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Jurisprudência defensiva e a fundamentação das decisões sob a égide do CPC de 2015 (ou “o que é ruim sempre pode piorar”)
Hugo de Brito Machado Segundo
04/09/2017
Durante a vigência do Código de Processo Civil de 1973 (CPC/73), as partes de um processo enfrentavam dois grandes problemas para ter acesso aos tribunais superiores. Um deles era a chamada “jurisprudência defensiva”, que consistia na criação, por meio jurisprudencial, de óbices nem sempre razoáveis à admissibilidade de recursos. Servem de exemplo, aqui, a “extemporaneidade” de um recurso “prematuro”, porque interposto “antes” do início do prazo; a exigência de que as cópias que instruíam um agravo fossem autenticadas, mesmo quando a parte adversa não colocava sua idoneidade em dúvida, ou que as custas ou o “preparo” tivessem sido recolhidos previamente, com o código de receita correto e preenchendo-se a guia correspondente com o uso de impressora e não de caneta etc.
Outro problema, que muitas vezes ocorria paralelamente com a jurisprudência defensiva, era a precariedade na fundamentação das decisões correspondentes. Dizia-se, em acórdão padronizado, que o recurso não atendia requisitos exigidos pela jurisprudência, citavam-se alguns julgados supostamente no mesmo sentido, e pronto, não se conhecia do pleito. Mas, concordando-se ou não, se se examinasse o recurso, verificar-se-ia que os requisitos apontados como não atendidos não tinham, de fato, sido atendidos. Até se poderia discutir se tais requisitos seriam mesmo exigíveis, ou não, mas se devia reconhecer que realmente não haviam sido atendidos.
A jurisprudência defensiva já vinha sendo combatida pelo legislador ainda sob a vigência do CPC/73, que sofreu mudanças para, por exemplo, deixar de exigir autenticação em cartório das peças que compunham o agravo de instrumento, ou mesmo, no caso do agravo contra a decisão que nega seguimento a Recurso Especial ou Extraordinário, para permitir sua interposição nos próprios autos, sem a necessidade de cópias para a formação de instrumento. Com o novo CPC (CPC/2015), de forma mais ampla, entendimentos ligados à jurisprudência defensiva foram explícita e didaticamente afastados, com a expressa indicação de que o recurso pode ser interposto “antes” do prazo, de que vícios relativos ao preparo podem ser corrigidos posteriormente etc.
Quanto à fundamentação, o CPC/2015, de forma teoricamente desnecessária (porque apenas explicitou o dever constitucional de fundamentar as decisões), mas praticamente considerada essencial (porque tal dever vinha sendo reiteradamente descumprido pelo Judiciário), reiterou a necessidade de serem fundamentadas as decisões, e explicitou, de maneira exemplificativa, o que não se considera uma decisão validamente fundamentada (CPC, art. 489, § 1.º). O curioso, quando se lê o art. 489, § 1.º, é que qualquer aluno de graduação em Direito percebe, e até ri disso, que os exemplos ali descritos realmente ilustram decisões não fundamentadas. Difícil de acreditar, porém, é que eles foram todos hauridos da prática forense anterior, sendo amostra do que de mais comum havia em precariedade na fundamentação de decisões.
Com a promulgação do CPC/2015, e o início de sua vigência, esperava-se que tais problemas fossem resolvidos.
Entretanto, em uma demonstração de que a realidade jurídica é muito mais rica, e complexa, do que fazem crer os textos normativos, para o deleite dos teóricos do direito afeiçoados a ciências correlatas como a Sociologia, a Psicologia ou a Economia, a prática começou a demonstrar problemas na aplicação do CPC/2015. Problemas criados por quem não quer se sujeitar aos ditames do novo Código e, pela posição que ocupa, tem, ou acredita ter, meios para conseguir isso.
A relação entre a norma e a realidade fática é fascinante e peculiar. A primeira procura orientar a segunda, mas de algum modo é orientada por ela. A norma não pode pretender que a realidade seja exatamente como já é, pois nesse caso seria desnecessária. Tampouco pode almejar transformá-la radicalmente, pois terminará “não pegando” e se tornando socialmente ineficaz. Na feliz imagem de Pontes de Miranda, tem-se relação semelhante à do jardineiro e das plantas que pretende cultivar e podar. Sua liberdade para podar, moldar, alinhar e ajustar galhos e folhas é limitada.
O real problema, no caso do Poder Judiciário, parece ser o excesso de processos gerado pela “cultura do litígio” que permeia a sociedade brasileira, na qual quaisquer diferenças, por menores e mais simples, são levadas a um juiz. Nesse contexto, além de questões privadas as mais diversas, incluindo brigas de vizinhos, autoridades do Poder Público, maior responsável pelo volume de processos judiciais, com medo de serem acusadas de favorecimento, só se sentem à vontade para praticar atos quando estes favorecem a própria Fazenda. O Fiscal Tributário mais arbitrário, se suas arbitrariedades atendem aos interesses arrecadatórios do Fisco, talvez ganhe uma medalha, e figure no quadro de honra da instituição. Mas os atos que favorecem o cidadão, estes não são praticados por servidor algum, senão quando há plena certeza de que o órgão o permitirá, refletida pela existência de normas infralegais que o determinam expressamente. Do contrário, há o medo de “suspeitarem” de a autoridade estar “favorecendo” o cidadão. Assim, mesmo quando sabe que o cidadão está correto e tem direito, a autoridade diz que nada pode fazer. Quando lhes pesa a consciência, no máximo aconselham: “Vá para a Justiça, você tem direito!”. Não é outra a razão pela qual percentual enorme dos processos que ocupa o Poder Judiciário tem o Poder Público como parte. Isso faz com que a Justiça não disponha do tempo e da estrutura necessária para dar aos casos realmente importantes, nos quais é preciso saber quem tem razão, a atenção de que precisam; e, por conseguinte, para que se profiram julgamentos com a qualidade esperada.
Enquanto esse problema não é corrigido, os processos que assoberbam o Judiciário continuarão tendendo a ser tangidos de forma arbitrária, sem preocupação com o direito discutido pelas partes em cada caso. Não interessa saber quem tem razão, ou mesmo se o desfecho dado pelas instâncias ordinárias converge ou diverge da jurisprudência dominante nas Cortes Superiores, para que se proceda à devida unificação, em atenção à igualdade e à segurança jurídica. Não dá tempo. Por isso, nos Tribunais Superiores, as normas que afastam a jurisprudência defensiva e que impõem aos julgadores o dever de fundamentar adequadamente suas decisões estão a gerar um efeito colateral terrível. Em vez de corrigirem o problema, criam outro muito maior: decisões que deixam de conhecer de recursos por fundamentos inteiramente inaplicáveis ao caso, mas longamente expostos nas respectivas decisões ou acórdãos, que passam a contar com várias páginas para que não se diga deficiente sua fundamentação.
Nesses fundamentos inteiramente impertinentes, porque divorciados do que ocorreu no processo, diz-se à parte que ela não cumpriu requisito, que na verdade foi cumprido. Quando a parte se insurge contra a decisão assim impertinentemente fundamentada, procurando mostrar que o requisito foi cumprido, também esse recurso é rejeitado por decisão ainda mais divorciada da realidade, que afirma não ter esse novo recurso atacado quaisquer dos fundamentos da decisão anterior, quando, não obstante, basta ler o tal recurso para ver que isso não é verdade.
A situação abaixo, que se tem repetido no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, exemplifica o que se está aqui a dizer:
1) Tribunal de Justiça do Estado examina uma questão, em sede de apelação, e a resolve com amparo em determinado artigo de lei federal, que é expressamente citado, e até transcrito, no voto, e mesmo na ementa do acórdão;
2) A parte perdedora considera que o acórdão negou vigência ao referido artigo de lei, que teria sentido diverso do que lhe deu o Tribunal, além de ter divergido do entendimento do STJ sobre o assunto, que tem farta jurisprudência em contrário. Interpõe, então, Recurso Especial, fundado nas letras “a” e “c” do art. 105, III, da CF/88. Transcreve o acórdão recorrido, que aplica, em seu entender, erradamente o artigo de lei federal, e o compara com acórdão do STJ que analisa questão semelhante, e lhe dá solução oposta. Descreve no que consiste o caso concreto enfrentado pelo TJ no acórdão recorrido, e no que consistia o caso julgado pelo acórdão do STJ apontado como “paradigma”, ambos a exigir a aplicação da mesma ratio, tendo todavia recebido soluções diferentes.
3) Ao chegar ao STJ, o Ministro, ou a Ministra Relatora profere decisão de várias páginas, dizendo: não há pré-questionamento, pois o dispositivo de lei apontado como violado não foi sequer examinado pelo acórdão recorrido, que não o referiu em momento algum. E, quanto à divergência jurisprudencial, diz que o recorrente não indicou de forma analítica no que ela consistiria, tendo se limitado a transcrever ementas. Depois disso, a decisão transcreve várias ementas para concluir que o recurso não pode ser conhecido.
3.1.) Veja-se. A decisão do STJ poderia dizer que os precedentes invocados não cuidam exatamente da mesma questão. Poderia enfrentar os argumentos usados pelo recorrente, e dizer que não procedem. Poderia ainda, é claro, conhecer do recurso, e negar-lhe provimento. Isso, porém, não ocorre. Diz a Ministra que o recorrente não teria escrito o que, todavia, está escrito em seu recurso. Diz que no acórdão recorrido não constaria o que, não obstante, dele consta expressamente.
4) Lendo a decisão, a parte recorrente surpreende-se, passa a duvidar da própria memória, e procura reler suas razões de recurso. Não é possível, pensa. E está lá: o recurso faz sim o cotejo analítico das situações, de maneira bem detalhada. E, quanto ao pré-questionamento, não poderia haver espaço para a dúvida: basta ler a ementa do acórdão recorrido! Está lá, transcrito, o artigo da lei! Como a Ministra pode ter dito que o acórdão “nem mesmo referiu” a tal lei federal, se a disposição legal tida por violada foi citada na própria ementa?! Aliás, ao transcrever o acórdão proferido pelas “instâncias ordinárias”, no relatório da decisão do STJ que não conhece do Recurso Especial, a Ministra chega mesmo a transcrever o trecho da ementa que reproduz o dispositivo violado! Deve ter havido um equívoco, pensa a parte recorrente.
5) Interpõe-se então um agravo interno. Explica a parte, nas razões de agravo, muito respeitosamente, que os dois fundamentos invocados pela decisão agravada para não conhecer do Recurso Especial são inaplicáveis ao caso. O agravo transcreve os trechos da decisão agravada, e do recurso por ela não conhecido, e em seguida mostra que houve cotejo analítico, e, mais incisivamente, que houve pré-questionamento, indicando até os trechos do acórdão nos quais a legislação violada é citada. Quanto ao cotejo analítico, até poderia haver alguma subjetividade quanto a saber se ele teria sido “suficiente” ou não, mas, quanto ao pré-questionamento, não dá, sem quebra de uma racionalidade mínima, para afirmar-se que ele estaria ausente, quando a própria decisão transcreve o acórdão recorrido e o trecho que nele se reproduz o dispositivo pré-questionado, o que é devidamente salientado no agravo interno.
6) Vem, então, a surpresa maior, a confirmar estar a parte vivendo uma onírica e kafkiana realidade processual: também este agravo interno não é conhecido, por acórdão que afirma não ter ele sequer atacado os fundamentos da decisão agravada… (???!!!). Mas como “não atacado”, se eles, os fundamentos, estão transcritos, sendo depois um a um respondidos no agravo, que respeitosamente indica por que estariam equivocados?
7) A parte então pensa: será que houve outro engano? Interpõe embargos de declaração. Aponta o erro material claríssimo: o acórdão diz que no agravo algo não está escrito, quando, na verdade, está; diz que a parte não atacou algo, que ela na com todas as letras atacou.
8) O leitor, seguramente, já sabe o destino destes embargos declaratórios: decidirá a Corte que pretendem o mero reexame da questão, o que não é cabível neste tipo de recurso. É exatamente isso o que ocorre em situações assim, mesmo quando não se está diante de mero “pedido de reexame”, mas da indicação de erros materiais evidentes, de dissociação absurda entre a realidade dos autos e as afirmações feitas pela julgadora.
Veja-se, ainda, que não se trata de inconformismo com o sentido do julgado, mas com sua total falta de fundamentação. No caso do Recurso Especial em comento, a Corte poderia ter dele conhecido, e negado provimento. Não é essa a questão. Mesmo que a jurisprudência do STJ fosse favorável ao recorrente, a Corte poderia fazer um overrulling ou um distinguish e não aplicá-la ao caso, desde que explicasse os motivos para isso. Não se trata, aqui, de exigir do Tribunal que decida a favor da parte, mas que pelo menos fundamente minimamente sua decisão. Também não se trata de problema isolado, que ocorreu em um processo específico, mas de prática reiterada, que se vem tornando muitíssimo frequente, sobretudo no âmbito do Superior Tribunal de Justiça.
Dirá o leitor que a solução, no caso, seria tentar explicar pessoalmente a questão à Ministra relatora. Entretanto, não é preciso muito para perceber que essa solução não pode ser adotada por todos os jurisdicionados que sofrem com o problema. O sistema não pode funcionar assim. E, o pior de tudo: na maioria das vezes não adianta.
Outra solução, diante da inflexibilidade da Ministra em dissociar-se da realidade constante do processo para rejeitar recursos, seria a de pedir o “destaque” do processo, quando levado para a Turma, para que ele não seja julgado “em lista”, mas em sessão “de verdade”, de forma realmente colegiada, com a possibilidade de sustentação oral, ou pelo menos com a possibilidade de esclarecimento de fato pelo advogado, que poderia tentar mostrar aos demais Ministros que o agravo interno impugnou os fundamentos da decisão agravada, e que o pré-questionamento estava presente, lendo em voz alta alguns trechos das peças processuais correspondentes. A questão é que também esta solução não pode ser adotada em termos gerais, sob pena de inviabilizar (ainda mais) o funcionamento das Cortes. E ela por igual não resolve: nas Cortes Superiores, já se dissemina a prática de, entre relatores, decidir-se primeiro se é cabível ou não o pedido de destaque e preferência. Se o relator entender que não, mesmo com o pedido do advogado (que nesse caso é indeferido), o processo vai para a lista, recebendo o julgamento automático do rolo compressor do CTRL+C, CTRL+V.
A fundamentação, aqui, torna-se ainda mais precária: não é vaga, servindo para qualquer processo, como nos exemplos citados no art. 489, § 1.º, do CPC/2015. Não exige o cumprimento de requisitos que, embora possam ser tachados de irrazoáveis, reconhece-se que efetivamente não haviam sido cumpridos, como fazia a jurisprudência defensiva. Não. O problema, agora, são os julgados que simplesmente ignoram o que ocorreu no processo, dissociam-se da realidade e fazem remissão a fatos outros, imputando à parte falhas que ela não cometeu, para assim dar suporte à conclusão de não conhecimento do recurso, em divórcio com a realidade que só aumenta, dentro do processo, na medida em que a parte insiste em evidenciá-lo. Mais uma mostra de que nada é tão ruim que não possa piorar.
O Poder Judiciário tem recebido muitas críticas da sociedade. Algumas podem não ser justas, mas outras talvez sejam. Demora de meses, ou mesmo anos, para um despacho de “cite-se”, ou para a apreciação de uma liminar, são exemplos de situações criticáveis, porque injustificáveis, dentre várias outras cujo exame não se comportaria aqui. Mas se deve reconhecer que, quando decisões começam a empregar fundamentos completamente divorciados dos próprios eventos havidos no processo, de modo a assim aplicar normas que de outro modo seriam inaplicáveis, a possibilidade de essas críticas aumentarem exponencialmente é enorme. Pior, muito pior, do que não concordar com uma decisão, por divergir do posicionamento nela adotado, é saber que ela partiu propositalmente de premissas completamente irreais, para assim chegar ao resultado que queria, e que de outro modo não seria justificável à luz da legislação vigente. A própria possibilidade de debate, de diálogo, desaparece, inviabilizada pelo expediente de um interlocutor não responder às afirmações do outro, preferindo pronunciar-se sobre o que entende por bem dizer que foi afirmado pelo outro.
A situação se agrava quando o alheamento da realidade vai ficando tanto maior quanto mais as partes insistem em chamar a atenção do julgador para ele. A perda de credibilidade, aqui, é imensa. Não só pela questão técnica em si, mas, sobretudo, porque o direito é uma realidade institucional, que existe apenas se e enquanto seres racionais pactuam e reconhecem sua existência. Para isso, é preciso acreditar que os elementos que constituem a realidade institucional, os critérios que a formam, estão sendo seguidos. Do contrário, deixa-se de acreditar no jogo, que desaparece enquanto tal. Se, em uma partida de xadrez, um dos jogadores começa impunemente a mover as peças como bem entende, fazendo o rei avançar diversas casas de uma só vez, movendo o cavalo por longas linhas em diagonal, ou dando saltos com seus bispos, é a própria partida que deixa de existir, enquanto “jogo de xadrez”. O mesmo ocorre se um árbitro, em uma partida de futebol, passa a marcar lateral quando a bola ainda está no meio do campo, diz ter havido gol quando os jogadores ainda disputam a posse de bola na entrada da área, ou apita outros lances assim visivelmente divergentes dos fatos, calcados em uma fantasiosa versão da realidade presente apenas em seu imaginário e não no dos jogadores, torcedores e demais espectadores. Regras, lances, critérios, jogadas, tudo perde o sentido e nem se enxerga mais, ali, um jogo. Com o Direito e o Processo não é diferente, não sendo muito saudável que as pessoas deixem de acreditar nas instituições jurídicas e no Poder Judiciário, algo que invariavelmente ocorrerá se não houver uma preocupação mais séria com os fundamentos empregados nas decisões judiciais.
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