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Precedentes e Jurisprudência no Novo CPC: Novas Técnicas Decisórias? – Parte 2
Carlos Alberto de Salles
04/02/2020
Confira a segunda parte do artigo de Carlos Alberto de Salles a respeito dos precedentes e jurisprudência no Novo CPC. Entenda o que é precedente normativo e jurisprudencial, as diferenças da common e civil law, entre outras informações importantes:
Precedente normativo e precedente jurisprudencial
Nessa temática é sempre presente a referência aos sistemas do common law.[14] De fato, em matéria de precedentes temos muito que apreender da cultura e tradição dos países que usam esse sistema jurídico.
É preciso, no entanto, primeiramente, fazer uma distinção importante sobre o significado dos precedentes naquele sistema e nos sistemas de direito codificado.[15] No Brasil, temos uma cultura formada em uma longa tradição de direito codificado, que remonta ao direito português vigente desde os tempos coloniais. Natural, assim, ter na lei a principal – senão única – fonte de direito. Em razão desse fato, quando buscamos uma norma vamos ao direito positivado nas leis e códigos.
Difícil, dessa maneira, entender o sistema do common law como um sistema normativo e, mais ainda, de direito positivo baseado em precedente judiciais. Essa qualidade desse sistema, porém, é possível exatamente porque a principal fonte do direito é o precedente. No caso, diversamente dos países do chamado civil law, o sistema de precedentes é um sistema normativo.
Da mesma maneira que, por exemplo, buscamos no Código Civil a norma aplicável a uma lesão patrimonial, nos países que adotam o common law, essa norma é buscada nos precedentes.[16]
Vale insistir, o precedente no common law tem um conteúdo normativo. Na maior parte dos países que adotam o common law, atualmente, porém, não é uma fonte exclusiva. Esses países possuem um variável campo de direito legislado, como é o caso dos Estado Unidos, lá chamado de statutory law. Convivem, portanto, dois sistemas, um baseado em precedentes e, outro, em direito legislado. Dependendo da matéria, aplica-se o sistema do common law ou se recorre ao direito legislado.
O sistema de precedentes funciona em bases tradicionais e históricas, formadas culturalmente ao longo de muitos séculos. Diversamente do que muitas vezes parece se pretender fazer no Brasil, não há uma regra de direito legislado determinando a vinculação aos precedentes. Esse é o elemento “costumeiro” do direito do common law. Adere-se aos precedentes porque é costume que assim se faça e esse elemento, não positivado, dá funcionalidade ao sistema jurídico.
No Brasil, como nos demais países de direito codificado, aqueles do chamado civil law, o precedente não tem – e não poderia ter – caráter normativo. Afinal, nos falta, exatamente, aquele caráter consuetudinário que faz o common law funcionar, ou seja, a vinculação aos precedentes, feita de maneira tradicional, não legislada. Não é essa a fonte primária em nosso direito. A fonte primária de nosso direito está nas leis.
Por essa razão, devemos olhar os precedentes com diferente função e finalidade. Os precedentes, para nós, não são normativos, mas jurisprudenciais. Buscamos neles, não a norma, mas uma unidade de sentido para aqueles preceitos normativos encontrados em nossas leis.
A finalidade dos precedentes em nosso sistema é, sobretudo, interpretativa, com função de padronização do sentido emprestado a determinada norma legal. Afinal, a bem da coerência e estabilidade do sistema jurídico, deve-se esperar a mesma aplicação de uma norma, em casos idênticos. Se no julgamento de um caso aplicou-se a norma no sentido “A”, é de se esperar que em casos similares não se aplique no sentido “B” ou “C”.
A aplicação dos precedentes, como técnica decisória, assim, pode contribuir para a eficiência e uniformidade das decisões judiciais. Quer dizer, a aplicação de precedentes pode, a um só tempo, facilitar o julgamento e garantir maior coerência entre as várias decisões proferidas no sistema jurisdicional.
Da perspectiva do julgador, tem-se a facilidade de, identificado o precedente, julgar por remissão a ele. Da perspectiva do sistema jurídico, tem-se a maior adesão aos precedentes, apta a gerar maior depuração do sentido das normas. Essa técnica decisória propicia uma maior atenção do julgador à coerência de seus próprios julgamentos, interna (julgar casos iguais de maneira igual) e externamente (julgar casos iguais de maneira igual à que seriam julgados nas instâncias superiores).
Mecanismos básicos do Novo CPC
Como dito acima,[17] mesmo sem desmerecer o esforço de regulamentação autônoma da matéria relativa à jurisprudência e aos precedentes,[18] faltou ao NCPC a criação de mecanismos procedimentais mais aptos a introduzir nas práticas processuais uma maior e melhor utilização desses mecanismos.
Considerados os atávicos problemas de dispersão de nossa jurisprudência e da pulverização de grande número de demandas veiculando pretensões fundadas em idêntica controvérsia jurídica, o NCPC procurou dar resposta por três caminhos: (i) o reforço a utilização de súmulas do Supremo Tribunal Federal – STF e do Superior Tribunal de Justiça – STJ para fins sumarização de julgamentos, em primeiro grau e em recurso; (ii) criar o incidente de resolução de demandas repetitivas e o incidente de assunção de competência; e (iii) reforçar o recurso especial repetitivo e criar o recurso extraordinário repetitivos.[19]
Apesar de esses últimos mecanismos não serem baseados em jurisprudência ou precedentes, o NCPC lhes empresta eficácia similar às súmulas dos tribunais superiores. Com isso o julgamento por esses meios processuais acaba por ocupar o papel de um precedente destacado, com força verdadeiramente vinculante, um “superprecedente”.
Em outras palavras, o processo em relação ao qual haja precedente dessa espécie deverá ser julgado, em primeiro grau ou em recurso, de maneira sumária com a aplicação do que foi decidido em procedimento de repetitivo ou em assunção de competência.
O NCPC, a par do preceito geral estabelecido no art. 927, utiliza-se, basicamente, de dois mecanismos processuais para dotar os precedentes desses casos de especial eficácia, o julgamento de improcedência liminar[20] e a decisão monocrática pelo relator, dando ou negando provimento ao recurso.21 O legislador pretendeu, nos dois casos, uma sumarização do procedimento, de forma a levar a um julgamento conforme ao que foi decidido naqueles incidentes ou na modalidade recursal repetitiva.
O juiz que, ao apreciar demanda que dispense a fase instrutória,22 vislumbrar a existência de julgamento desfavorável em caso repetitivo ou decidido em assunção de competência, deverá proferir julgar improcedente o pedido do autor, de maneira liminar. Da mesma forma, o relator, nas mesmas circunstâncias, poderá dar ou negar provimento ao recurso, reformando ou mantendo a decisão de grau inferior.
A técnica decisória para que isso ocorra, sem dúvida, será aquela dos precedentes. O julgador deverá analisar se há coincidência da matéria, de fato e de direito, com esse especial precedente. Havendo, deverá apenas aplicar o precedente. Nessa hipótese, como na técnica de precedentes em geral, o julgador deverá proceder nos termos do art. 489, inciso V, do NCPC, demonstrando a adequação do caso em julgamento aos fundamentos daquele tomado por paradigma.
A crítica que pode ser feita a propósito da eficácia emprestada a esses novos mecanismos é que, diversamente das súmulas de jurisprudência, o julgamento desses casos não foi submetido à devida decantação jurisprudencial da matéria, não tendo por referência uma sucessão de julgados.
De fato, são decisões que acabam chegando a um grau de efetividade por meio de um bypass,[23] um atalho, processual para ganhar maior força como precedente. Mesmo com a justificativa de se evitar a tramitação de um grande número de processos, é preciso que os julgadores, nesses casos, tenham redobrado cuidado na prolação da decisão.
Inconstitucionalidade?
Há quem veja essa nova sistemática de aplicação de precedentes eivada de inconstitucionalidade.[24] Se bem compreendida e aplicada a sistemática estabelecida pelo NCPC, no entanto, não se vislumbra qualquer inconstitucionalidade.
O argumento de maior abrangência, sustentando a inconstitucionalidade, seria no sentido de que a vinculação obrigatória às súmulas do STF e STJ, bem como às decisões em julgamentos repetitivos, invadiria seara legislativa, por permitir ao Judiciário estabelecer normas, o que fugiria de suas atribuições constitucionais. Isso porque se trataria de “vinculação a preceitos abstratos, gerais, vale dizer, com características de lei”.[25]
A propósito deve-se ponderar que, com esses mecanismos, o Judiciário não está criando norma jurídica, legislando. Apenas está dotando de significado unívoco norma que foi criada pela via legislativa. A simples – e discutível – abstração e generalidade não fazem da decisão judicial uma lei. Entender ao contrário significaria dizer que, por exemplo, as decisões de procedência de ações declaratórias de inconstitucionalidade, ou a edição de súmulas vinculantes, constituem atividade legislativa exercida pelo Judiciário, o que evidentemente não se cogita.
Decisões judiciais, em nosso sistema jurídico, mesmo que sumuladas, não criam normas jurídicas, mas apenas dão conteúdo concreto àquelas normas criadas legislativamente. Eventual transgressão a esse limite, constitui evidente desvio, que não deve servir para desconfirmar a regra.
No sistema do common law, o precedente efetivamente tem natureza normativa, mas não é o que acontece em sistemas jurídicos de direito codificado, como é o caso do Brasil. Como apontado acima,[26] as técnicas decisórias de aplicação de precedentes nesses sistemas se faz com diferente finalidade e função. Os dispositivos questionados do NCPC longe estão de pretender adotar o sistema do common law, medida, aliás, que seria de difícil consecução, tendo em vista a falta de vários fatores estruturais. Por ora cuida-se apenas de aplicar o precedente jurisprudencial com o objetivo dotar uma norma (legislada!) de unidade de sentido.
Destaque-se, ainda, que no julgamento de casos repetitivos e de assunção de competência, vinculando outros órgãos jurisdicionais, a questão é, essencialmente, de competência. Nesses casos, nas circunstâncias apontadas pelo código, a competência se desloca para o órgão indicado como competente para julgar o incidente ou recurso repetitivo.
Conclusões
A resposta à questão formulada no título deste artigo certamente é negativa. O NCPC não traz novas técnicas decisórias relativas à jurisprudência e aos precedentes, principalmente se consideradas todas as possibilidades na vigência do CPC/1973. Alguns instrumentos criados pelo novo código, entretanto, possam revitalizar as técnicas decisórias baseadas nesses institutos.
Na verdade, as técnicas decisórias propostas, de referência à jurisprudência e a precedentes, já eram conhecidas na vigência do CPC/1973 e podiam ser postas em prática, mesmo sem uma regulamentação processual específica. O uso da jurisprudência como método persuasório, integrado à motivação do julgado, e a técnica de decisão por precedentes já eram conhecidos de nossas práticas judiciárias, com variável grau de utilização. Relativamente aos precedentes, havia, até mesmo, disposição específica a sugerir a utilização dessa técnica decisória, a partir de precedente do próprio juízo (art. 285-A, do CPC/1973).
Observa-se, de fato, um esforço do NCPC para aprimoramento dessas técnicas decisórias, sobretudo, por meio do incentivo à uniformização da jurisprudência (art. 926) e aumento da vinculatividade das decisões a enunciados de súmula dos tribunais superiores e a certa categoria de precedentes (art. 927, em leitura conjunta com os arts. 332 e 932, IV e V).
Embora o novo diploma processual pudesse ter trazido uma melhor elaboração procedimental dessas técnicas, algumas das mudanças trazidas permitem antever possibilidades de aprimoramento nesse sentido. Em especial, a determinação de se observarem as decisões em julgamentos de casos repetitivos (art. 928) e em incidente de assunção de competência, com consequente possibilidade de improcedência e julgamento monocrático pelo relator em grau de recurso, criam um “superprecedente”, possibilitando o julgamento a partir da simples identificação entre os casos em cotejo.
Destaque-se que, mesmo sem essa força de vinculação, para fins de facilitação da decisão, um precedente qualquer pode ser invocado para julgamento nos termos do que fora decidido, o caso em julgamento se amoldar ao antecedente, seja aquele do mesmo órgão julgador ou outro, de hierarquia igual ou superior.
Insista-se que a natureza do precedente em nosso sistema jurídico é diversa daquela dos países do common law. Lá o precedente é normativo, constituindo fonte primária do direito. Em sistemas de direito codificado, como o nosso, o precedente é apenas jurisprudencial. A identidade dos casos permite sua utilização no caso sucessivo, com a vantagem da uniformidade das decisões e da facilidade de julgamento.
Por fim, destaque-se, não se vislumbra qualquer inconstitucionalidade nos institutos criados a esse respeito pelo NCPC. A atividade jurisdicional desenvolvida nas hipóteses tratada não é legislativa. Muito ao contrário, é atividade típica da jurisdição nos sistemas jurídicos do chamado civil law, qual seja a de dotar de significado concreto as normas legais vigentes no sistema. A vinculação de outros órgãos jurisdicionais a súmulas e nas decisões dos incidentes e julgamentos aqui tratados é mera questão de competência, no sentido de estabelecer a decisão que deve ser prevalecente. Para tanto, prescinde-se de regramento constitucional.
Referências
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[13] Discutindo a questão da validade dos atos processuais à luz da ausência de prejuízo, cf. BEDAQUE, José
Roberto dos Santos. Efetividade do processo e técnica processual. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 443/457.
[14] Sobre as premissas do common law e seu relacionamento com direito brasileiro, v. FINE, Toni M. Introdução
ao sistema jurídico anglo-americano. São Paulo: Martins Fontes, 2011; SOARES, Guido Fernando Silva. Common
law: introdução ao direito dos EUA. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999; MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 23-101. Para uma perspectiva histórica,
v. TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente judicial como fonte do direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004;
[15] Usando o termo “precedentes à brasileira”, v. BUENO, Cassio Scarpinella. Novo Código de Processo Civil
anotado. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 567.
[16] Impressiona notar como, na maior parte das vezes, as normas encontradas nos dois sistemas acabam
sendo muito próximas.
[17] V. item 1.
[18] Arts. 926 a 928 do NCPC.
[19] Consolidando os mecanismos repetitivos, criou a designação julgamento de casos repetitivos, abrangendo todas as possibilidades (art. 928 do NCPC).
[20] V. art. 332 do NCPC, em especial inciso III.
[21] V. art. 932, incisos IV e V, do NCPC.
[22] Nos termos do caput do art. 322 do NCPC, isto é, envolvendo matéria exclusivamente de direito ou de direito e de fato demonstrável documentalmente.
[23] Descrevendo como, diante da impossibilidade de se alcançar resultados por meio de uma instituição tradicional, se criam vias alternativas para atingir os resultados desejados sem a necessidade de grandes reformas institucionais, v. PRADO, Mariana Mota. Bypasses institucionales en Brasil: superando la resistencia ex ante a las reformas institucionales. In: FISS, Owen (Org.). SELA: 20 años pensando en los derechos y la democracia. Buenos Aires: Libraria Ediciones, 2015. p. 128-147.
[24] Nesse sentido, cf. NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 1836-1837. Entendendo de maneira diametralmente oposta, inclusive com a extensão de efeito vinculante, também, a qualquer decisão proferida em sede de recurso extraordinário, cf. MARINONI, Luiz Guilherme. Comentários aos artigos 926 a 928. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; DIDIER JÚNIOR, Fredie; TALAMINI, Eduardo; DANTAS, Bruno. Breves comentários ao Novo Código de Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. p. 2076-2077.
[25] NERY JÚNIOR e NERY. Op. cit., p. 1836.
[26] V. item 3.
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