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PROCESSO CIVIL
Os requisitos legais da tutela de urgência
Carlos Alberto de Salles
09/01/2025
Na tutela provisória, a disciplina legal do Código de Processo Civil estabelece critérios para caracterizar a urgência. São os parâmetros pelos quais uma resposta jurisdicional dotada de imediatidade mostra-se cabível. Não obstante a literalidade do Código,1 que menciona risco de modo parcial, apenas em relação ao resultado útil do processo, o conceito pode ser colocado como instrumento de análise, para interpretação e aplicação de todos os requisitos legais.
O problema que se busca aqui resolver a esse propósito é o de dar conteúdo mais preciso e compreensão mais sistemática aos requisitos estabelecidos pelo Código. Com isso, pretende-se a aplicação desses requisitos de maneira mais aderente às funções e finalidades da tutela de urgência.
Depois de várias idas e vindas no trâmite legislativo do Anteprojeto do qual resultou o vigente Código de Processo Civil,2 a disciplina legal estabelecida acabou não se afastando do equacionamento tradicional dado à matéria em nosso Direito. Com base em ampla construção doutrinária – mesmo sem referência expressa na legislação de processo –,3 estabeleceram-se como requisitos da tutela de urgência as noções de fumus boni iuris e de periculum in mora, inicialmente aplicáveis às medidas cautelares previstas no sistema jurídico processual.
Tais requisitos tradicionais, não há como negar, permanecem presentes no Código vigente, correspondendo às locuções probabilidade de direito (fumus boni iuris) e perigo de dano ou risco ao resultado útil do processo (periculum in mora).4 Aliás, o projeto aprovado pela Câmara dos Deputados, antes da revisão final pelo Senado Federal, tinha formulação ainda mais próxima àquela tradicional dos elementos caracterizadores da urgência, exigindo “elementos que evidenciem a probabilidade do direito e o perigo na demora da prestação da tutela jurisdicional”.5
Claro, a formulação ora vigente nessa matéria não está a salvo de polêmicas e controvérsias, a começar pela unificação de critérios para caracterização dos requisitos de cabimento da cautelar e da antecipação de tutela nos casos de urgência.
A propósito, oportuno recordar, de início, que o Código de Processo Civil de 1973, com a modificação de seu art. 273,6 passou a conviver com duas disciplinas de tutela de urgência, diversas e separadas: a das medidas cautelares e a da tutela antecipada, esta última introduzida pelo dispositivo legal indicado. As primeiras, como regra, deveriam seguir a disciplina legal das medidas cautelares nominadas – estabelecida por meio de procedimentos especiais do chamado processo cautelar – e, de maneira geral, obedecer à constatação da existência de fumus boni iuris e de periculum in mora. A disciplina geral da antecipação de tutela foi introduzida no Código exigindo requisito, a princípio, mais rigoroso, a “prova inequívoca da verossimilhança da alegação”.7
Com isso, haveria, então, uma diferença de grau entre fumus boni iuris, o exigido para deferimento da cautelar, e prova inequívoca para concessão da antecipação de tutela. Se para a cautelar bastava a aparência do direito da parte, para a tutela antecipada exigia-se, em tese, muito mais, até porque, compreendida em sua literalidade, a “prova inequívoca” – poucas vezes presente mesmo nos julgamentos de mérito – deixaria pouco espaço para a concessão desse tipo de medida. No entanto, seja pelo intenso uso das medidas antecipatórias verificado na prática, seja pela escassa atenção dada pela doutrina a essa diferença, a diversidade de enfoque legal teve pouca repercussão prática na consideração dos requisitos para os dois tipos de medidas.8
No Código de 2015, como já mencionado,9 houve clara intenção de unificar a disciplina legal das duas espécies de tutela, com a unificação dos critérios da tutela cautelar e da antecipada. É o que se extrai da leitura do parágrafo único do art. 297 (estabelecendo que a tutela de urgência será “cautelar ou antecipada”) e do caput do art. 300 (no que estabelece critérios gerais para a tutela de urgência como um todo), ambos do vigente Código de Processo Civil.
Ocorre, entretanto, que a redação deste último dispositivo legal, ao diferenciar “perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo”, abriu espaço para discussão doutrinária a respeito da interpretação cruzada em relação aos dois tipos de tutela.
Por meio dela, cada um desses elementos (perigo e risco) seria exigível, de forma específica, para cada uma das espécies de tutela provisória de urgência. Nessa leitura, a tutela antecipada exigiria “perigo de dano”, enquanto a cautelar demandaria “risco ao resultado útil do processo”, não se aplicando, portanto, às duas espécies.
Tal interpretação, todavia, não pode prosperar.
Não bastasse o direcionamento do Código à unificação das espécies de tutela, como suprarrelembrado, ao disciplinar as modalidades antecedentes dos dois tipos de tutela – que nesse aspecto recebem tratamento legislativo separado – o texto legal repete, tanto para a antecipada quanto para a cautelar, os mesmos requisitos de “perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo”.10 Assim, os requisitos são estabelecidos indistintamente para as duas modalidades de tutela de urgência, não interferindo no cabimento de uma ou de outra. A distinção constante do texto legal, por certo, tem por finalidade deixar a salvo de dúvidas a inteira abrangência das medidas tratadas.11
De toda maneira, mais importante do que interpretações levando em conta a literalidade da norma é a compreensão da racionalidade e da funcionalidade que estão por trás da disciplina jurídica. Nesta obra, essa compreensão dos requisitos da tutela de urgência é realizada sob a perspectiva do risco e sob a premissa de que esse instituto processual tem um papel não apenas como mecanismo de efetividade do processo, mas, também, na construção de um processo justo, com a distribuição equitativa e equilibrada entre as partes dos gravames decorrentes do tempo do processo.
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NOTAS
1 Art. 300, caput, do CPC: “A tutela de urgência será concedida quando houver elementos que evidenciem a probabilidade do direito e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo”.
2 A propósito, v. item 2.1.2.4, supra.
3 Retomem-se, a propósito, os itens 2.1.2.1, 2.1.2.2 e 2.1.2.3, sobre a evolução da matéria nos estatutos legais antecedentes ao Código de Processo Civil vigente.
4 Art. 300, caput.
5 Art. 301 do PL 8.046/2021. V. item 2.1.2.4, supra.
6 Com a Lei 8.952/1994.
7 Art. 273, caput, do CPC/1973.
8 155 “Para a cautelar, seria suficiente fumus boni iuris, enquanto para a tutela antecipada, de acordo com o próprio texto legislativo, do caput do art. 273 do CPC de 1973, seria necessário um plus, representado pela ‘prova inequívoca da verossimilhança da alegação’. Muito pouco, contudo, foi escrito e discutido acerca de eventual distinção do periculum in mora necessário para a concessão da medida cautelar e da tutela antecipada. A afirmação, amplamente majoritária, era a de que ambas pressupunham a mesma ou, quando menos, equivalente urgência — um periculum in mora homogêneo ou indistinto para ambos os institutos…” (BUENO, Cassio Scarpinella. A tutela provisória de urgência do CPC de 2015 na perspectiva dos diferentes tipos de periculum in mora de Calamandrei. Revista de Processo, v. 269, p. 269-290, 2017. p. 272). Comentando essas possíveis diferenças na gradação do fumus boni iuris entre a cautelar e a antecipação de tutela, no CPC/1973, e festejando a eliminação dessa “controvérsia inútil” pelo CPC/2015, cf. BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Tutela provisória: analisada à luz das garantias constitucionais da ação e do processo. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2021. p. 346-351.
9 156 Item 2.1.2.4, supra.
10 Respectivamente, arts. 303, caput, e 305, caput. Para Cassio Scarpinella Bueno, na verdade, “[a] repetição dos elementos do gênero [tutela de urgência] ao menos no que diz respeito aos requisitos de sua concessão a partir do perigo da demora (se relativo ao dano ou ao resultado útil do processo), em suas duas espécies [cautelar e antecipada] torna-os inúteis” (BUENO, Cassio Scarpinella. A tutela provisória de urgência do CPC de 2015 na perspectiva dos diferentes tipos de periculum in mora de Calamandrei. Revista de Processo, v. 269, p. 269-290, 2017. p. 274).
11 158 Nesse aspecto, chama a atenção a formulação que havia sido aprovada pela Câmara dos Deputados, antes da revisão final pelo Senado, na qual constava apenas “perigo na demora da prestação da tutela jurisdicional”. Art. 301 do PL 8.046/2021. V. item 2.1.2.4.