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Eugenio Pacelli

Eugenio Pacelli

05/06/2018

[…]não julgues para não ser julgado

Ao menos o título do breve texto que se segue haverá de ter despertado o interesse. Afinal, onde entram os ciscos e as traves na ciência do Direito Penal e do Processo Penal?

Esclareça-se, por primeiro, que oparaleloentre o cisco e a trave se encontra em passagem do Novo Testamento, no Evangelho de Mateus, dqual se poderia extrair a seguinte norma:não julgues para não ser julgado.Ou seja, antes de criticar o cisco no olho alheio, preocupe-se com a trave que vai no seu.

Evidentemente, não pretendemos nos valer domesmo comando bíblico nas linhas que ora começamos a tecer, até porque não haveria Ciência alguma sem um mínimo de atitude crítica e/ou zetética, isto é, sem o questionamento da validade dos conhecimentos e das certezas apontadas aqui e acolá. Aliás, mesmo no âmbito da Filosofia são significativas asviradasna compreensão e na incompreensão das condições de possibilidade do conhecimento humano, impondo-se como dignas de registro as passagens da perspectiva doobjeto,dosujeito(da consciência) e dalinguagem.

O Direito brasileiro experimenta hoje um momento queparece se aproximarperigosamentedo que se poderia denominar deautismo jurídico,se equando pensamos nas diversas instâncias do pensamentonacionale das práticas jurídicas. De fato, oconteúdotemático dos grandes debates então presentes nas academias nacionais, e, sobretudo, o modo como eles são discutidos, parece ter por objeto algo cada dia mais distante do dia a dia da Justiça criminal. Certamente que não se trata dequestões diferentes,mas, sim, de perspectivas radicalmente distintas.

De um lado, na perspectiva mais crítica do Direito Penal, insiste-se cada dia mais nas variadas possibilidades de suadeslegitimação, ou seja, da recusa de qualquer utilidade do sistema, acentuando-se, porém, os marcos divisórios da seletividade do respectivo universo criminalizador (pretos, pobres e prostitutas), como se ainda tratássemos de um Estado polícia, fundado e gerido para a perpetuação das desigualdades sociais, geralmente pela via da criminalização das ações da classe operária pelas classes dominantes.Acentuam-se os marcos divisórios, sem, entretanto, acentuarem-se também os marcoshistóricos,esses sim, quase sempre incontestáveis.

Na outra ponta, e talvez se concretize aqui um inegável ponto de contato entre a prática judiciária e as críticas antes mencionadas, ainda encontramos nos Tribunais certa resistência às novas perspectivas do Direito Penal, no que ele tem de efetivamente novo no campo de sua moderna dogmática, para muito além do horizonte abolicionista que se vai consolidando nas academias. Conceitos importantíssimos como o princípio dalesividade,que deve estar presente em todaaplicaçãodo Direito Penal, terminam por ser equivocadamente manuseados nos Tribunais, nos quais já se consolidou uma jurisprudência no sentido de afirmar ainsignificânciade sonegação de tributos no patamar de até R$10.000,00 (dez mil reais), no Superior Tribunal de Justiça, e de até R$20.000,00 (vinte mil reais), no Supremo Tribunal Federal.

Bem, são perfeitamente compreensíveis as críticas desferidas ao sistema penal, na perspectiva das misérias de nossos cárceres, fonte inesgotável da produção e da reprodução da violência. Não há como não aderir a elas: as desigualdades sociais produzem miséria; com elas, produzem também violência. E levadas ao sistema penitenciário, há nova reprodução da violência, em prejuízo evidente e ainda omitido (pela mídia) ao nível da segurança pública.

No entanto, quando se quiser falar em Ciência, ou quando a pretensão do discurso for epistemológica, a referência à luta de classes e à criminalização da classe operária e da pobreza, por si só, parece insuficiente. Porque ela não vem acompanhada de estudos sobre a responsabilização política, administrativa, civil e também penal da produção de miséria e da violência? E porque não se enfrentam também a fundamentação constitucional, que, à evidência, legitima a intervenção penal na tutela dos direitos fundamentais?

É como dizer que o que falta à Suprema Corte seria a percepção de não poder haver Direito Penal em um país de tamanha desigualdade social

Nesse passo, há sempre uma crítica – sobretudo acadêmica – sobre o viés ideológico e teórico (velha dogmática) dos Tribunais, sem a necessária percepção que muito da justificação de tais críticas se escoram no mesmo horizonte (ideológico e teórico) de quem as faz, distinto apenas na diversidade de visões de mundo e de pretensões de bem e de mal. Eis aqui o cisco, bem identificado no olho do outro, e a trave, encoberta no próprio. Vamos a um exemplo ainda mais claro. Recentemente, um grande número de advogados, acompanhados de alguns membros do Ministério Público e da magistratura, todos eles inseridos no cotidiano das academias nacionais, deram publicidade a uma lista de nomes que, segundo eles, seriam representativos do Direito Penal (ou processual penal), de tal modo a merecer designação ao Supremo Tribunal Federal, Corte que, como se sabe, ressente-se mesmo de um penalista em seus quadros. Com todo o respeito e a admiração que temos a alguns desses nomes, há na lista um identificador em comum: a perspectiva abolicionista ou, de todo modo, deslegitimadora do sistema penal. É como dizer que o que falta à Suprema Corte seria a percepção de não poder haver Direito Penal em um país de tamanha desigualdade social.

E mesmo que, de nossa parte, acompanhássemos o referido ponto de vista, ainda assim ele padeceria, como padece, de uma perspectiva essencialmente democrática, na medida em que se quer recusar validade à determinações constitucionais. Ou, quando nada, à leitura ou interpretação mais frequente da Constituição, como a que ocorre em todos os Tribunais nacionais. Democracia não é e nunca foi maioria, é certo. Mas, também não é e nem pode ser a preferência ideológica ou teórica daqueles que, ainda quando movidos pelos melhores propósitos e as mais nobres pretensões de um mundo melhor, recusam qualquer possibilidade de validade ao argumento contrário.

Fico com BOBBIO, em Carta ao seu amigo Alessandro BARATA, o autor mais seguido na Criminologia nacional, quando convidado por este a integrar um Instituto de Pesquisas na área:

“Que toda sociedade tenha seus crimes específicos é obvio, e não há necessidade de ser marxista para admitir isso. Basta um pouco de senso histórico. Dito isso, é preciso evitar o erro oposto, qual seja, o de pensar que os ‘fenômenos do desvio e da repressão’ devam ser interpretados como ‘aspectos específicos da formação socioeconômica do capitalismo avançado’. Uma tese desse gênero, que é antes de tudo historicamente insustentável, tem o único efeito de levar à deletéria conseqüência (digo deletéria do ponto de vista político) de se acreditar e de se fazer acreditar que basta eliminar o capitalismo para eliminar o desvio (algo semelhante já aconteceu com a teoria da extinção do Estado, e seria bom não repetir o erro a propósito da extinção do desvio).”

Creio, ao contrário, que a tarefa de uma Revista de direito e de política criminal que deseja ser, como a sua, ao mesmo tempo inovadora e científica (e aqui entendo por ‘científica’ o oposto de ‘ideológica’) é a de estudar os fenômenos de desvio da forma capitalista tanto quanto os de outras formações econômico-sociais (por exemplo, dos Estados Socialistas), de conduzir análises comparadas as mais amplas possíveis, as mais isentas de preconceitos, as mais livres de orientações ideológicas pré-constituídas, ao longo de todo o curso da história e nos diversos países e regimes.”[1]


[1]BOBBIO, Norberto,Nem com Marx, nem contra Marx,Org. Carlo Violi, Trad. Marco Aurélio Nogueira.São Paulo: Editora UNESP, 2006, p. 267.)

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