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PROCESSO CIVIL
Iura Novit Curia e o Contraditório
Daniel Amorim Assumpção Neves
30/01/2015
1. Introdução
A primeira e imprescindível observação a ser feita é de que o presente artigo é escrito por um autor ligado ao campo do processo civil, de forma que a tônica a ser emprestada a ele é essencialmente processual, com breves apontamentos de direito material naquilo que for essencial para o desenvolvimento do pensamento. Fazemos a presente observação para que o leitor não se frustre em seu intuito de ler nosso artigo, todo ele voltado a considerações a respeito de aspectos processuais da causa de pedir e das diferentes espécies de responsabilidade civil, considerada à luz do aforisma iura novit curia e do princípio do contraditório.
Em razão da amplitude dos temas a serem enfrentados no presente artigo, nos faz necessário tecer breves explanações a respeito das espécies de responsabilidade civil existentes no direito brasileiro, das teorias existentes para a causa de pedir, do teor do aforisma iura novit curia, e finalmente o que tudo isso tem a ver com o princípio do contraditório. O tema certamente crescerá em importância, acadêmica e prática, quando passarmos a enfrentar as questões que envolvem uma mudança da espécie de responsabilidade civil pelo juiz e como isso afetará a causa de pedir e surpreenderá as partes litigantes.
Sendo o contraditório princípio constitucional, alçado por alguns inclusive ao próprio conceito de processo (procedimento animado por uma relação jurídica em contraditório), é imprescindível a análise de sua preservação quando o juiz, de ofício, muda os rumos ditados pelas partes com uma nova e inovadora visão jurídica do objeto do problema. O tema é certamente bem mais amplo a que nos propomos tratar, envolvendo, inclusive, as matérias de ordem pública, que podem ser conhecidas a qualquer momento e de ofício pelo juiz, o que obviamente não é o caso.
Como já afirmado anteriormente, as considerações tecidas acima já se encontram no campo processual, onde indubitavelmente trafegamos com maior desenvoltura. É necessário, entretanto, uma breve incursão ao direito material, nos estreitos limites que o presente trabalho exige.
2. Responsabilidade Subjetiva e Objetiva
Os atos ilícitos, sempre que tragam dano efetivo a terceiros, fazem surgir o direito à reparação civil, por meio da indenização. Nunca houve qualquer discussão a esse respeito. O que vem se debatendo na doutrina no decorrer dos tempos é a fundamentação do dever de ressarcir os danos causados.[1] Nos interessa particularmente o debate, ainda hoje presente na doutrina, acerca da conduta do agente que provoca o dano, sendo de se perquirir a importância da culpa como elemento da teoria da responsabilidade civil.
Divergindo acerca de ser ou não elemento de responsabilidade a culpa, surgiram na doutrina duas correntes; a teoria clássica, também conhecida como teoria subjetiva, onde a culpa mostra-se como fundamento essencial do dever de indenizar e a teoria objetiva, onde a culpa não vai se mostrar como elemento necessário para configuração de responsabilidade. Dispensamos maiores considerações a respeito do histórico entre essas duas espécies de responsabilidade, bastando por ora apontar para essa que é a diferença substancial entre as duas e essencial para os propósitos projetados pelo presente trabalho: enquanto a culpa é elemento da responsabilidade objetiva, é dispensada na responsabilidade subjetiva.
Parece-nos que nosso ordenamento jurídico fez clara opção pela responsabilidade objetiva, ao menos como regra, o que se deduz da literalidade do art. 186, CC (cópia do antigo art. 159, CC). Não o fez, entretanto, sem ressalvas, potencializadas com o novo Código Civil, com diversas hipóteses de responsabilidade subjetiva, dispensada, portanto, a culpa como elemento do ressarcimento dos danos suportados.Além disso, temos outras previsões em leis extravagantes, com especial destaque para o Código de Defesa do Consumidor. O que se nota é que o direito brasileiro admite a concorrência das duas espécies de responsabilidade civil; objetiva e subjetiva. A conveniência da existência simultânea de ambas as teorias encontra apoio entre nós em doutrinadores de escol, como Caio Mário da Silva Pereira e Miguel Reale.[2]
Parece-nos, portanto, absolutamente possível a existência simultânea da responsabilidade objetiva e da responsabilidade subjetiva dentro de um mesmo sistema, a exemplo do ordenamento brasileiro. Além de possível, temos para nós que essa seria a melhor maneira de encarar a problemática da responsabilidade civil, fugindo de indesejáveis extremos e chegando-se a conclusão mais consentânea com os ditames da ciência jurídica.
3. Responsabilidade Contratual e Extracontratual
No tratamento da responsabilidade civil outra tradicional divisão que pode ser feita é aquela relacionada à natureza da norma descumprida que enseja a responsabilização do agente. Dessa análise nasce a divisão entre responsabilidade contratual e extracontratual. Sumariamente poderíamos dizer que quando uma pessoa descumpre uma obrigação contratual, estar-se-á diante da responsabilidade contratual, e quando a responsabilidade não derivar de contrato, a responsabilidade será a extracontratual, ou aquiliana. Enquanto na primeira existe um vínculo obrigacional entre o causador do dano e aquele que o suporta, no segundo não existe qualquer entendimento prévio entre esses sujeitos, não há nenhum vínculo jurídico existente entre o causador do dano e a vítima no momento do ato ilícito, decorrendo a responsabilidade do descumprimento de um dever legal.
Se é bem verdade que o nosso Código Civil estabeleceu essa diferença em seus dispositivos[3], também é verdade que a melhor doutrina entende, com parcial acerto, que a diferenciação é totalmente inócua, já que em ambas teorias as soluções seriam idênticas, exigindo-se tanto para uma como para outra os mesmos elementos caracterizadores para sua configuração. Vislumbram-se até algumas diferenças, como a referente à capacidade do agente causador do dano e do ônus da prova. Muito embora para os civilistas essas não constituam diferenças suficientes para exigir uma dualidade de tratamentos, no campo do processo civil a segunda diferença existente entre a responsabilidade contratual e extracontratual nos trará algumas dúvidas e questões, que serão devidamente analisadas no momento oportuno.
A importância da diferença do ônus da prova nas diferentes espécies de responsabilidade foi resumida com a habitual acuidade por Caio Mário da Silva Pereira, ao afirmar que “culpa contratual e culpa extracontratual sujeitam o contraventor a responder civilmente pelos prejuízos causados. Embora se confundam ontologicamente (repito) e nos seus efeitos, a distinção subsiste no tocante às exigências probatórias. Na culpa extracontratual, incumbe ao queixoso demonstrar todos os elementos etiológicos da responsabilidade: o dano, a infração da norma e o nexo de causalidade entre um e outra. Na culpa contratual inverte-se o onus probandi, o que torna a posição do lesado mais vantajosa.”[4]
Para os fins buscados no presente artigo imprescindível a noção dada acerca dessa divisão da responsabilidade civil. Insistimos que, a par da melhor doutrina não ver qualquer razão para a diferenciação ontológica, no campo do processo civil teremos alguns desdobramentos interessantes onde a determinação de que tipo de responsabilidade trata o caso em particular irá trazer, no tocante ao ônus da prova, exigências diversas aos demandantes.
4. A Causa de Pedir no Direito Brasileiro
Muito embora não seja precisamente o tema do presente artigo, devido a sua extensão e dificuldade de tratamento, importante uma breve lembrança das teorias que tentam explicar, a partir da duplicidade de seus elementos formadores, a causa petendi: a teoria da individuação e da substanciação.
A teoria da individuação tem suas raízes históricas à época da entrada em vigor do ZPO alemão, em 1879, que fez surgir entre os estudiosos alemães viva polêmica a respeito do conteúdo mínimo da demanda judicial. Pensou-se, em um primeiro momento, que da expressão “fundamento da pretensão deduzida”, constante na Exposição de Motivos e da redação do § 230, a regra da eventualidade teria deixado de ser imperiosa, dando mesmo ensejo para que se formulasse a teoria da individuação.[5] Para os defensores da teoria da individuação, “a causa petendi limita-se à indicação, como fundamento jurídico, da relação jurídica constitutiva do direito, sendo desnecessária a indicação do fato constitutivo do direito.”[6] Para esses, portanto, a indicação do fato constitutivo do direito é apenas circunstancial, não sendo considerada como uma exigência para a integralização da causa de pedir. [7]
A outra teoria, a da substanciação, leva em consideração a narração do fato ou conjunto de fatos do direito constitutivo do autor. Para essa teoria, portanto, não basta a menção ao título embasador do litígio, mas necessário também é a descrição, de maneira suficientemente clara e individualizada, dos fatos constitutivos do direito do autor. Observe-se que dentre os doutrinadores brasileiros a adoção da teoria da substanciação parece ser pacífica, tanto para ações fundadas em direitos reais como em direitos pessoais. Em todos os manuais de processo civil os autores são conformes em afirmar que o nosso ordenamento jurídico abraçou sem exceções a teoria da substanciação. Para solidificar a opinião está o artigo 282, III, do Código de Processo Civil, ao determinar que a causa petendi a ser deduzida na petição inicial deve conter o fato e os fundamentos jurídicos do pedido.
São poucos os doutrinadores brasileiros que se animam a desafiar o entendimento geral, já arraigado entre nós. O primeiro foi José Ignácio Botelho Mesquita, que em primoroso artigo, depois de desenvolvimento precioso que merece atenta leitura, conclui que a lei brasileira não teria se filiado incondicionalmente à teoria da substanciação, adotando na verdade posição intermediária.[8] Outro grande jurista que parece simpatizar com a ideia do professor Botelho de Mesquita é Milton Paulo de Carvalho, que em análise crítica do estudo e das conclusões obtidas pelo colega paulista, parece chegar a mesma conclusão.[9]
5. Fundamento Jurídico e Fundamentação Legal
Apesar das importantes contribuições dos estudiosos narrados acima, não há como se negar que a doutrina de maneira amplamente majoritária inclui no conceito da causa de pedir, além dos fatos principais, também a consequência jurídica de tais fatos narrada pelo autor, nomeada de fundamentação jurídica. É dessa constatação que continuamos em nossa análise no tocante às diferentes espécies de responsabilidade civil que poderão, dependendo da vontade do autor, compor sua causa de pedir.
Imprescindível, e comumente considerada pela doutrina nacional, a diferença entre fundamento jurídico e fundamento legal. Essa diferenciação de tratamento, inclusive, é que resolverá a problemática acerca da questão anteriormente levantada. Enquanto o fundamento jurídico é necessário e imprescindível, e uma eventual narração distorcida por parte do autor desse fundamento jurídico levará a inépcia da inicial, ou mesmo julgamento improcedente da demanda, não se exige a mesma precisão com relação ao fundamento legal, podendo-se entender esse como a qualificação jurídica, ou seja, a indicação do texto legal aplicável ao caso concreto.
Calmon de Passos entende que “o nomem iuris que se dê a categoria jurídica ou o dispositivo de lei que se invoque para caracterizá-lo são irrelevantes, se acaso erradamente indicados. O juiz necessita do fato, pois o direito ele é que o sabe. A subsunção do fato à norma é dever do juiz, vale dizer, a categorização jurídica do fato é tarefa do juiz.”[10] No mesmo sentido a lição de Moacyr Amaral Santos ao afirmar que “fundamento jurídico do pedido não é norma de direito em que este se apóia. A norma jurídica em que se tutela a pretensão poderá e mesmo convirá ser indicada. Mas não se impõe ao autor sua indicação. A exposição dos fatos é suficiente para deles o juiz extrair o direito aplicável: da nhihi factum, dabo tibi ius; iuris novit curia.”[11]
É mesmo concorde tanto a doutrina como a jurisprudência acerca do tema, ainda que a maioria dos doutrinadores entendam ser interessante a indicação do dispositivo legal por parte do patrono do autor quando elabora a petição inicial, embora sempre frisando que não existe qualquer necessidade do ponto de vista formal para tanto, considerando que o juiz deve saber o direito e aplicá-lo ao caso concreto, independente do alegado pelas partes.[12]
O grande problema nessa construção, e que proporcionará as questões mais interessantes a serem analisadas, diz respeito a limitação do juiz quanto à requalificação legal da pretensão do autor e, principalmente, em que medida tal postura originária do juiz poderá afetar a qualificação jurídica de tal pretensão, essa elemento da causa de pedir, diferentemente da primeira. Seria possível ao juiz modificar a causa de pedir do autor, por meio de atribuição de fundamentação jurídica diversa daquela apontada na petição inicial? É essa pergunta que tentaremos responder.
6. O Problema da Modalidade de Responsabilidade Civil à Luz do Aforismo Iura Novit Curia
Primeiramente cumpre ressaltar que, conforme já amplamente demonstrado, a doutrina e mesmo a jurisprudência brasileira[13] são concordes com a utilização do aforismo iura novit curia para permitir ao juiz a requalificação legal no caso concreto, independentemente da participação e mesmo da aceitação das partes acerca do novo dispositivo legal a ser aplicado. Justamente por ser alheio ao próprio conceito de causa de pedir, e servindo a postura do juiz como uma mera indicação da norma legal a ser aplicada, parece não surgirem maiores questionamentos de tal afirmação.
Assim sendo, se o autor ingressar com ação judicial pleiteando a condenação do réu ao pagamento de uma indenização, baseando seu pedido no artigo 186 do Código Civil, e mesmo que o réu concorde com tal tipificação, não a criticando em nenhum momento, será totalmente lícito ao juiz, ao analisar os fatos alegados, perceber que na verdade o caso concreto é de responsabilidade contratual, o decidindo não em observância ao mencionado artigo de lei, mas sim levando em conta o artigo (1.056) do mesmo diploma legal.
Cumpre nesse momento uma importante delimitação da atividade do juiz no concernente a essa requalificação jurídica no caso concreto. A maioria, se não a totalidade dos estudiosos do direito, consideram que o juiz pode – e até mesmo deve – examinar todos os fatos que lhe são apresentados, e a partir dessa análise determinar quais normas do direito material são aplicáveis ao caso concreto, ainda que não invocadas pelas partes, concordando, entretanto, que tal atividade “criativa” do juiz não possa ser exercida sem qualquer espécie de limites, sob pena de afronta a comezinhos princípios processuais.
O limite da liberdade do juiz para dar nova qualificação jurídica ao caso concreto é que esse se mantenha sempre nos limites traçados pelo autor no concernente à causa de pedir. È nesse momento imprescindível se recorrer – ainda que se reconheça que na prática por vezes a tarefa é ingrata – a diferença traçada acima entre fundamentação legal e fundamentação jurídica, senda a segunda responsabilidade exclusiva do autor, restando ao juiz tão somente eventuais correções quanto à primeira. [14]
Conclui-se, portanto, que se o juiz, ao dar nova qualificação jurídica a um caso concreto não observar os limites traçados pelo próprio ordenamento jurídico, terá sua decisão anulada, já que seu julgamento será evidentemente extra petita, o que macularia de forma irremediável essa decisão. Não é permitido ao juiz decidir levando-se em conta fatos não alegados nem discutidos, ou se levando em conta somente os fatos alegados, prestar tutela jurisdicional diferente daquela pleiteada na petição inicial baseado em numa fundamentação legal não arguida pelo autor.[15]
Trazemos um exemplo da prática profissional para indicar uma hipótese em que a atividade do juiz modificou a fundamentação jurídica, e por consequência a causa de pedir, o que não se pode admitir. Um sujeito adquiriu um veículo 0 Km financiado, realizando toda a operação na própria Concessionária, inclusive com intervenção do banco da Montadora. O carro, entretanto, apresentou seguidos problemas mecânicos, o que obrigou o comprador a passar mais tempo na concessionária que aproveitando o carro nos primeiros meses de uso. Após mais um defeito apresentado, o sujeito resolveu não mais realizar o pagamento das parcelas do financiamento. O Banco, então, inclui seu nome nos cadastros de devedores, o notificou e ingressou com uma ação de busca e apreensão. Diante desses fatos, o sujeito ingressa com ação judicial contra a montadora e seu banco, com diversos pedidos de diferentes naturezas.
Nos interessa precisamente o pedido de dano moral. O autor alegou que a inclusão de seu nome junto aos cadastros de devedores era ilegítima, e que tal inclusão havia abalado seu crédito e imagem de bom pagador. Essa, como se percebe, era a fundamentação jurídica da demanda. O juiz em sua sentença, afirmou que a interrupção do pagamento sem a tomada das medidas necessárias criaram um estado de mora, razão pela qual a inclusão de seu nome nos cadastros de devedores configurava um exercício legítimo de direito do banco. Apontou, entretanto, que aquele que compra carro 0 KM e tem problemas como os apontados na petição inicial, sofre abalo psíquico suficiente para ensejar o dano moral, condenado o réu a seu pagamento. Como resta claro – a par do direito do consumidor receber por danos morais nesse caso, o que nos parece evidente – o juiz, diante dos fatos narrados, criou uma nova qualificação jurídica, o que maculou sua sentença de sério vício (sentença extra causa petendi).
Mas consideremos que o juiz se mantenha nos limites impostos pelo ordenamento jurídico, e a nova qualificação jurídica se mantenha dentro da causa pedir exposta pelo autor. Segundo entendimento de Teresa Arruda Alvim Wambier, “é importante que se sublinhe que altera-se o fundamento jurídico da inicial (qualificação jurídica da causa de pedir, e não a sua versão fática) na sentença não a torna extra petita. A subsunção do fato à norma é dever do juiz: pode a sentença, ao julgar ação em que se deu equivocada denominação jurídica ao fato, promover a correta interpretação do direito, o que não gera nulidade de tal ato processual”.[16]
Aqui, porém, imprescindível para a melhor análise acerca do problema uma breve lembrança do princípio iura novit curia, bem como de seu significado atual. Cumpre esclarecer, primeiramente, que o significado atual do princípio difere de sua conceituação original. A concepção original da dicção era no sentido de que as normas jurídicas não necessitavam de provas, já que caberia ao juiz conhecê-las. Atualmente, por outro lado, tem-se no brocardo uma falsa ideia de que a definição do direito cabe somente ao juiz, não estando as partes obrigadas a tecer qualquer comentário a esse respeito.[17] De tais pensamentos algumas conclusões podem ser extraídas.
A conceituação original do brocardo até hoje está presente em uma série de ordenamentos jurídicos. De fato, embora existentes as exceções, a regra geral é que somente os fatos são objeto de prova, o mesmo não ocorrendo com o direito. No direito nacional tal regra vem consagrada no artigo 337 do Código de Processo Civil, que reza: “A parte, que alegar direito municipal, estadual, estrangeiro ou consuetudinário, provar-lhe-á o teor e a vigência, se assim o determinar o juiz”.[18]
De fato, sob esse aspecto, a dicção iura novit curia teve boa aceitação, sendo até os dias atuais utilizada sem maiores problemas ou debates entre nós. O problema surge quando tratarmos o brocardo na conceituação atual, relacionada a exclusividade do estabelecimento da qualificação jurídica pelo juiz, minorando, e até algumas vezes excluindo por completa a atuação das partes. Tenha-se primeiramente que se a participação das partes pode ser dispensada sob um ponto de vista formal, também correto o entendimento de que é de interesse da própria parte sua efetiva participação para definição da norma jurídica aplicável à espécie.
Sendo o processo um diálogo, e não um monólogo, imperiosa a participação das partes para inclusive ajudar o juiz a descobrir a norma jurídica aplicável ao caso concreto. Fica claro que “a expectativa de sucesso final da causa, demonstra a existência de um interesse primordial da parte em dar conhecimento ao tribunal da norma jurídica que, segundo ela, deva ser aplicada, embora inexista obrigação formal para tanto.”[19]
Muito embora vá ser o juiz o sujeito processual que ao final da demanda irá determinar qual norma jurídica específica será aplicada ao caso concreto, nos parece salutar, até mesmo do ponto de vista de uma maior participação das partes e da qualidade da prestação jurisdicional, que se dê oportunidade às partes para também apresentarem seu ponto de vista acerca do direito, não se limitando somente aos fatos.
Parece ser também essa a posição de Cândido Rangel Dinamarco, ao incluir no aperfeiçoamento da prestação jurisdicional, além da natural participação das partes no concernente ao conjunto fático, através de intensa participação na formação do conjunto probatório, a participação das partes nas alegações interpretativas da lei.[20] Em nosso entender é inegável que, também no campo da norma jurídica a ser aplicada ao caso concreto, a participação das partes é essencial para uma melhor decisão.[21]
Ademais, além do interesse da própria jurisdição na participação das partes nesse tocante, caberá às mesmas arcarem com eventuais prejuízos que venham a sofrer em virtude do juiz, se não indicados pelas partes, não “descobrir” a correta norma jurídica aplicável ao caso concreto, ou a descobrindo, não a interpretar da maneira mais correta.[22] Poderíamos mesmo dizer que a indicação da norma jurídica pela parte se constitui em um ônus processual.[23]
Podemos concluir, nesse momento, que muito embora a parte possa narrar uma fundamentação jurídica que a seu ver é a cabível para solução do caso concreto, é totalmente lícito, em virtude do princípio do iura novit curia, que o juiz modifique aquela fundamentação jurídica original e lhe conceda outra, independentemente, inclusive, de debate entre as partes acerca da pertinência ou não dessa norma jurídica.
Cabe aqui a idéia de indisponibilidade do direito. Se é bem verdade que cabe ao jurisdicionado buscar ou não a tutela jurisdicional, já que a jurisdição cível tem como uma de suas principais características a inércia, não é menos verdade que uma vez proposta a demanda judicial as partes perdem muito dessa disponibilidade inicial, manifestando-se em vivas cores o caráter publicista do processo civil. Assim, incabível a escolha pelas partes da norma jurídica a ser aplicada quando essa não for a que o ordenamento jurídico dispõe para o caso concreto. Caberá sim, ao juiz, dar a correta interpretação jurídica, independentemente da vontade ou até mesmo acordo entre as partes.[24]
Filiamo-nos, portanto, ao entendimento de Carlos Alberto Alvaro de Oliveira, que afirma: “Nem a aceitação da existência de determinada norma jurídica, nem a investigação de seu sentido e conteúdo, nem a subsunção dos fatos introduzidos no processo podem ser impostos pelas partes ao juiz. Assim, mesmo que acordes aquelas quanto à validade de determinado negócio, proposta a demanda, é lícito ao órgão jurisdicional, em face da sua natureza jurídica, examinar ainda contra a vontade dos interessados se ocorreu violação aos bons costumes ou à boa-fé ou se seria usuário. De tal sorte, um acordo das partes sobre o julgamento de caráter jurídico não deve ser vinculante para o juiz. O tribunal pode, assim, extrair do material fático trazido pelas partes conclusões jurídicas não aportadas por elas nos autos.”[25]
Segundo essa linha de raciocínio seria possível imaginar uma situação onde o autor ingressa com ação pleiteando indenização decorrente de ato ilícito, ou seja, responsabilidade aquiliana. O réu, ao preparar sua defesa, baseando-se na qualificação jurídica dada pelo autor, não prova a inexistência de culpa, já que essa prova, segundo os ditames do ônus da prova cabe ao autor. O juiz ao julgar o processo, considera que a responsabilidade não é aquiliana, e sim contratual, e como o ônus da prova nas ações de responsabilidade civil calcada em responsabilidade contratual é do réu, e esse nada provou, julga a ação procedente.
Semelhante problema vai ocorrer quando em ação de responsabilidade civil a qualificação jurídica for baseada no Código Civil, onde portanto a regra do ônus da prova segue o determinado no artigo 333 do Código de Processo Civil. A discussão tem seu seguimento e o juiz, ao final do processo, declara que a qualificação jurídica está incorreta, incidindo no presente caso o Código de Defesa do Consumidor, invertendo o ônus da prova e julgando a ação procedente por falta de conjunto probatório produzido pelo réu.
Outro problema que vamos poder encontrar com certa constância é aquele referente a responsabilidade objetiva e subjetiva. Imaginemos que o autor ingresse com ação de reparação de danos calcada em responsabilidade subjetiva, onde então vai se discutir a prova da culpa, já que a culpa é um dos elementos constitutivos desse tipo de responsabilidade. Imaginemos que o réu somente discuta a culpa, já que se provar que essa não existiu provocará a improcedência da demanda. O juiz, ao decidir o litígio, requalifica juridicamente a ação, julgando como se responsabilidade objetiva fosse, concluindo que mesmo tendo sido provado que o réu não agiu com culpa, deve ser assim mesmo condenado pois trata-se de responsabilidade objetiva.
As três situações elencadas, embora se diferenciem substancialmente, tem alguns pontos de contato interessantes, e o problema que surge nas três ocasiões, ao nosso modo de ver, é praticamente o mesmo. Levando-se em conta que a atitude do juiz foi regular, e esse não extrapolou os limites objetivos da lide previamente delimitados pelas partes, uma pergunta remanesce: seria justa a decisão do juiz? Entendemos que a resposta deve ser dada negativamente, em virtude de ter ocorrido nas três circunstâncias acima elencadas ofensa ao princípio constitucional do contraditório.
7. O Aforismo Iura Novit Curia e o Princípio do Contraditório
Partindo-se do pressuposto de que realmente houve um equívoco do autor em sua petição inicial nas circunstâncias acima expostas, e que dos fatos narrados somente a norma jurídica utilizada pelo juiz era realmente aplicável ao caso concreto, ainda assim a questão posta há pouco persiste. E é a ela que pretendemos responder, à luz do princípio do contraditório, garantido constitucionalmente às partes.
O princípio do contraditório, tradicionalmente ligado ao campo do direito penal, ampliou-se também, como garantia constitucional, com o Texto Maior promulgado em 1988 às questões cíveis e administrativas. É já tradicional a conceituação do princípio como a “ciência bilateral do atos e termos do processo e possibilidade de contrariá-los”[26]. O princípio do contraditório encontra-se intimamente ligado ao Estado de Direito, representando garantia tanto do direito de ação como do direito de defesa.[27]
A idéia básica do contraditório pode ser então dividida em dois grandes aspectos; o direito de ser informado e a bilateralidade da audiência, estando ambos aspectos indissoluvelmente interligados. Não nos deteremos no primeiro aspecto, que pode ser sucintamente explicado como o direito que as partes tem dentro do processo de serem informadas dos atos processuais, para que assim possam ter a possibilidade de expressar ou sua concordância ou discordância, obviamente respeitados os prazos pré-determinados.
A bilateralidade da audiência está intimamente ligada à da contrariedade. Sempre uma parte deverá ser avisada, pelo meio processual adequado (intimação ou citação), do alegado pela outra parte, para que ciente, possa contrariá-la. Dá-se dessa maneira a oportunidade da parte sempre poder se manifestar acerca dos argumentos contrários, o que, se não fosse observado, feriria o princípio da ampla defesa e agrediria frontalmente o princípio da paridade de armas.
Assim, “durante todo o desenrolar do procedimento, que o ato praticado por uma das partes seja comunicado à outra, conferindo-lhe, igualmente, a probabilidade de manifestar-se, no prazo estabelecido em lei ou, desde logo, fixado.”[28] Além da idéia de manutenção da paridade de armas e mesmo da melhora da prestação jurisdicional por meio de uma participação efetiva das partes, temos para nós que também a idéia de evitar surpresas às partes está amplamente contida no princípio do contraditório.
Não seria justo a uma parte não ter a oportunidade de se manifestar acerca de alegações formuladas pela outra e, de repente, se ver prejudicada dentro do processo por essa sua provocada omissão. O direito de ser informado está intimamente ligado ao direito de não ser pego de surpresa por alegações da parte contrária que anteriormente não eram conhecidas. Uma vez devidamente informada, a parte tomará então as providências cabíveis.
Caberá ao juiz, dono do processo, observar a aplicação do contraditório, evitando portanto que uma parte possa ser surpreendida por alegações realizadas pela outra. Se o juiz não pode permitir que uma parte seja prejudicada em razão de nova alegação da outra, sem que tivesse tido a possibilidade de se defender, como deveremos analisar o problema quando essa surpresa não for causada pela parte contrária e sim pelo próprio juiz? Não estaria também aí ofendido o princípio do contraditório?
Dessas questões surge uma moderna visão do fenômeno do contraditório[29], ligado ao aspecto que não é lícito e tampouco justo imaginar que decisões do juiz tragam surpresas às partes, que mediante esse tipo de atitude se veriam impedidas de se defender, o que, sem dúvida, agride ao princípio constitucional da ampla defesa e do contraditório. Nas palavras sempre precisas de Humberto Theodoro Júnior, “é importante lembrar que o pleno contraditório sem restrições e surpresas, configura a essência do mecanismo do devido processo legal, que a Constituição assegura a todos como uma das garantias fundamentais.”[30]
Está portanto incluída na idéia de contraditório a impossibilidade do juiz, por meio de atividade própria, trazer qualquer surpresa às partes. Sendo o processo um diálogo, não há como se permitir que possa o juiz surpreender as partes, o que, além de ferir o princípio do contraditório, atenta à própria idéia de justiça, já que decisão que causa surpresa a uma ou a ambas as partes sem dúvida desprestigia o Poder Judiciário frente aos jurisdicionados, que passam a acreditar terem sido vítimas de uma verdadeira cilada.[31]
Cabe ao juiz, em consonância com o princípio do contraditório, guiar o processo da maneira mais dialética possível, não podendo admitir-se, portanto, o julgamento de uma ação fundamentando-se em norma jurídica absolutamente estranha ao autos, caracterizando esta decisão, indubitavelmente, uma surpresa para as partes, já que imprevista e inesperada, devido a ausência de discussão acerca da mesma, consequência da falta de indicação do juiz do rumo que tomaria na decisão.[32]
Não temos dúvidas, como as levantadas com extrema veemência por Fritz Baur em trabalho já citado, que o princípio do iura novir curia deva ser aplicado e observado nos dias atuais. Sendo a norma jurídica um norma pública por excelência, não pode restar dúvida que as partes sobre a mesma não podem dispor. O caráter cogente de tais normas concede ao juiz todas as condições para que o mesmo busque a norma jurídica aplicável ao caso concreto, independentemente da vontade das partes. O que não de pode admitir é que essa nova aplicação cause surpresa a elas, prejudicando uma delas.
Inadmissível, portanto, que “sejam os litigantes surpreendidos por decisão que se apoie, em ponto fundamental, numa visão jurídica de que não se tenham apercebido. O tribunal deve, portanto, dar conhecimento prévio da direção em que o direito subjetivo corre perigo, permitindo-se o aproveitamento na sentença apenas dos fatos sobre os quais as partes tenham tomado posição, possibilitando-lhes assim melhor defender seu direito e influenciar a decisão judicial. Dentro da mesma orientação, a liberdade concedida ao julgador na eleição da norma a aplicar, independentemente de sua invocação pela parte interessada, consubstanciada no brocardo iura novit curia, não dispensa a prévia ouvida das partes sobre os novos rumos a serem imprimidos ao litígio, em homenagem ao princípio do contraditório.”[33]
Surge então entre nós, com absoluta propriedade, a idéia da impossibilidade do juiz surpreender as partes com questões não discutidas. Importante frisar nesse ponto que as questões tanto podem ser de fato como de direito, nos interessando precipuamente, por óbvio, as questões de direito. A idéia é impedir a surpresa, elemento totalmente indesejável ao processo e por fim à própria prestação jurisdicional.[34] Assim, o juiz ao determinar rumo diverso ao discutido nos autos, inclusive em matéria de direito, deverá conceder às partes oportunidade para manifestar suas opiniões, preservando-se assim o contraditório efetivo.
Discordamos em parte, portanto, da conclusão alcançada por Ernesto Heinitz, e descrita em memorável artigo já mencionado do Professor José Ignácio Botelho de Mesquita, entendendo que “o nomen iuris, a qualificação jurídica da relação apresentada pelo autor, que Zanzucchi considera como simples ponto de vista sem relação alguma com o conteúdo da causa petendi, pode ter também sua importância, embora na maioria dos casos seja irrelevante. Tal se verifica quando se trate de uma relação obrigacional cuja definição jurídica seja controversa e a indicação técnica da relação controvertida, não se limite a uma descrição, mas contenha especificamente aquela afirmação do direito do autor que forma objeto da lide; caso êste em que é vedado ao juiz, como à parte, substituir tal relação por outra, ainda que fiquem inalterados o petitum e o fato constitutivo.”
Concordamos com o doutrinador alemão no concernente à raridade com que os casos em que a qualificação legal tenha sua importância, mas não podemos aceitar a visão de que nas situações descritas acima, seja vedado tanto às partes[35] como ao juiz a substituição por outra norma jurídica (o autor alemão fala em relação jurídica), efetivamente aplicável ao caso concreto, restando inalterados os elementos de ação.
Não havendo qualquer modificação nos elementos constitutivos da ação, nos parece claro, conforme já tivemos oportunidade de asseverar, que a mudança da qualificação legal não constitui inserção de nova demanda no caso concreto.[36] Não se modificando as partes, o pedido, nem a causa de pedir, a requalificação legal somente pode ser entendida como medida salutar, objetivando mesmo a consecução de uma prestação jurisdicional mais correta. Pode assim, a nosso ver, em qualquer situação, o juiz, utilizando-se do princípio iura novit curia, aplicar norma jurídica não discutida nos autos, desde que preserve o contraditório.
Reconhecendo as diferenças das situações onde a qualificação legal não tem qualquer importância e aquelas onde a norma jurídica aplicada terá, necessário uma análise dos diferentes efeitos de tais situações. Fica bem claro que no clássico exemplo da confusão entre erro e dolo, a qualificação legal não tem nenhuma importância, já que o réu, nessa ação, e uma vez narrados os fatos pelo autor, teve plena possibilidade de exercer seu direito de defesa de maneira completa, não podendo ser vislumbrado aí qualquer afronta ao contraditório.
Não ocorre o mesmo nos exemplos trazidos quando do começo da discussão. Assim, nas situações onde há por parte do juiz modificação de uma qualificação jurídica calcada em responsabilidade aquiliana por outra baseada em responsabilidade contratual, a modificação da norma jurídica de culpa objetiva para subjetiva, bem como a aplicação do Código de Defesa do Consumidor ou do Código Civil, fica evidente que a norma jurídica tem uma função primordial, principalmente com o referente ao ônus da prova e ao objeto da prova.
A importância reside justamente na afronta ao contraditório que a aplicação do princípio do iura novit curia traria. O prejuízo aos litigantes seria evidente, mormente ao derrotado. Aqui, a importância da qualificação legal reside justamente no fato de que sua mudança repentina acarretará prejuízo a uma das partes, que não terá exercido plenamente seu direito de defesa pois o baseou numa premissa legal desconsiderada pelo juiz em seu julgamento.
Não concordamos, portanto, devido a todos os elementos já colacionados, que o juiz e mesmo as partes não possam requalificar a norma jurídica aplicável. O que deve-se levar em conta é que quando essa mudança puder ocasionar prejuízo a uma das partes, por lhe impedir o exercício efetivo do contraditório e da ampla defesa, tal mudança deve ser previamente comunicada às mesmas, dando a essas a oportunidade de se manifestar.
Essa é a principal diferença. Enquanto a mudança nenhum prejuízo trouxer aos litigantes, a mesma pode ser efetuado in continenti pelo juiz, ao passo que quando tal mudança puder afetar o direito da ampla defesa de alguma das partes e também o princípio do contraditório, a mesma deve ser precedida por ampla e irrestrita discussão entre os sujeitos da relação jurídica processual.
8. Conclusões
8.1. Muito embora o ordenamento jurídico brasileiro tenha encampado a teoria subjetiva da responsabilidade civil, ou seja, dá ao elemento culpa conotação imprescindível para o nascimento da obrigação ressarcitória, existem algumas situações previstas no próprio Código Civil e outras em leis esparsas que trazem ao nosso ordenamento jurídico também a responsabilidade objetiva. Essa realmente é a melhor solução que pode ser encontrada, coexistindo as duas modalidades de responsabilidade civil dentro de um mesmo ordenamento.
8.2. Muito embora para os civilistas a diferenciação entre culpa aquiliana e culpa contratual não encontre muito espaço para discussões e debates na seara do Direito Civil, aos processualistas uma dessas diferenças traz algumas questões interessantes. No concernente ao ônus da prova, é indubitável que o antagonismo existente entre uma e outra modalidade de culpa trará consequências sérias no campo do Processo Civil. Recorda-se, por exemplo, que na responsabilidade aquiliana o ônus probandi é do autor e da responsabilidade contratual esse ônus é do réu.
8.3. Vivos debates se deram acerca da teoria da causa de pedir. Doutrinadores se dividiam, no que concerne aos direitos reais, já que com relação aos direitos patrimoniais a discussão era menos sentida, entre os defensores da teoria da substanciação e da individuação. Para aqueles necessário tanto a narração dos fatos jurídicos como a relação jurídica constitutiva do direito, enquanto para esses bastava a narração do segundo elemento. Muito embora tenhamos no Brasil pelo menos dois renomados juristas que entendam não ter o ordenamento jurídico abraçado incondicionalmente a teoria da substanciação, temos para nós que não resta dúvida, da leitura do artigo 282, III, do CPC, que no Brasil essa foi a teoria adotada.
8.4. Mesmo acreditando na adoção da teoria da substanciação entre nós, tal discussão não possui muita importância para o presente estudo, já que as ações de responsabilidade civil são patrimoniais, necessitando, portanto, sempre da narração dos fatos constitutivos do direito do autor. Com relação aos fatos que são necessários à formação da causa petendi, difícil encontrar unanimidade entre os doutrinadores que se ocuparam do tema. Concordam entretanto a sua grande maioria que somente os fatos jurídicos são necessários a individualizar a demanda, sendo os fatos simples, sem qualquer força para gerar isoladamente consequências jurídicas, apenas secundários.
8.5. Imprescindível a diferenciação de fundamento jurídico e fundamentação legal. Enquanto a narração distorcida do primeiro poderá levar a inépcia da inicial, já que cabe ao autor sua correta indicação, a qualificação jurídica, ou como alguns preferem o texto legal no qual está embasado o pedido do autor, pode ser modificado tanto pelas partes como pelo próprio juiz, já que não faz parte dos elementos de composição da ação. É bem verdade que mesmo não sendo necessária a indicação do texto legal, interessa à própria parte sua indicação, como forma de melhor preservar seu direito.
8.6. Ainda que uma mesma situação pode ser enquadrada tanto em responsabilidade contratual como em responsabilidade aquiliana, o autor terá à sua disposição somente uma ação. Se sair vitorioso na primeira demanda não poderá repropor nova demanda embasado na modalidade de culpa não suscitada na primeira ação. Tal conclusão está calcada no princípio do bis in idem e no fenômeno da coisa julgada material. Se, por outro lado, sair derrotado, também não poderá se utilizar de nova demanda, que deverá ser extinta sem julgamento do mérito em virtude de coisa julgada. Havendo somente mudança da qualificação jurídica, e sendo essa alheia aos elementos da ação, resta claro que as duas ações são idênticas, já que a causa de pedir não se modificou, bem como nem as partes, nem o pedido.
8.7. Muito embora na maioria da vezes a qualificação jurídica dada a determinada ação não tenha muita importância prática, é bem verdade que em algumas situações a modificação de tal qualificação por parte do juiz poderá mudar totalmente o rumo da decisão e mesmo da atuação das partes no processo. Por vezes, toda a linha de defesa poderá restar prejudicada quando da observação do brocardo iura novit curia por parte do juiz. Os exemplos mostrados no presente trabalho bem mostram essa realidade.
8.8. Assim devemos olhar com ressalvas o princípio iura novit curia. Não temos dúvidas de que o mesmo deve ser observado, já que as partes não podem dispor da lei, cabendo ao juiz a aplicação da correta norma de direito material ao caso concreto mesmo que concordes as partes com a utilização de outro dispositivo legal. O caráter cogente das normas jurídicas dá todas as condições para o juiz assim proceder. Tal atuação, ademais, nada mais é do que a busca por uma prestação de tutela jurisdicional de melhor qualidade.
8.9. A oportunidade da observação pelo juiz do brocardo iura novit curia deve ser, entretanto, ilimitada. O que deve ser considerado é a forma como o juiz o observa e age no caso concreto. Não podemos aceitar, sem que esqueçamos do princípio do contraditório, que o juiz, ao requalificar a norma jurídica aplicável pegue as partes de surpresa, trazendo prejuízos a uma delas. A surpresa não pode nunca ser aceita dentro do processo, já que a bilateralidade da audiência, componente formador do princípio do contraditório, existe justamente para bani-la da relação processual. Assim, sempre que a observação do princípio iura novit curia vier a trazer prejuízo a uma das partes, cuja defesa restaria prejudicada em decorrência da surpresa de sua adoção, imprescindível ao juiz que, antes de tomar a decisão que planeja, dê oportunidade ampla e irrestrita para as partes participarem dessa decisão. Somente assim podemos conjugar o brocardo iura novit curia e o princípio do contraditório, garantido pelo nosso Texto Maior.