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Os dinossauros do Novo CPC
10/10/2016
Muitos acreditaram na promessa de que o Novo Código de Processo Civil nos traria simplificação no modo de ser do processo.[1] Eu nunca! Nos idos de 2014, sem aqui me autoconceder relevantes poderes de premonição, tive a oportunidade de vaticinar o futuro:
“Reconheço a existência de muitos pontos positivos e evoluções técnicas, mas acredito que há risco de vício de consentimento (ou quiçá um tipo especial de propaganda enganosa legislativa), caso a sociedade decida “comprar” este Código. As Justificativas apresentadas para se criar o novo código, como efetividade e celeridade – mesmo aqueles que o conceberam sabem – são promessas que não se concretizarão. Com o novo Código, a Justiça continuará lenta, os problemas principais não serão resolvidos e o processo continuará sendo complexo e inefetivo. Ao invés de nos aproximarmos do modelo de simplicidade e oralidade da Justiça do Trabalho (provavelmente o único processo que funciona no Brasil), mantivemos exatamente a mesma base do CPC de 1973 e continuaremos com os mesmos problemas. Processo escrito e formalista, recorribilidade das interlocutórias, efeitos suspensivos e recursos e inefetividade da tutela contra a Fazenda Pública”.[2]
No texto de hoje, gostaria de ressaltar esse mesmo problema, focando na manutenção pelo CPC de 2015 de técnicas e procedimentos altamente formalistas e fora de compasso com os objetivos do processo civil moderno. Verdadeiros dinossauros que sobreviveram à extinção em massa propagandeada pelos criadores do Código.
Interpelação judicial: lei do maior esforço
Não existe nada em nosso sistema mais irracional e antieconômico que a obrigatoriedade na adoção do procedimento judicial da interpelação (CC, art. 474 e CPC, art. 726 e ss).
Os contratos que contém cláusula resolutiva expressa, permitem que, na hipótese de inadimplemento, a resolução se dê de pleno direito. Nada mais precisa ser feito, senão eventualmente a formulação de demanda declaratória, nos casos em que as partes não obtêm consenso quanto à resolução ou não (crise de mera certeza). Naquelas relações contratuais em que não há cláusula dessa natureza, todavia, para que se proceda a mera resolução do contrato, as partes têm de se submeter a verdadeiro suplício, a formulação de um procedimento de interpelação judicial (CC, art. 474).
Isto é, um procedimento que não declara nada, que não reconhece direitos, mas que movimenta a lenta, ineficiente e custosa máquina jurisdicional simplesmente para que o requerido receba uma carta ou mandado em sua casa, informando da resolução. Depois disso, tudo acaba, e o requerente leva os autos para casa (CPC, art. 729).
O Código de Processo Civil de 2015 perdeu a oportunidade histórica de acabar com esse formalismo inútil, permitindo uma mera notificação pelo correio, com aviso de recebimento. Especialmente porque o Código passou a admitir este mesmo formalismo simplificado para atos relevantes, como as intimações em geral (CPC, art. 269, § 1º). Mas não o fez, foi aqui contraditório e submeteu a todos a obrigatoriedade de uso deste custoso procedimento, privando o tempo das partes, o trabalho dos advogados e abarrotando ainda mais os escaninhos da Justiça.
Restauração de autos: sentença e apelação
Outra oportunidade foi perdida ao não se abolir o procedimento especial de restauração de autos. Esta atividade – senão pela eventual necessidade de reproduzir provas – não tem nada de jurisdicional. Poderia ser transformada em mero procedimento cartorário, no qual o escrivão ou chefe de secretaria simplesmente buscaria o auxílio das partes na reconstrução dos documentos, sem recurso, e, apenas eventualmente, na falta de cooperação, buscasse atos de poder do juiz ou a eventual reprodução de alguma prova.
Não. Não houve aqui simplificação. Pelo contrário, no bizarro sistema recursal do Novo CPC, a restauração de autos é um procedimento judicial, que deve levar anos para ser concluído em primeiro grau, e o pior de tudo: finaliza-se por sentença, passível de apelação com efeito suspensivo (CPC, art. 1.009). Isto é, não apenas as partes – depois do desaparecimento dos autos – devem se submeter a procedimento burocrático, o qual levará anos para ser concluído, como também, depois de sua conclusão, a parte que deseja impedir o prosseguimento da causa originária pode interpor impunemente apelação, a qual impedirá o prosseguimento da causa por mais, talvez, meia década. Um Dinossauro, sem sentido, caro, lento e custoso neste particular.
Ação demarcatória e suas duas sentenças
O Código de Processo Civil acabou com situações teratológicas e ineficientes como as antigas duas sentenças apeláveis da ação de exigir contas (CPC/73, art. 915, § 1º, e art. 918).
Não se exterminou, todavia, o mesmo problema da ação demarcatória. Este procedimento prevê (a) uma primeira sentença para a finalidade de determinar “o traçado da linha demarcada” (CPC, art. 581); (b) uma segunda sentença, a ser produzida depois de demarcação feita pelo perito e inserção dos marcos, com a finalidade de homologação (CPC, art. 587).
Pelo sistema recursal que possuirmos, ter um processo com duas sentenças significa ter um processo que nunca terminará, aniversariando empoeradamente nos escaninhos mais obscuros dos fóruns de nosso país.[3]
Inventário
Um dos maiores dinossauros de nosso sistema, até mesmo pelo volume que os autos normalmente passam a ter, diretamente proporcionais ao patrimônio do morto, dão-se com os inventários. Causas que nascem para nunca acabarem quando há controvérsia. Andou bem o Código ao regulamentar e manter o inventário extrajudicial, mas fez ainda muito pouco, ante a absoluta necessidade de desjudicialização maior deste procedimento, relegando ao juiz apenas análise de eventuais questões de alta indagação.
Conclusão
O Código parece ter feito uma carnificina incompleta, embora tenha matado alguns, deixou muitos dinossauros ainda vivos, a aterrorizarem o operador do direito.
Não nos resta outra saída senão buscar reformas legislativas nesse ponto, identificando quiçá ainda outros dinossauros que este autor, aqui, não foi capaz de catalogar. Reformas estas, evidentemente, que devem ser acompanhadas de outras técnicas que visem a evitar o nascimento do processo (limitar mesmo o acesso à justiça) e a restringir as hipóteses nas quais a mesma causa é apreciada duas ou mais vezes pelo Judiciário (eliminação de recursos). Não há outra saída!
[1] Vejamos trecho da exposição de motivos do anteprojeto apresentada ao Senado: “A expressiva maioria dessas alterações, como, por exemplo, em 1.994, a inclusão no sistema do instituto da antecipação de tutela; em 1.995, a alteração do regime do agravo; e, mais recentemente, as leis que alteraram a execução, foram bem recebidas pela comunidade jurídica e geraram resultados positivos, no plano da operatividade do sistema. O enfraquecimento da coesão entre as normas processuais foi uma conseqüência natural do método consistente em se incluírem, aos poucos, alterações no CPC, comprometendo a sua forma sistemática. A complexidade resultante desse processo confunde-se, até certo ponto, com essa desorganização, comprometendo a celeridade e gerando questões evitáveis (= pontos que geram polêmica e atraem atenção dos magistrados) que subtraem indevidamente a atenção do operador do direito. Nessa dimensão, a preocupação em se preservar a forma sistemática das normas processuais, longe de ser meramente acadêmica, atende, sobretudo, a uma necessidade de caráter pragmático: obter-se um grau mais intenso de funcionalidade”.
Tivemos a oportunidade de criticar essa promessa nesta mesma coluna (Cf. Marcelo Pacheco Machado, “Tutela Antecipada e os três pecados capitais”, disponível em https://www.jota.info/novo-cpc-tutela-antecipada-e-os-tres-pecados-capitais, acessado em 8.10.2016.
[2] Marcelo Pacheco Machado, “Novo CPC, descanso do advogado e descanso do juiz”, disponível em http://marcelopacheco2.jusbrasil.com.br/artigos/121942931/novo-cpc-descanso-do-advogado-e-descanso-do-juiz, acesso em 8.1.2016. Texto originariamente publicado no extinto portal “Atualidades do Direito”.
[3] A título de anedota, conta-se que em determinado Estado do sudeste brasileiro foram encontrados autos de causas mais complexas no armário do banheiro do gabinete de determinado magistrado, após sua aposentação.