de habeas corpus (não “originário”, como o era o leading case), muito menos por (apenas) 2 votos e, indiscutivelmente, violando frontalmente aquilo que se pode considerar verdadeiro precedente jurisprudencial (Plenário, de forma unânime).
As compreensões das Cortes Constitucionais não são imutáveis.
Mas elas devem ser submetidas ao devido processo legal para tanto.
A solução seria, em ambos os casos, ter submetido novamente a discussão ao Plenário. Mas não do modo como foi feito.
O desrespeito ao precedente revela-se evidente, independente da posição que se adote.
O devido processo legal deve ser respeitado, a começar pelos próprios integrantes da Suprema Corte.
A discussão é, unicamente, jurídica.
Nem mais. Nem menos.
Quanto ao mérito, já externamos nossa posição em inúmeros escritos, notadamente nos Comentários ao CPP e sua Jurisprudência (2020, 12ª ed, item 155.7).
Se a Corte Constitucional seguir nossa linha de pensamento ou não é uma questão da dialética e democracia do Direito.
O que não podemos admitir é que, sem a observância ao procedimento correto, sejam adotados posicionamentos (“no caso concreto”) com desrespeito ao que disse o órgão competente, o plenário.
Gostemos ou não, eles devem ser respeitados.
Até serem mudados.