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Recurso extraordinário como instrumento de consolidação dos precedentes brasileiros

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REVISTA FORENSE

Recurso extraordinário como instrumento de consolidação dos precedentes brasileiros

JURISPRUDÊNCIA

RECURSO EXTRAORDINÁRIO

REVISTA FORENSE 434

Revista Forense

Revista Forense

10/08/2023

RESUMO: O objetivo deste artigo é o de apreciar questões relevantes acerca do recurso extraordinário em face das novas disposições do Código de Processo Civil, bem como os rumos que a literatura jurídica e mesmo o entendimento do Supremo Tribunal Federal têm ressaltado. Com uma sistemática que tem por finalidade o prestígio aos precedentes, em que pese a necessidade de alinhamento da ideia que se pretendeu incluir no direito brasileiro do sistema do common law, um dos desafios é entender como um sistema de civil law pode empregar essa sistemática de modo a permitir a eficácia da dinâmica do sistema de precedentes. No mais, em virtude da intenção do legislador em manter as Cortes Superiores como órgãos que prestigiem a fixação de precedentes, relevante questão é entender e delimitar qual o papel do recurso extraordinário no cumprimento de tal tarefa, considerando sua origem no Direito Brasileiro e os rumos que deverá seguir a partir desse momento histórico, inclusive em análise com compromissos internacionais assumidos pelo Brasil.

PALAVRAS-CHAVE: Processo Civil; Precedentes; Recurso Extraordinário; STF; Jurisprudência; Histórico; Direito comparado.

RIASSUNTO: Lo scopo di questo articolo è valutare questioni rilevanti sul al ricorso straordinario alla luce delle nuove disposizioni del Codice di Procedura Civile, nonché le indicazioni che la letteratura giuridica e persino la comprensione del Tribunale federale hanno evidenziato. Con un sistema che mira a dare prestigio ai precedenti, nonostante la necessità di allineare l’idea che intendeva includere il sistema di precedenti di common law nel diritto brasiliano, una delle sfide è capire come un sistema di civil law possa impiegare questo sistema per consentire l’efficacia della dinamica del sistema dei precedenti. Inoltre, a causa dell’intenzione del legislatore di mantenere le Corti Superiori come organi che prestino prestigio all’istituzione di precedenti, una questione rilevante è quella di comprendere e delimitare il ruolo del ricorso straordinario nell’adempimento di tale compito, considerando la sua origine nel diritto brasiliano e nel direzioni che dovrebbero seguire da quel momento storico, anche nell’analisi degli impegni internazionali assunti dal Brasile.

PAROLE CHIAVE:Procedura civile; Precedenti; Ricorso straordinario; STF Giurisprudenza; Storico; Legge comparativa.

SUMÁRIO: 1. ORIGEM HISTÓRICA E CONCEITO – 1.1 PREVISÃO LEGAL, FUNÇÕES DO STF E ANÁLISE DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO – 2. BREVÍSSIMOS APONTAMENTOS SOBRE O DIREITO ESTRANGEIRO. EXPERIÊNCIA DA ITÁLIA E DOS ESTADOS UNIDOS – 3. A REPERCUSSÃO GERAL DA MATÉRIA. USO DA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL – 4. OS ACORDOS DE SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. A OBSERVÂNCIA À AGENDA 2030 DA ONU – 5. CONCLUSÕES – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.

1. ORIGEM HISTÓRICA E CONCEITO

Quando da Proclamação da República, o Brasil rompia definitivamente com o sistema antecedente, definidas as novas diretrizes pretendidas pelo povo brasileiro, que por intermédio dos então governantes, adotou tal forma de governo.

De tal maneira, foi necessário o estabelecimento de regramento de regência para as relações de modo geral, entre tais, as relações entre Estado-Juiz e jurisdicionados, o que ocorreu através do Decreto 848, de 11 de outubro de 1890, como contemplado; no caso específico das funções do STF, a análise de recurso extraordinário, ainda sem tal nomenclatura1.

De tal maneira, conforme esclarece Carlos Bastide Horbach, a legislação indicada pode ser considerada como o marco inicial da jurisdição constitucional brasileira e destaca aspectos como a expressa menção ao emprego de casos oriundos dos Estados Unidos da América na qualidade de fonte de jurisprudência e orientação das decisões daquele país.

Portanto, verifica-se que desde o advento da jurisdição constitucional brasileira, o legislador entendeu que a experiência de outros ordenamentos poderia enriquecer as decisões brasileiras, em que pese a legislação indicada ter sido assim elaborada em virtude da inexistência de parâmetros prévios de origem nacional.

Carlos Bastide Horbach (2015, p. 195) esclarece que:

Desse modo, a jurisdição constitucional brasileira nasce sob o influxo marcante do direito estrangeiro, em especial do direito norte-americano, como bem marcado pelo texto do Decreto 848. Ante o transplante abrupto de instituições republicanas e presidencialistas para um ambiente cultural orientado por anos e anos de práticas constitucionais monárquicas e parlamentaristas – ou pseudoparlamentaristas, como prefeririam alguns críticos do Segundo Reinado –, natural que a doutrina na e a jurisprudência de países experimentados nessas “novidades” fossem a fonte mais fácil e confiável na interpretação e na aplicação da ordem constitucional da República.

Conforme se verifica, não é atual a adoção de modelos que, de certo modo, podem contribuir com o exercício da atividade jurisdicional, bem como as dificuldades das Cortes Superiores no atendimento de suas funções institucionais.

Em todas as Constituições brasileiras, houve a garantia de acesso ao Supremo Tribunal Federal, o que se, se por um lado, torna o Judiciário um Poder cuja democracia para seu acesso permite ao jurisdicionado seu acesso de forma irrestrita, por outro, mostrou ao longo dos anos que a possibilidade de pronunciamentos divergentes entre os Tribunais brasileiros conduzia ao abarrotamento de demandas enviadas ao Pretório Excelso.

A existência de uma medida judicial que possibilite a fixação de entendimento de aplicação nacional, entretanto, permite concluir também pela necessidade de seu uso como importante ferramenta de imposição de segurança jurídica.

Teresa Arruda Alvim (2001, p. 29) define:

As alterações se têm dado ao modo de conceber e de lidar com o direito e no nível do próprio direito positivo. É fácil notarem-se modificações, como se disse há pouco, no âmbito da própria legislação, que acompanham o movimento acima descrito e que implicam certo amortecimento quanto à vontade de que haja segurança, em troca de efetividade, notadamente no âmbito do processo.

Vale ressaltar que a reflexão que entendemos que deva ser feita não recai exclusivamente sobre a racionalização do acesso ao Supremo Tribunal Federal, mas no adequado emprego das medidas que o legislador, seja constituinte, seja ordinário, estabelece como aptos a fortalecer as instituições, entre elas o Poder Judiciário.

Não é de se refutar o que se tratará em momento futuro neste ensaio, que a maior conexão entre os ordenamentos jurídicos, a assunção do Brasil em relação a regras de direito internacional, e no particular tema abordado, quanto à adaptação do Poder Judiciário ao redor do mundo como um dos chamados Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (OSD).

A correlação entre o que se enfrenta no Direito Brasileiro com o que se verifica ao redor do mundo tem lugar desde o início das atividades judicantes dos órgãos brasileiros, de modo que é essencial para o fortalecimento do Poder Judiciário avaliar como tem desempenhado seu papel, conforme as atribuições institucionais que a Constituição Federal e demais regras postas no ordenamento jurídico impõe.

Partindo de tais premissas, abordaremos, brevemente, alguns aspectos sobre sua previsão legal, princípios aplicáveis e limites ao exercício, bem como as novas perspectivas em relação às constantes necessidades de alinhamento e direcionamento no uso das melhores medidas que tenham como objetivo permitir que o Judiciário possa, de fato, ser ferramenta útil ao jurisdicionado, por meio de seu uso racional, do fortalecimento das decisões oriundas dos órgãos que têm o poder de criar orientações vinculantes e assegurar a participação do jurisdicionado no processo de melhoria, inclusive quanto ao seu papel no uso dos mecanismos processuais de forma racional.

1.1 Previsão legal, funções do STF e análise do recurso extraordinário

A Constituição de 1988, cujas proposições apresentaram elementos e mecanismos que afastassem definitivamente qualquer resquício do período de ditadura militar que a precedeu, manteve, em seu art. 102, III, § 3º2, as hipóteses de cabimento do recurso extraordinário, em sua função de guardião da Lei Maior.

Não deixou o legislador ordinário de prever, também no Código de Processo Civil de 20153, de contemplar o recurso especial e extraordinário, como meios processuais de extrema importância para o exercício – pelas Cortes Superiores, de suas funções institucionais.

Consoante orientação do professor Eduardo Arruda Alvim, destacam-se inicialmente as funções nomofilática e uniformizadora, as quais, nos dizeres do processualista, dizem respeito à proteção da letra da lei e à tendência de uniformização do entendimento do Tribunal no que tange à aplicação da norma.

Nesse sentido, assim os dizeres do professor Eduardo Arruda Alvim (2019, p. 211), que com a segurança de sempre assim esclarece:

A essa função de tutela da ordem jurídica objetiva se deu o nome de “nomofilática”, que significa “proteção da letra da lei”, decorrente das palavras gregas nómos, que significa “uso”, “regra”, “norma”, “lei”, e phylaktikós, que quer dizer “que tem a virtude de preservar ou conservar’. […] Liga-se à função nomofilática a função uniformizadora. Calamandrei de há muito identificou a intrínseca relação entre a própria ideia de Estado regido pelo direito e a tendência à uniformização.

Entretanto, além de tais funções tidas pelo professor como clássicas, ao mencionar Teresa Arruda Alvim e Bruno Dantas, ressalta-se o entendimento desses processualistas, que além das funções clássicas definem as funções dikelógica, ligada à justiça do caso concreto, e paradigmática, que versa sobre a persuasão exercida pelas decisões dos Tribunais Superiores aos demais órgãos do Judiciário.

Nesse contexto, fato é que a análise a ser realizada deve obedecer não só à possibilidade conferida pelo ordenamento jurídico de manejar medidas de impugnação a decisões judiciais – entre elas o recurso extraordinário –, mas a racionalidade em seu uso, inclusive como forma de permitir a entrega de qualidade e de modo mais célere da prestação jurisdicional.

Também é importante fortalecer a necessidade de observância, por todos os órgãos do Judiciário e demais Poderes, das orientações emanadas do responsável pela guarda e interpretação da norma constitucional, considerando que o sistema deve ser visto como um todo, razão pela qual devemos fortalecer os comandos oriundos de decisões dos Tribunais Superiores, essencialmente o STF.

Evidentemente, a busca por aprimoramento deve ser incessante, sendo certo que com a Emenda Constitucional 45/2004 (Reforma do Judiciário), o legislador constituinte incluiu como requisito para admissão do recurso extraordinário a repercussão geral da matéria.

Fato é que a repercussão geral, que será tratada adiante, passa a integrar importante ponto de filtragem dos recursos extraordinários, na medida em que se faz necessária a adoção de meios de uso racional do Judiciário.

Mas é de se salientar, de igual maneira, que o Código de Processo Civil de 2015 trouxe uma série de novidades, inclusive com o princípio da primazia do julgamento de mérito e da maior possibilidade de sanação de vícios que assim o possam ser.

O tema é aventado em virtude da necessidade de equilíbrio entre o acesso racional às Cortes Superiores e o direito da parte de efetivamente deduzir suas pretensões de modo a ver assegurado seu direito também constitucional de acesso ao Judiciário.

A regra inserta no art. 932, parágrafo único, do CPC estabelece que o relator, ao verificar a existência de vício que possa prejudicar a apreciação do recurso, deverá intimar a parte para que o corrija ou sane, sendo certo que a observância da regra não afeta a intenção do legislador em racionalizar o acesso às Cortes Superiores, mas permitir um maior aproveitamento dos atos processuais.

Na análise sobre a aplicação de tal comando, os professores Flávio Cheim Jorge e Thiago Ferreira Siqueira (2015, p. 83-88) afirmam:

É que, em relação ao sistema de hoje vigente, a preclusão consumativa impede que as razões recursais sejam juntadas ou mesmo complementadas após a interposição do recurso. No novo sistema, todavia, em que a regra será a possibilidade de correção dos vícios sanáveis, deve o relator, se entender que o recurso não está adequadamente fundamentado, ou mesmo quando inexistente pedido de reforma ou anulação, intimar o recorrente para suprir a falha […] Ou, mesmo, do recurso extraordinário, em que deve o recorrente, em suas razões, “demonstrar a existência da repercussão geral” (NCPC, art. 1.035, § 2º). Ainda que não exista no Código projetado norma semelhante à do atual art. 543-A, § 2º, que exige que o recurso contenha preliminar específica para tanto –, é certo que a fundamentação a respeito se trata de requisito formal do recurso extraordinário.

Portanto, a busca pela melhor prestação jurisdicional deverá sempre apresentar consonância com o sistema como um todo, considerando inclusive os dispositivos constitucionais que asseguram às partes a plenitude de sua defesa, observados os parâmetros legais que a rege, como é o caso do aproveitamento dos atos processuais e a primazia do julgamento de mérito.

A temática, no entanto, não é problema exclusivo do Judiciário brasileiro, sendo certo que a experiência é vivida em outros lugares do mundo, e faremos a seguir breves abordagens sobre dois países: Itália e Estados Unidos.

2. BREVÍSSIMOS APONTAMENTOS SOBRE O DIREITO ESTRANGEIRO. EXPERIÊNCIA DA ITÁLIA E DOS ESTADOS UNIDOS

As questões do número excessivo de demandas que acabam por ser enviadas à apreciação de Cortes Superiores, conforme previamente mencionado, são enfrentadas por diversos países, como Itália e Estados Unidos.

A experiência italiana apresentou problemas semelhantes ao Brasil, na medida em que a Corte de Cassação estava sobrecarregada com o imenso número de recursos de cassação que eram encaminhados àquela Corte.

Ademais, forçoso concluir que em qualquer lugar do mundo as Cortes Superiores devem se fixar como cortes de precedentes, cuja provocação seja necessária somente em casos cuja decisão possa contemplar utilidade para além dos limites de determinada ação de cunho individual, de modo a orientar toda a sociedade sobre como deve ser aplicada determinada norma, após sua palavra final e definitiva.

Em artigo sobre o tema, o Giovanni Bonato (2015, n.p.) assim trouxe os aspectos da realidade italiana e os fundamentos da racionalização do acesso à Corte de Cassação:

Os motivos que levaram o legislador italiano a implantar um mecanismo de limitação ao acesso à Corte de Cassação foram claramente determinados pela necessidade de reduzir o número excessivo de recursos, buscando uma diminuição da carga de trabalho, insustentável para esse órgão da cúpula do Poder Judiciário italiano e, ao mesmo tempo, uma diminuição da duração do processo, a fim de outorgar às partes uma tutela jurisdicional tempestiva, segundo os ditames do princípio constitucional da “duração razoável….] Sobre esse tema bastante debatido, é forçoso reconhecer que se, de um lado, o filtro às Cortes Superiores parece ser uma medida fundamental na busca de uma redução do volume dos recursos e de um processo célere, permitindo transformar esse órgão em uma verdadeira corte de precedentes, de outro lado, a restrição ao direito da parte vencida de obter um controle sobre a decisão proferida em apelação ou em único grau (como dispõe o art. 360 do CPC italiano quanto ao cabimento do recurso) reduz a possibilidade de assegurar a Justiça do caso concreto. Por esses motivos, os estudiosos italianos se dividiram entre: quem sustenta a necessidade de restringir o acesso à Corte de Cassação, para erigi-la em verdadeira corte dos precedentes; aqueles que, contrariando essa visão, consideram o recurso de cassação como um elemento essencial e imprescindível do “devido processo legal” que deve, portanto, sempre ser assegurado à parte sucumbente; por fim, os demais doutrinadores que são favoráveis a uma restrição ao recurso de cassação desde que haja uma modificação do art. 111, parte 7ª, da Constituição, que assegura sem limitação o cabimento do remédio sob enfoque, não podendo o legislador infraconstitucional violar essa garantia constitucional.

Como se verifica, o tema enfrenta reflexões também em outros ordenamentos, exatamente no tocante ao embate entre formar uma corte de precedentes, que atenda à rápida solução dos litígios e a possibilidade de as partes buscarem uma apreciação mais qualificada às demandas que deduzem em juízo.

Na Itália, é possível verificar que, no entendimento do professor Giovanni Bonato, a tentativa de adotar tal filtro foi fracassada, na medida em que a própria jurisprudência balizou entendimento pela impossibilidade de tal dispositivo, sem que exista alteração constitucional, questão também debatida no Brasil.

Assim conclui, então, Giovanni Bonato (2015, n.p.) sobre a controvérsia no direito italiano a respeito do filtro ao recurso de cassação:

Esgotando o nosso tema, podemos notar que a tentativa de introduzir na Itália um verdadeiro filtro “seletivo” ao recurso de cassação fracassou na interpretação oferecida pela jurisprudência, respaldada por uma parte da doutrina. Esta configuração do filtro italiano apenas como “acelerativo”, que ficou exposta acima, decorre claramente da natureza peculiar e dúplice do modelo italiano de cassação e da necessidade constitucional de garantir o direito individual ao processo de cassação.

Levando em conta a atual redação do art. 111, parte 7ª, da Constituição, parece-nos que a mencionada leitura do art. 360 bis do CPC é a única conforme ao ditado constitucional. Com efeito, parece violar a Constituição e ser contrário ao garantismo processual introduzir um verdadeiro filtro no Código de Processo Civil italiano sem modificar preliminarmente a disposição constitucional que assegura amplamente o cabimento do recurso de cassação. Adicionalmente, ressalte-se que, ao passo que segundo à tendência majoritária em direito comparado a função preeminente do recurso aos tribunais de cúpula é a pública da coordenação e uniformidade da jurisprudência, no pensamento jurídico italiano, como vimos anteriormente, é ainda hoje muito forte a conceituação do remédio do recurso de cassação como direito individual de toda parte. Porém, sobre esse assunto, há vozes em sentido contrário. Assim, uma parte expressiva da doutrina italiana propugna que sem a necessidade de alterar o mencionado art. 111, parte 7ª, seria possível implantar um verdadeiro e “robusto” filtro à Corte de Cassação, de modo que ela se pronuncie no mérito unicamente quando o recurso envolva uma questão de relevância geral ou seja interposto em face de uma decisão que contraria as orientações constantes da Corte. Ao final, pelas razões que ficaram expostas, pensamos que uma introdução de um verdadeiro e eficaz filtro ao recurso de cassação, destinado a prestigiar a função nomofilática da Corte, não seria inviável no sistema italiano. Contudo, essa reforma deveria passar não só por uma necessária modificação do art. 111, parte 7, da Constituição, mas também por uma nova configuração do órgão sob análise no seio do sistema processual italiano.

Seguramente, a busca pelas melhores alternativas de funcionamento do Poder Judiciário enfrentarão diversos questionamentos, sendo certo que nem mesmo no Brasil, tampouco em qualquer outro país os acalorados debates entre filtragem de recursos e acesso às Cortes Superiores existirão, mas é certo que devemos equalizar as questões de modo a trazer o resultado prático mais útil ao jurisdicionado.

Nos Estados Unidos, país notadamente reconhecido pela força de seus Poderes, a questão também não passa ao largo.

Como explana Adhemar Ferreira Maciel, a Constituição estadunidense é um documento de cunho eminentemente principiológico, razão pela qual contemplou o Poder Judiciário Federal com um único artigo, que trata exatamente da Suprema Corte, sendo-lhe fixada somente a competência originária (trial court), competindo ao Congresso daquele país a fixação das competências recursais (appelate jurisdiction).

Entretanto, do mesmo modo que em qualquer lugar do mundo, a industrialização dos Estados Unidos e sua marcha de crescimento também aumentaram o número de demandas judiciais, o que também ocasionou a necessidade de adaptações no que diz respeito ao acesso à Suprema Corte dos Estados Unidos.

Em seu artigo sobre o tema, Adhemar Ferreira Maciel (2022, p. 8) traz os seguintes pontos relevantes:

Com a industrialização dos Estados Unidos, o número de apelações que deviam ser apreciadas obrigatoriamente (mandatory appeals) pela Suprema Corte aumentou muito. Com isso, teve-se de alterar em 1891 a Lei Orgânica do Judiciário Federal (1789 Judiciary Act). Foram, como se antecipou, criados os “Circuits”, ou seja, os tribunais regionais federais (U.S. Courts of Appeals), que passaram a atuar como tribunais intermediários em relação à Suprema Corte e à primeira instância federal. Introduziu-se, mais, na jurisdição recursal, o instituto do Writ of Certiorari, de raízes no common law. Algumas apelações continuaram de conhecimento obrigatório (mandatory); outras, porém, só por meio de petition for writ of certiorari. A pauta da Suprema Corte tornou-se mais uma vez compatível.

Entretanto, do mesmo modo que em qualquer lugar do mundo, a industrialização dos Estados Unidos e sua marcha de crescimento também aumentaram o número de demandas judiciais, o que ocasionou a necessidade de adaptações no que diz respeito ao acesso à Suprema Corte dos Estados Unidos.

É importante traçarmos esses pontos referentes à realidade dos Estados Unidos exatamente por ter nosso país, desde a criação do Judiciário, ter empregado como paradigma os ditames estadunidenses, considerando que após as adaptações feitas, ainda foram identificadas várias dificuldades no controle das demandas e recursos endereçados à Suprema Corte.

De tal modo, o crítico problema concernente à racionalização de acesso aos Tribunais Superiores não é exclusivo de nosso país, e alguns mecanismos não só de filtragem humana como eletrônica têm sido implementados no direito brasileiro.

3. A REPERCUSSÃO GERAL DA MATÉRIA. USO DA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL

Conforme já salientado, com a Emenda Constitucional 45/2004, o legislador constituinte reformador implementou novo requisito de admissibilidade do recurso extraordinário, a repercussão geral da matéria.

Sua finalidade é estabelecer mais um elemento de seleção dos recursos extraordinários a serem encaminhados ao STF, inclusive com necessidade de demonstração da transcendência e relevância do julgamento da causa submetida à apreciação.

Como o legislador constituinte também visa, desde então, fortalecer o STF como uma corte de precedentes, a repercussão geral da matéria se firmou como elemento de grande importância para esse controle, pois seu reconhecimento determina a suspensão dos casos com idêntica controvérsia.

Em análise sobre esse tema, Rogério Mollica (2017, n.p.) pontua o seguinte:

A Repercussão Geral visa precipuamente: (i) firmar o papel do STF como Corte Constitucional e não como instância recursal; (ii) ensejar que o STF só analise questões relevantes para a ordem constitucional, cuja solução extrapole o interesse subjetivo das partes; (iii) fazer com que o STF decida uma única vez cada questão constitucional, não se pronunciando em outros processos com matéria idêntica. […]

Com o instituto da Repercussão Geral a Corte deixou julgar milhares de processos repetitivos sobre a mesma matéria. De fato, o Supremo Tribunal Federal passou a escolher um pequeno número de processos representativos de determinada tese, devolvendo os outros processos similares ao Tribunal de Origem. Estes Tribunais devem sobrestar os feitos e aguardar a decisão do Supremo. Se o STF decidir pela inexistência de repercussão geral, nega-se seguimento a todos os Recursos Extraordinários (RE) e Agravos de Instrumento (AI) sobre a referida matéria. Se o STF decidir pela existência da repercussão geral, aí poderemos passar ao julgamento por amostragem, conforme será visto no próximo tópico. Assim, verifica-se que a grande maioria dos processos repetitivos nem chega a ser encaminhada ao Supremo Tribunal Federal, reduzindo substancialmente a carga da Corte Suprema, que poderá se dedicar à discussão de questões inéditas e relevantes, ao invés de somente repetir decisões anteriores sobre questões já pacificadas pelo STF. Não é crível supor que, com cada Ministro recebendo quase mil processos mensais, a Corte Suprema tenha tempo para analisar a fundo questões não repetitivas e de repercussão para toda a sociedade. Assim, o referido filtro mostrou-se importante e surtiu bons efeitos no curto e médio prazo. É de se ressaltar que a exigência da demonstração da existência da Repercussão Geral é aplicável de modo indistinto a todos os recursos extraordinários, independentemente de tratarem de matéria penal, administrativa, tributária etc.

De tal modo, vemos que o legislador brasileiro também busca mecanismos de aprimoramento do Judiciário, na medida em que o jurisdicionado passou a procurar solucionar suas controvérsias cada vez mais junto ao Poder Judiciário, o que acarretou também no Brasil enormes dificuldades para todos os órgãos, inclusive o STF.

Com o novo requisito de admissibilidade dos recursos extraordinários, já foi possível identificar considerável melhora na tramitação de ações que chegam ao Pretório Excelso, em que pese ainda ser considerável o número de demandas que ascendem à Corte.

Contudo, uma questão tem sido bem desenvolvida na seara do STF para otimização das atividades, qual seja o uso da inteligência artificial para seleção das matérias com passível repercussão geral.

Em vasto artigo sobre o tema, Fausto Santos Morais (2021, p. 306-326) esclareceu:

Kevin Ashley aponta para os avanços da inteligência artificial voltada ao Direito, especialmente para auxiliar o jurista no exercício das suas atividades. Conforme ressalta Ashley, a inteligência artificial tem atualmente a capacidade de extrair informações dos textos legais e auxiliar os humanos a resolverem as questões jurídicas (2017, p. 11). Essa colaboração seria a marca de programas computacionais caracterizados pela recuperação argumentativa (Argument Retrieval) e pela computação cognitiva (Cognitive Computing)12. O funcionamento de programas como esses pressupõe a participação dos juristas em uma etapa de modelação do raciocínio jurídico, seja com base na legislação (Statutory Reasoning) ou em precedentes (Cased-Based Reasoning). […]

Vale, preliminarmente, esclarecer o contexto legal processual de funcionamento do programa. De uma forma geral, cabe ao Supremo Tribunal Federal definir os temas de repercussão geral ou não, vinculando os recursos apresentados ao tribunal a esses temas. Assim, tem-se três resultados: sem repercussão, com repercussão ou, ainda, não definido. Quando o tema não possui repercussão, os recursos apresentados sobre aquela temática devem ter a sua admissibilidade negada. Se o tema possui repercussão geral, surgem duas possibilidades: já julgado, os recursos apresentados devem reproduzir o mesmo entendimento; ainda não julgado, reúnem-se os recursos sobre a mesma matéria em um grupo, aguardando o julgamento pelo caso representativo. No caso de a temática ainda não ter sido definida como de repercussão geral, os recursos sobre o mesmo assunto são reunidos em grupos e ficam aguardando essa definição.

Assim, uma das tentativas é a implementação de meios eletrônicos no auxílio das atividades jurisdicionais, o que se verifica desde o advento da Lei 11.419/2006, que dispõe sobre a informatização dos processos, mas o que gera dúvida sobre o emprego nesse tipo de atividade, considerando se tratar de atividade intelectual cujo princípio do juiz natural deveria ser observado.

Entretanto, é inegável que a inteligência artificial tem papel fundamental no suporte a ser conferido ao Judiciário, certamente devendo ser avaliada a melhor maneira de utilização da tecnologia, a fim de não prejudicar a atividade dos juízes e o direito de o jurisdicionado ter sua demanda apreciada por órgão investido de jurisdição.

4. OS ACORDOS DE SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. A OBSERVÂNCIA À AGENDA 2030 DA ONU

Por fim, é de se ressaltar que às partes envolvidas em determinado litígio também compete observar a racionalidade no uso dos instrumentos processuais para uma prestação jurisdicional.

Com as novas disposições do Código de Processo Civil, é possível às partes estabelecerem negócios jurídicos processuais. Entre tais negócios, a fixação de competência recursal denominada per saltum, ou seja, após a decisão de primeiro grau, as partes podem estabelecer que o caso seja analisado diretamente pelo Supremo Tribunal Federal.

Não é possível, entre tais acordos, firmar competência originária em tribunal de segunda instância ou de sobreposição, e como analisa Antônio do Passo Cabral (2017, p. 53-66):

Não é possível iniciar o processo em instância recursal porque o primeiro grau de jurisdição – seja a primeira, seja a segunda instância (nas hipóteses de competência originária dos tribunais) – é destinado à investigação fática primária, em contato direto com as partes, algo que nos parece imprescindível no quadro do princípio do devido processo legal.

O processualista Flávio Luiz Yarshel (2015, p. 89-94) também salienta a questão do prestígio ao negócio jurídico processual, trazendo a seguinte reflexão:

De outro lado, é imperativo que os magistrados estejam verdadeiramente abertos a esse novo cenário. Poderá haver quem seja cético e pense – talvez diga – que não há como ter processos particularizados perante órgãos já atarefados. Mas não é essa seguramente a ideia. Ao conferir espaço para a autonomia da vontade, o que almejou a lei reforçar a cooperação que as partes possam dar para o bom andamento dos processos e para a resolução das controvérsias. Portanto, depende do esforço e da boa vontade de todos os envolvidos o sucesso ou fracasso das novas disposições.

Porém, apesar de se admitir a existência do negócio jurídico processual, não parece razoável sobrecarregar o STF com acordos processuais que estabeleçam competência recursal imediata para a Corte Suprema.

É de se recordar que o Código de Processo Civil também estabelece o princípio da cooperação, o que devemos considerar inclusive para incidir em negócios jurídicos processuais, de modo a servir como fundamento de eventual negativa de estabelecer acordo de supressão de instância, já que a razoável duração do processo e a fixação do STF como corte de precedentes também passa pela atuação das partes.

Ademais, o Brasil, na qualidade de signatário da Agenda 2030 da ONU, deve estabelecer mecanismos para atingimento dos chamados OSD, em número de 17, sendo que o objetivo 16 tem como meta “Promover sociedades pacíficas e inclusivas para o desenvolvimento sustentável, proporcionar o acesso à justiça para todos e construir instituições eficazes, responsáveis e inclusivas em todos os níveis”.

De tal modo, na medida em que o Brasil assume como meta o desenvolvimento de instituições eficazes, não se afigura razoável estabelecer atalhos processuais que causem exatamente ineficácia da Corte, objetivo contrário àquele contido no compromisso internacional assumido pelo país.

Assim, creio que, apesar de possível o estabelecimento de tais acordos, não seja producente adotar tal tipo de providência, na medida em que também é possível contar com diversos meios alternativos de solução de controvérsias.

5. CONCLUSÕES

É certo que as evoluções oriundas do desenvolvimento humano, seja ele intelectual, tecnológico e social; trazem novas demandas e novas controvérsias, que inevitavelmente serão objeto de apreciação judicial.

Portanto, não só é essencial que tenhamos cortes de precedentes que tragam segurança jurídica à coletividade, com decisões que sejam de observância obrigatória por todos os órgãos não só do Judiciário, mas de igual maneira de todos os demais poderes.

O recurso extraordinário, nesse particular, é importante ferramenta para que tal direcionamento ocorra, e como meio de criação de precedentes pelo STF, seu conhecimento passa por rigoroso processo, como efetivamente deve ser.

Salienta-se que o problema do grande número de demandas que chegam aos Tribunais Superiores, como pontuado no presente trabalho, não é exclusivo do Brasil, o que leva a uma busca geral por criação de meios de racionalização da prestação jurisdicional em todo o mundo.

O uso da inteligência artificial também é relevante para efetivamente acelerar o procedimento, mas não deve substituir o trabalho humano, até mesmo para prestigiar o princípio do juiz natural.

Não só a criação de filtros processuais corroboram com a remessa somente de processos que efetivamente demonstrem aspectos de relevância e transcendência que justifiquem sua apreciação pelo STF, mas mesmo o uso racional do processo pelas partes, de modo a não criar incidentes ou negócios processuais que acabem por criar novos embaraços para a celeridade do processo.

Sobre o autor

Rafael Elias da Silva Ferreira

Mestrando em Direito Processual Civil pela PUC-SP. Pós-graduação lato sensu em Direito Processual Civil pela PUC-SP. Bacharel em Direito pela Universidade Braz Cubas. Advogado.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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CABRAL, Antônio do Passo. Recurso Per Saltum Negocial: Convenção Processual para Supressão de Instância. In: DANTAS, Bruno BUENO; Cássio Scarpinella; CAHALI, Cláudia Elisabete Schwerz; NOLASCO, Rita Dias (coord.). Questões relevantes sobre recursos, ações de impugnação e mecanismos de uniformização de jurisprudência. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 53-66.

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YARSHELL, Flávio Luiz. Convenção das partes em matéria processual no novo CPC. Revista do Advogado, Ano XXXV, n. 124, p. 89-94, maio 2015.


NOTAS

1 “Art. 9º Compete ao Tribunal: […] II – Julgar em gráo de recurso e em ultima instancia: a) as questões decididas pelos juizes de secção e de valor superior a 2:000$000; b) as questões relativas á successão de estrangeiros, quando o caso não for previsto por tratado ou convenção; c) as causas criminaes julgadas pelos juizes de secção ou pelo jury federal; d) as suspeições oppostas aos juizes de secção. Paragrapho unico. Haverá tambem recurso para o Supremo Tribunal Federal das sentenças definitivas proferidas pelos tribunaes e juizes dos Estados: a) quando a decisão houver sido contraria á validade de um tratado ou convenção, á applicabilidade de uma lei do Congresso Federal, finalmente, á legitimidade do exercicio de qualquer autoridade que haja obrado em nome da União – qualquer que seja a alçada; b) quando a validade de uma lei ou acto de qualquer Estado seja posta em questão como contrario á Constituição, aos tratados e ás leis federaes e a decisão tenha sido em favor da validade da lei ou acto; c) quando a interpretação de um preceito constitucional ou de lei federal, ou da clausula de um tratado ou convenção, seja posta em questão, e a decisão final tenha sido contraria, á validade do titulo, direito e privilegio ou isenção, derivado do preceito ou clausula.”

2 “Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: […] III – julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida: a) contrariar dispositivo desta Constituição; b) declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal; c) julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face desta Constituição; d) julgar válida lei local contestada em face de lei federal. § 3º No recurso extraordinário o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços de seus membros.”

3 “Art. 1.029. O recurso extraordinário e o recurso especial, nos casos previstos na Constituição Federal, serão interpostos perante o presidente ou o vice-presidente do tribunal recorrido, em petições distintas que conterão: I – a exposição do fato e do direito; II – a demonstração do cabimento do recurso interposto; III – as razões do pedido de reforma ou de invalidação da decisão recorrida.”

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  1. Os originais devem ser digitados em Word (Windows). A fonte deverá ser Times New Roman, corpo 12, espaço 1,5 cm entre linhas, em formato A4, com margens de 2,0 cm;
  2. Os trabalhos podem ser submetidos em português, inglês, francês, italiano e espanhol;
  3. Devem apresentar o título, o resumo e as palavras-chave, obrigatoriamente em português (ou inglês, francês, italiano e espanhol) e inglês, com o objetivo de permitir a divulgação dos trabalhos em indexadores e base de dados estrangeiros;
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